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Cara de um, focinho do outro

Como vivem alguns dos personagens mais folclóricos da nossa sociedade, os sósias

por Camila Svenson Atualizado em 29 set 2020, 18h59 - Publicado em 29 set 2020 00h12
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(Clube Lambada/Ilustração)

oro na Avenida 9 de Julho há mais ou menos um ano. Bem ao lado da minha casa, existe um pequeno bar. Você provavelmente não vai reparar neste bar, caso esteja passando apressado a caminho do metrô Anhangabaú. Sem toldo ou balcão aparente, é possível observar uma única mesa de sinuca aos fundos e um pequeno balcão na lateral. Os frequentadores são poucos, mas de vez em quando vejo uma mesma mulher, sentada em uma cadeirinha de plástico na calçada, copo de cerveja nas mãos, observando a rua. Que gesto otimista, eu penso. Sentar-se para observar a avenida. 

Esse bar provavelmente passaria despercebido por mim também se não fosse por seu dono. Com roupas de estampa camuflada, botas de solado grosso amarelas, turbante no topo da cabeça e uma longa barba, está o sósia de Osama Bin Laden. Sentado em uma cadeira amarela na calçada, ele também observa a avenida, diariamente. Nunca conversamos, mas de vez em quando eu o cumprimento e ele retribui. Convivendo com a sua presença em meus atravessamentos pela cidade, gosto de imaginá-lo como uma personagem fictícia. Um ator, que se dispõe a interpretar o mesmo papel ininterruptamente. Toda cidade guarda grandes e pequenas ficções dentro de portas, apartamentos, bares, calçadas e festas de aniversário com decoração de isopor. Como fotógrafa, as ficções me interessam. Esta matéria diz respeito a uma delas: os sósias.

Sósias são pessoas que se parecem com alguém, na maioria das vezes com uma celebridade. A semelhança pode ser física ou também comportamental. Sósias são atores, performers, covers, atrações e figuras que provocam ilusão e espanto. Durante um mês, convivi e entrevistei diferentes pessoas que de alguma maneira vivem ou trabalham como sósias e covers na cidade de São Paulo. 

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(Camila Svenson/Fotografia)

Marcelo Gomes, 40, atua como auxiliar de enfermagem há dez anos, e há sete trabalha também como sósia do ex-jogador de futebol Raí. Seu primeiro trabalho foi uma aparição no ‘Feirão da casa própria’ – onde o próprio Raí era garoto propaganda. “O Raí ia fazer a abertura, mas ele não tinha disponibilidade de ficar lá porque era muito caro. Ai me contrataram”.

Em uma sociedade que produz, industrializa e cultua figuras ‘célebres’, transformando sujeitos em produto de entretenimento e acesso impossível, o sósia é um atalho rápido. “É a facilidade de chegar mais próximo. Quando eu vou chegar perto do Neymar? É difícil. Quando se tem o sósia, é um caminho mais curto para se percorrer” diz Marcelo, que confessa não ser muito fã de futebol – e, por isso, tem facilidade em separar sua vida, com a vida de Rai.

No trabalho, a contratação para eventos corporativos, aniversários, festas e inaugurações de lojas é uma constante. Marcelo diz que o sósia está lá para “fazer parte da decoração, para enganar, ser uma atração”. Um elemento a mais que pode ser adicionado em uma fotografia que vai parar no Instagram.

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(Camila Svenson/Fotografia)

Belos ou grandes (como os originais)

Alex é motorista de Uber há três anos, e diariamente ouve de algum passageiro que é parecido com o cantor Belo, ex-vocalista da banda de pagode romântico Soweto. Na parte traseira de seu veículo, em um adesivo branco, lê-se: Uber do Belo. “O pessoal pede pra tirar foto, fazer vídeo, fica postando nas redes sociais”. Alex nunca chegou a trabalhar profissionalmente como sósia, diz que a demanda maior é por jogadores de futebol, mas está aberto a futuras oportunidades.  

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(Camila Svenson/Fotografia)

Já Rogério “Niccky” tem uma produtora de eventos e entrou no universo dos covers por acaso. De tanto ouvir que era parecido com o cantor baiano Durval Lélys, do Asa de Águia, foi em uma loja de fantasias e comprou uma fantasia de vampiro. Naquela época, A dança do vampiro provavelmente tocava em todas as festas de aniversário do Brasil. Rogério diz que, 15 dias depois, estava no programa do Silvio Santos. Em 2011, participou do quadro de ‘maior imitador da América Latina’ no Domingão do Faustão, no qual foi finalista. Fui fotografá-lo em sua casa, em São Bernardo do Campo. Na calçada da frente, um mini trio elétrico estava estacionado “Faz parte do pacote dos shows do Asa” diz ele. 

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(Camila Svenson/Fotografia)

“É como se fosse uma filial”

Leticia Hally mora em São Caetano; canta, dança e é conectada com o universo pop desde criança. Em 2014, Letícia começou a interpretar as músicas de Ariana Grande, cantora norte-americana de 27 anos e mais de 200 milhões de seguidores no Instagram: “Eu gostava muito já dela, porque eu tinha referências da Mariah Carey, que o meu pai era fã, então quando a Ariana surgiu eu pensei; minha vez” conta ela. 

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(Camila Svenson/Fotografia)

Um amigo disse a Letícia que sua voz era muito parecida com a da cantora e que ela deveria trabalhar como cover. Seu primeiro evento foi no Parque Ibirapuera, junto com a cover de Miley Cyrus – e foi um sucesso entre o público adolescente. “Logo nesse primeiro evento, eu cantei. Porque a maioria dos covers só interpreta ou performa. O pessoal achou interessante, e acho que por isso minha ascensão foi muito rápida”, diz ela, que já viajou para a Inglaterra para interpretar Ariana em um programa britânico de televisão. 

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(Camila Svenson/Fotografia)

Letícia não se entende como sósia, e sim como cantora, performer e facilitadora da imagem de Ariana Grande pelo Brasil. “A pessoa que é fã, olha pra mim e vê a Ariana, vê o artista. Eu não estou lá pra ser a Letícia. É como se fosse uma filial dela aqui no Brasil, e eu projetasse o trabalho dela. Tem pessoas que me agradecem e dizem: obrigado por você estar aqui, você é o mais próximo que eu vou chegar da minha ídala.”

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(Camila Svenson/Fotografia)

Nos encontramos em um camarim na boate Blue Space, na região da Barra Funda, em São Paulo. Naquele dia, Letícia iria participar da gravação de uma live junto com figuras conhecidas na noite LGBTQI+ paulistana, como Silvetty Montilla e Penelopy Jean. Era estranho estar dentro de uma boate vazia. Os bailarinos de máscaras se alongavam em uma sala escura e cheia de espelhos, enquanto treinavam a coreografia do último hit de Lady Gaga, “Rain on me”. Letícia entra no palco vazio as dez da noite, uma boate inteira em espera em tempos de pandemia. 

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(Camila Svenson/Fotografia)

Dinheiro às custas da imagem alheia

Se antigamente sósias e covers eram convocados a trabalhos por agências, hoje a visibilidade vem pelo Instagram, como é o caso de Letícia e também de Larissa Andjara. Larissa dança desde os nove anos, já fez cover de Céline Dion, mas hoje em dia se dedica exclusivamente a ser cover e sósia da cantora Anitta.

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(Camila Svenson/Fotografia)

A parede do seu quarto é coberta por posters e flyers de sua turnê Anitta Oficial Cover Show, que fez em Portugal: “Eeu já tinha viajado pra fora mas não pra isso, nunca imaginei que iria chegar nessa extensão. Primeiro eu comecei em São Paulo, depois no Brasil inteiro, depois eu estava fora do Brasil.”

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(Camila Svenson/Fotografia)

Em 1996, Nicanor Ribeiro atingiu uma meta de vendas na empresa que trabalhava e ganhou uma passagem para a Disney. Chegando lá, confundido com Pelé, foi abordado por turistas que pediam fotografias. Nicanor trabalha como sósia desde então, com passagem pela Tv Gazeta, Record, Ilha de Caras e Rede Globo. “Nunca imaginei estar em uma Globo, tudo o que aconteceu pra mim era por conta do Pelé. Antes da pandemia, eu tirava mais de 100 fotos por dia” Conta ele, que trabalha muito mais em época de Copa do Mundo, pois é quando os jogadores de futebol (aposentados ou não) estão em evidência.

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(Camila Svenson/Fotografia)

Allvis Bueno, Elvinho como é chamado, é fã de Elvis Presley desde os oito anos de idade, quando o descobriu na Sessão da Tarde, assistindo ao filme “Feitiço Havaiano”. Afirma que “fã de Elvis é um dos fãs mais chatos para se agradar, eles querem ver uma homenagem fiel. É difícil já que a própria ideia de Elvis já é uma caricatura em si’. Segundo Elvinho, não basta colocar uma peruca, óculos e um macacão branco, o trabalho é minucioso, delicado, pois é fácil cair em um estereótipo.

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(Camila Svenson/Fotografia)

Elvinho se apresenta interpretando Elvis Presley em sua fase dos anos 1970 até o fim de sua carreira. “Quero dar a sensação ao público do que seria ver o próprio Elvis em um show em Las Vegas”. Faço seu retrato próximo a uma janela no Largo do Arouche, vestindo um macacão branco e óculos de sol. Elvinho me mostra também sua coleção de jóias, anéis e colares – réplicas perfeitas. Quando nos despedimos, escuto “Blue Moon” no repeat, fico com vontade de conhecer Las Vegas e fotografar salões com carpete padronizado, e também a réplica da torre Eiffel.

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(Camila Svenson/Fotografia)

Não há uma regulamentação oficial ou um manual de como ser sósia, mas se este existisse, teria sido escrito por Paulo Pastella. Paulo é sósia do ator inglês Charles Chaplin há mais de quarenta anos, uma estranhamente bonita dedicação em performar um único personagem, por anos, décadas, uma vida inteira.

Quando criança, conta, Pastella estava brincando no quintal enquanto sua mãe assistia a um filme na sala de estar. Quando entrou em casa, viu um homem franzino dentro da televisão. Se comoveu. Dessas comoções genuínas que a gente não consegue explicar o porquê. O homem em questão era Charles Chaplin. “Nesse momento se tornou o meu anjo da guarda”, diz ele. Pastella atua como sósia de Chaplin desde a década de 1980 e diz que enxerga tudo como se fosse um filme preto e branco. Já celebrou duas missas ‘chaplinescas’ na catedral da Sé em homenagem ao nascimento do ator. O evento contou também com a presença dos sósias de João Paulo II e Bento XVI.  

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(Camila Svenson/Fotografia)

Passo uma tarde inteira em sua casa, e sinto como se o resto do mundo fosse um lugar distante e estranho. Ele chora, ri, e me mostra uma quantidade infinita de caixas, fotografias, imãs de geladeira, camisetas de silk e recortes de revista sobre Chaplin, Carlitos e também sobre si próprio.  “Ficção é uma coisa que você imagina, é uma coisa vivida” diz Pastella. “E a coisa mais importante para se ser um sósia é respeitar o RG pessoal da pessoa que eu estou protagonizando, não ridicularizar. Para ser sósia tem que ter responsabilidade” completa. 

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(Camila Svenson/Fotografia)

Em certo momento, Pastella se senta em um banquinho, pinta um bigode em seu rosto, veste o paletó e coloca um chapéu côco no topo da cabeça. O radinho de pilha em cima da mesa toca “Smile”, música tema do filme “Tempos Modernos”.  Carlitos roda a bengala e sai para a rua. Eu vou atrás com minha câmera. Alguns carros passam e buzinam. Acho que não estão acostumados a avistar uma figura desta no meio de uma pandemia. Penso que conjunto estranho devemos formar para aqueles que nos observam da janela do carro. Eu, fazendo seu retrato, ele desfilando pela ciclofaixa de uma rua movimentada em uma performance apaixonada. “Isso não é mentira, é verdade”, ele diz.  Eu não posso deixar de concordar. Também acho que aquilo é verdade, mesmo também sendo ficção. Me despeço e acho estranho encontrar tudo funcionando da mesma forma do lado de fora.

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Camila Svenson. Confira mais de seu trabalho aqui

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