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Abraçando a vulnerabilidade

Stefano Volp defende a literatura como ferramenta de autoconhecimento e emancipação social. No último ano, lançou iniciativas culturais com essa proposta

por Ana Carolina Vieira, da Claudia Atualizado em 5 Maio 2021, 02h06 - Publicado em 5 Maio 2021 02h01
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(Clube Lambada/Ilustração)

mensagem “Ninguém solta a mão de ninguém”, viralizada como um grito de resistência após a eleição do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), impulsionou o escritor, roteirista e músico Stefano Volp, de 30 anos, a tirar, ou melhor, colocar no papel, o sonho de escrever seu quarto livro, Homens Pretos (Não) Choram. “Queria muito contar histórias que estavam dentro de mim, mas fazer um livro no Brasil não é barato, ainda mais com a pandemia, que chegou e deixou todo mundo mais ferrado. Pensei: ‘Vamos testar essa máxima da coletividade’. Felizmente, muitas pessoas me deram a mão”, diz ele, que bancou a produção com um financiamento coletivo. Recomendada por personalidades como a filósofa Djamila Ribeiro e o rapper Emicida, a obra tem sete crônicas protagonizadas por meninos e homens negros que se deparam com seus próprios sentimentos.

A aproximação do autor com a temática da masculinidade negra nasceu na primeira sessão de terapia, há três anos. De lá pra cá, a missão de abraçar suas vulnerabilidades se intensificou, principalmente com a solidão do isolamento social em seu apartamento, no Rio de Janeiro. “O mundo fala muito alto e, de repente, se calou. Nesse silêncio, comecei a me ouvir mais e me apavorei, mas entendi que precisava falar e a assumir essas fragilidades como um homem negro”, revela o filho da Dona Sueli, professora aposentada da rede pública. O ambiente familiar majoritariamente feminino, segundo ele, explica o elo que une as crônicas no livro: a sensibilidade dos detalhes.

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A permissão para o afeto, que observava nas irmãs e na mãe, era inexistente diante da figura do pai, que faleceu em dezembro passado. Volp nunca viu uma lágrima escorrer no rosto de Seu Israel. “Minha mãe conta que a única vez que ele chorou foi no hospital, porque não queria morrer ali, e sim em casa. No fim, aconteceu como ele queria, deitado e com a Bíblia do lado. Ele foi muito ausente, mas a gente se entendeu”, revela. Volp lamenta que não tenha dado tempo do pai ver a repercussão que seu trabalho tomou.

Assim como o escritor, todos os personagens do livro passam por transformações, começando por Heleno, um homem preto que está em seus últimos dias de vida e pede ajuda aos filhos para lembrar a última vez que chorou, algo que nunca aconteceu. Nas últimas páginas, encontramos Renatinho, um menino de 8 anos que perde a fala ao sofrer opressão na escola e no lar. Violência doméstica, homossexualidade e preterimento também são debatidos. Apesar de sentir resistência do público masculino, nas leitoras o autor encontra escuta ativa para sua mensagem. Mães, filhas, companheiras o procuram na tentativa de dissolver essas barreiras impostas a homens e meninos afrodescendentes. “É triste, porque elas buscam também entender o que elas podem ter feito de errado”, lamenta, ressaltando a culpa que acompanha a existência feminina.


“O mundo fala muito alto e, de repente, se calou. Nesse silêncio, comecei a me ouvir mais e me apavorei, mas entendi que precisava falar e a assumir essas fragilidades como um homem negro”

Segundo Volp, a maior provocação do livro é mostrar que existem arquétipos que restringem o homem negro na sociedade. O enfrentamento disso, para ele, se dá no confronto dessa estrutura machista e racista. “Será que o que eu espero de um cara com quem me relaciono passa por essa visão estereotipada? Será que meu pai foi ausente e desprovido de emoções por causa de dores desconhecidas? Será que ele sabe que é assim e que pode viver de uma maneira diferente? Às vezes, ninguém disse isso pra ele.”

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(Divulgação/Reprodução)

Rumo às prateleiras

Mergulhar nos livros sempre foi um movimento natural para Volp, que cresceu em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. “A educação e a leitura me salvaram e me mostraram outro caminho de vida. Vi amigos se perderem”, lembra o escritor, que foi aluno de cursinho popular e levou sete anos para concluir a faculdade de jornalismo por questões financeiras.

Seu terceiro livro, O Segredo das Larvas, de 2019, se tornou uma das distopias nacionais mais vendidas no Brasil pela Amazon. Após quatro lançamentos de forma independente, neste ano, o autor assinou contrato com a Harper Collins, por onde lançará um thriller psicológico ainda sem nome. O protagonista, um jovem negro bissexual, investigará o assassinato do melhor amigo.


“Brinco que o racismo acabou ali. Aproveitei que as pessoas começaram a descobrir minha obra para criar um negócio novo, o Clube da Caixa Preta. É antirracista? Então, está aqui um projeto para você apoiar”

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A preocupação com as possíveis restrições ligadas ao seu trabalho aumentou ano passado, na fatídica ação do Blackout Tuesday (em português, terça-feira preta). Para quem não se lembra, após a morte de George Floyd, homem negro sufocado até a morte por policiais nos Estados Unidos, rádios estadunidenses escolheram o dia 2 de junho para interromper sua programação como forma de endossar as manifestações antirracistas. Na internet, o movimento foi adaptado com a publicação de um quadrado preto nas redes sociais.

A onda gerou o compartilhamento do trabalho de diversos profissionais pretos, como o de Volp. “Brinco que o racismo acabou ali. Aproveitei que as pessoas começaram a descobrir minha obra para criar um negócio novo, o Clube da Caixa Preta. É antirracista? Então, está aqui um projeto para você apoiar”, instiga. Com curadoria do escritor, o clube de assinaturas traz contos de todas as temáticas, sempre escritos por autores negros.

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Uma publicação compartilhada por VOLP. (@eu.volp)

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Com gosto e necessidade por empreender, o escritor abriu mais um CNPJ ao fundar a Editora Escureceu, em 2020. A proposta surgiu para resgatar clássicos escritos por pessoas negras nos últimos séculos. Os livros estão em domínio público, mas esquecidos no tempo. Não Tão Branca, uma obra da romancista e educadora americana Jessie Fauset, foi o primeiro lançamento do selo, que aconteceu também por financiamento coletivo. “Abrimos a campanha explicando a história da autora, que retrata o movimento do passing. Era quando negros de pele clara se passavam por brancos para fugir da escravidão. A campanha bateu 160% de apoio”, explica o fundador, que construiu um quadro de funcionários formado exclusivamente por negros. O lançamento da editora para este semestre será Clara dos Anjos, de Lima Barreto.

Longe das narrativas romantizadas e meritocráticas, Stefano Volp reconhece que fez de 2020, um ano de adversidade mundial, uma limonada. O desalinho individual foi exposto propositalmente por meio da literatura a fim de uma conexão coletiva. “Estamos em um momento frágil e o descaso do governo diante dessa situações é uma violência tremenda, mas temos que resistir como dá. O meu trabalho e os nossos corpos são um ato político. Identificar-se na fraqueza gera força para a transformação que precisamos.”

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