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“Devo isso às meninas do Acre”

Rose Costa, técnica que se demitiu do Rio Branco-AC diante da contratação do feminicida Bruno Fernandes, desafia a estrutura machista do futebol

por Heloisa Aun Atualizado em 10 nov 2020, 16h01 - Publicado em 20 ago 2020 00h49
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(Clube Lambada/Ilustração)

estemida. Assim se define a profissional de educação física Rose Costa, que acumula 30 anos de experiência na área. Ex-técnica da equipe feminina do Rio Branco-AC, ela pediu desligamento do clube ao tomar conhecimento da contratação do goleiro Bruno Fernandes, que cumpre pena em regime semiaberto pelo feminicídio de Eliza Samudio, em 2010. Em meio a oportunidades restritas às mulheres no futebol, tomar a decisão de se demitir não foi uma tarefa fácil, principalmente porque não envolvia só a sua carreira, como também a de outras atletas convidadas por ela para integrar o time e que estão sem perspectiva de contar com o apoio de outra treinadora. “Apesar de angustiante, esse episódio me fortaleceu e abriu meus olhos enquanto coletivo e mulher em uma sociedade machista. Eu não tenho medo do amanhã”, declara.

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Atitudes como a de Rose deixam claro que o caso não diz respeito só ao futebol. O que aconteceu diz respeito à formação das futuras gerações e das possibilidades a meninas e mulheres no país. Para a técnica, há uma insistência de alguns clubes brasileiros para recolocar Bruno no campo profissional. O motivo principal da preocupação de Rose é a falta de entendimento da sociedade como um todo em relação ao que isso significa e o quanto isso pode desencadear reflexos posteriores. “Existe uma simbologia desse ato do Rio Branco dentro do esporte. Bruno Fernandes pode cometer um crime e ser reinserido na posição de jogador titular e ídolo, como se a vida de uma mulher não valesse nada”, explica. Além da condenação pelo homicídio triplamente qualificado da vítima, o ex-goleiro foi julgado pelo sequestro e cárcere privado do filho Bruninho. Ele ainda havia sido culpado por ocultação de cadáver, mas a Justiça entendeu que o crime prescreveu e a pena foi extinta. No total, seriam 20 anos e nove meses de prisão.

“O futebol feminino está relegado ao deus-dará”, indaga Rose. Ela conta que o convite para assumir o time veio no ano passado, após uma viagem com a escola na qual trabalha. Os resultados significativos no esporte escolar, no qual tem ampla trajetória, renderam a oportunidade de fazer um trabalho no esporte profissional de um clube da cidade. Dessa participação, surgiu a chance de iniciar sua atuação no Rio Branco-AC – também nas categorias de base. Naquele momento, a equipe não investia no treinamento das jogadoras há mais de três meses. A parte de seletivas e de chamamento às atletas teve início em novembro e os treinamentos começaram em 2020. Mas, com o isolamento social, tudo precisou ser pausado.

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(Pétala Lopes/Fotografia)

Profissional, cidadã e mulher

Alguns meses depois, no fim de julho, a treinadora lia as notícias na imprensa, quando soube da contratação de Bruno Fernandes. Não houve reunião do clube para debater a decisão ou anunciá-la formalmente, de acordo com ela. Neste momento, sua ética profissional falou mais alto e a conduziu a solicitar o desligamento, como deixou evidente nas conversas que teve com os responsáveis pelo Rio Branco-AC. “Não tem espaço para fazer meu trabalho no futebol feminino tendo uma figura de um feminicida como titular da equipe do time o qual também faço parte”, indaga.

Longe de julgar se o culpado merece ou não uma segunda oportunidade, a professora é consciente de que tem o direito de erguer sua voz e expor o que acredita. Ao mesmo tempo, há uma problemática ética e moral envolvida enquanto profissional, cidadã e mulher, pois essa mesma chance usufruída pelo ex-goleiro não seria possível para uma atleta que cometesse um crime de proporção e gravidade semelhantes. “Em nenhum momento percebi uma postura de arrependimento por parte dele. Pelo contrário, foi muito instruído para não tocar nesse assunto e orientado para criar uma atmosfera na qual ele é vítima e merecedor do perdão. A criminosa não sou eu, ele que é! Simplesmente tomei a decisão de não estar no mesmo ambiente que esse homem.”


“Não tem espaço para fazer meu trabalho no futebol feminino tendo uma figura de um feminicida como titular da equipe do time o qual também faço parte”

Diante da repercussão do posicionamento da ex-técnica, o presidente do clube, Valdemar Neto, negou publicamente que Rose teria ocupado o cargo de treinadora da equipe feminina. De fato, ela relata que não assinou um contrato, assim como não ocorre com as demais profissionais que conhece em sua cidade. “Muitas trabalham em uma parceria para ver o futebol feminino crescer e alcançar as categorias de elite ou recebem apenas uma ajuda de custo, sem qualquer legitimação”, diz.

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A educadora ressalta que o acordado, em 2019, era que elas fariam um trabalho de base, junto de treinamento, supervisão e técnica do futebol profissional, e, ao chegar em 2020, aconteceria o investimento no time feminino. O presidente preferiu, no entanto, relegar esse trabalho à categoria de não existência. “Fico triste com a fala dele por não me reconhecer como treinadora e, pior, justificar que só me deu uma oportunidade por eu ser mulher. Foi machismo, misoginia”, rebate. “Ele se perdeu nos argumentos em tentar negar um fato comprovado, porque as meninas postaram nas redes sociais fotos do treinamento dentro do clube”, completa.

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Vem calçar minha chuteirinha

A conexão de Rose Costa com o futebol se estabeleceu desde a infância. Seja na rua, na escola ou no “campinho”, lá estava ela junto de amigos e familiares que a apoiavam a seguir seus sonhos. Não havia discriminação em relação à acreana praticar e gostar tanto do esporte. As barreiras do machismo, contudo, estiveram impostas com frequência na questão profissional, mas isso nunca a desanimou. “Enfrentei essa discriminação por parte de pessoas fora do meu círculo de relacionamento e nunca me incomodei com o que elas pudessem pensar. É o meu corpo, minhas regras, minha prática esportiva e minhas chuteiras”, indaga. “Eu costumo falar para quem for: ‘gosta de falar mal de mim, então vem calçar minha chuteirinha!’. Aí o pessoal ri”, brinca.

A paixão por jogar futebol persistiu durante o período em que estudou na Universidade Federal do Acre (UFAC), que à época era a única instituição com o curso de Educação Física. Na faculdade, ainda realizou a licenciatura plena e, mais tarde, fez especialização em gestão e planejamento. Durante a vida acadêmica, ela competia nos jogos universitários e nunca foi atleta profissional, principalmente por não haver essa cultura do futebol feminino em Rio Branco. “Nós temos grandes talentos que não tiveram oportunidades. Este que não é meu caso, mesmo sempre tendo jogado bem, acredito que sou melhor treinadora.”


“Enfrentei essa discriminação por parte de pessoas fora do meu círculo de relacionamento e nunca me incomodei com o que elas pudessem pensar. É o meu corpo, minhas regras, minha prática esportiva e minhas chuteiras”

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(Pétala Lopes/Fotografia)

A partir de então, ela começou sua trajetória sob o fundamento do esporte escolar, marcada pela longa história no Colégio Acreano, uma das escolas mais tradicionais da capital. Rose já está há mais de 20 anos na instituição, na qual chegou a ser diretora por oito anos e vem em uma crescente de conquistas de títulos no futebol e futsal feminino. De uns quatro anos para cá, o interesse das meninas pelo treinamento tem sido muito grande na cidade e ela não dá conta de trabalhar com todas as “escolinhas” que a procuram, pois precisa conciliar com a carga horária da docência.

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Já o time dentro de casa, sua família, convive lado a lado de suas conquistas na profissão e a apoia em quaisquer circunstâncias. Casada com Adalberto Rangel e mãe de quatro filhos – Rachel, Roberto, Luís Matheus e Roberta Caroline –, já no período de faculdade ela levava o mais velho para jogar futebol ao seu lado. Para além da imagem de uma mulher e treinadora determinada, Rose tem “pílulas” recorrentes para acabar com o estresse: a prática de atividades físicas, como caminhada e academia. Se não está malhando, tem o prazer em reunir as pessoas que ama para uma boa conversa e comida, preparada por ela, e também gosta muito de escrever e ler.

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(Pétala Lopes/Fotografia)

Quero que elas se amem

Formiga, Marta e Cristiane são algumas das jogadoras que inspiram o dia a dia da treinadora. Mas essa lista não para por aí e se mostra ainda mais especial. “Admiro as que não são conhecidas, meus pequenos talentos daqui: a minha Lorrana, a minha Lili. Todas as minhas ‘ídalas’, minhas acreanas”, reflete, emocionada. É por elas e muitas outras que Rose trata sua carreira com tanto amor. “Tenho encorajado as meninas, ao longo da minha história, a praticarem não só o futebol, e sim, a serem o que são de verdade, a se entenderem, a se amarem e a se respeitarem.”

A ex-técnica do Rio Branco-AC enxerga o futebol como uma porta de liberdade e de autoconhecimento para a mulher, que pode ser tudo o que quiser, sem discriminação. Acima do esporte, ela ensina sobre respeito e amor. A partir dele, busca resgatar crianças que não têm condição nenhuma, nem mesmo de estarem na escola. “Aprendo muito mais do que ensino, tenho certeza.” O desafio de incentivar o maior número de meninas no Acre perpassa por uma série de barreiras, em especial a falta de investimentos. A maioria das crianças que joga em times profissionais do estado trabalha o dia inteiro, treina na parte da noite e, aos finais de semana, participa das competições. Sem dinheiro, não há como haver dedicação exclusiva aos treinos.

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No caso da treinadora, ela exerce uma carga horária de trabalho como professora e, nas horas vagas, dedica seu tempo aos estudos das técnicas para a prática, reservando o sábado e o domingo para os jogos. “É esdrúxula essa lógica de não poder se empenhar no que você sabe fazer”, acrescenta. Agora, com o maior número de mulheres no futebol profissional, muitas são levadas às regiões sul e sudeste, que reconhecem e investem um pouco mais na categoria, apesar de o valor ainda ser expressivamente inferior em comparação com o masculino.

É sempre o futebol masculino’

O feminismo, ou melhor, a consciência sobre o ambiente machista em que estava inserida, entrou na vida da treinadora por meio de uma atleta que ela admira até hoje. “Eu trabalhava, na maioria das vezes, com futebol masculino, no futsal”, recorda. Em uma determinada competição, estava no comando de um time feminino que foi destruído pela equipe adversária, em especial por causa de uma jogadora. “Quando fui conversar com ela, me respondeu: ‘a senhora é Rose Costa?’ Tenho muita vontade de treinar com você. A senhora não treina na categoria de campo profissional, apenas escolas?”, lembra.

Aquela pergunta não saía de sua cabeça. “Fazia um trabalho nas escolas, mas, depois disso, a possibilidade ficava muito restrita a essas meninas e a grande maioria delas desistia”, afirma. Foi então que tomou a decisão de trabalhar em clubes profissionais e abrir portas para que as adolescentes fossem inseridas no futebol, levando essa mesma ideia para outros professores e professoras. “Essa atleta, que um dia, com certeza, será destaque nacional, é quem me fez adentrar na área profissional e atuar pela ampliação da visibilidade feminina no esporte em Rio Branco”, ressalta. Para ela, as próprias mulheres têm uma mentalidade que recai ao futebol masculino e reproduzem esse tipo de machismo. “Quando vamos trabalhar com futebol, sempre pensamos no masculino. Isso é bem complexo.”

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O machismo vem de forma muito mais frequente por parte dos outros na carreira futebolística, composta em sua maioria por homens. A acreana nunca sofreu nenhuma situação de discriminação enquanto atleta, porém, como técnica, são incontáveis as vezes em que isso ocorreu. Em sua experiência ao treinar equipes masculinas, sempre que entrava na quadra, percebia os olhares e comentários: “Mas o que essa mulher está fazendo aqui? Ela não entende nada”. Isso não somente em seu estado, mas também em viagens para competições nacionais. “Era como se eu não tivesse direito e qualificação para estar naquela posição.”

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(Pétala Lopes/Fotografia)

Um dos episódios mais recentes foi revertido por Rose com bom humor, traço marcante de sua personalidade. Na última competição que participou, sua equipe teve o melhor resultado da escola: ficou em sétimo lugar entre as 26 participantes, mesmo sem condição financeira. Antes de o jogo começar, um dos árbitros foi em sua direção e falou, de forma extremamente polida: “Professora, se a senhora tiver qualquer dúvida em relação às regras, estou à disposição”. A técnica olhou para ele, com tranquilidade, e retrucou: “Idem. Se o senhor tiver alguma questão sobre as regras e sistema de jogo, me procure”. Não contente, o homem ainda fez a tréplica, tentando consertar o teor de seu comentário, o que só piorou: “Achei a senhora muito bonita para ser técnica”. “Não me calei. Afirmei a ele: ‘agradeço pelo elogio, mas a minha capacidade não está relacionada ao fato de eu ser mulher ou bonita’”, declara.

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(Pétala Lopes/Fotografia)
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Realidade do Acre

A realidade do Acre para meninas e mulheres que sonham em atuar no futebol não é nada favorável. O espaço e o fomento à prática são praticamente inexistentes: as categorias de base não têm trabalho efetivo com times femininos, pois a lógica das “escolinhas” funciona somente para o masculino – Rose conta, inclusive, que há jogadoras que vieram da “escolinha” de meninos. Não havia horário específico para o treino das garotas, então, as poucas que persistiam tinham de jogar ao lado deles. Quando se trata do futebol dentro dos clubes, os poucos exemplos que atuam nessa causa utilizam aquela máxima de convidar a atleta já pronta ou que joga em outros espaços para compor o elenco.


“Quero olhar para trás e ver que ajudei muitas a serem jogadoras, ou ao menos a entenderem a importância desse esporte para o movimento de direitos das mulheres”

A falta de trabalho de formação das meninas, que  Rose fazia no Rio Branco-AC, se deve aos investimentos precários ao futebol no estado, que acaba privilegiando o masculino na grande maioria das vezes. Mas isso não desanima a treinadora: embora tenha deixado o comando da equipe por um motivo ético maior, ela planeja recuperar esse projeto com as atletas até o final deste ano. “Preciso definir como isso vai ocorrer. O que posso afirmar é que essa ideia de investir na categoria de base e na profissional não vai parar, seja por meio de parceria com os clubes ou mesmo ao criar um time do zero, cujo foco será nas mulheres, o que não acontece em nenhum outro lugar do país”, diz.

O apoio que recebeu nas últimas semanas por parte das atletas, de torcidas organizadas, como a do Corinthians, e da CBF feminina a fez seguir na luta por seus objetivos como treinadora. Para ela, a contratação de um feminicida não apagará toda sua trajetória em busca de espaço para o futebol feminino. “Eu vou continuar e acredito na força do meu trabalho. Movo montanhas se for preciso. Devo isso às meninas do Acre”, crava. Ela finaliza com uma mensagem a todas aquelas que a enxergam como um exemplo: “Vocês vão enfrentar diversas dificuldades, mas, a cada porta que fechar, essa mesma se transformará em oportunidade. Um dia, quero olhar para trás e ver que ajudei muitas a serem jogadoras, ou ao menos a entenderem a importância desse esporte para o movimento de direitos das mulheres”.

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Informo que à partir desta data ME DESLIGO da função de técnica/treinadora do RIO BRANCO Futebol Clube FEMININO, motivo: a contratação do Goleiro Bruno para compor o elenco da equipe masculina do nosso ESTRELÃO. Quero aqui esclarecer que entendo o momento por qual passa o Rio Branco e a grande maioria dos clubes de futebol acreanos, as dificuldades financeiras como também a oportunidade da contratação do Goleiro Bruno, bem como, ainda, a sua “boa” intenção, no sentido de tornar a equipe competitiva e forte. Deixo minha gratidão pela oportunidade, mas preciso esclarecer também que minha história de vida como mulher e profissional me impendem de permanecer no Rio Branco. Como disse, não questiono e nem tampouco julgo suas decisões, mas preciso respeitar a minha história e minhas crenças de que educamos pelo exemplo, e no esporte de rendimento, atletas são figuras públicas, e socializam e influenciam comportamentos, e meu humilde entendimento é que essa oportunidade dada ao Goleiro Bruno, em nossa amada equipe, legitima a ineficiência das leis em nosso país, socializa ainda mais a impunidade aos feminicidas e por fim, macula a imagem da nossa equipe, pois o crime orquestrado por ele é reconhecidamente hediondo, e isso não deve ser personificado na função de atleta de rendimento do nosso clube que tem uma história linda na construção de grandes atletas que são espelhos para toda a nossa juventude e sociedade. Entendam: NUNCA FOI E NUNCA SERÁ SÓ FUTEBOL!!!

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As imagens que você viu nessa reportagem foram feitas por Pétala Lopes, que fotografou Rose pelo Zoom. Confira mais de seu trabalho aqui.

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