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A Sessão da Tarde da família canábica

Totalmente independente e falado em três línguas, filme brasileiro The Smoke Master mistura kung fu e maconha em uma comédia pronta para ganhar o mundo

por Artur Tavares Atualizado em 16 Maio 2023, 14h46 - Publicado em 6 dez 2021 01h24
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(Clube Lambada/Ilustração)

uem faz exercício sabe como é bom fumar um antes da prática. Quando a brisa bate, o corpo relaxa, a mente fica mais focada, o tempo passa e o cansaço dá uma aliviada. Foi com a mente longe, enquanto treinavam kung fu, que André Sigwalt e Augusto Soares tiveram pela primeira vez a ideia de fazer um filme que misturasse artes marciais com a maconha.

O que era um sonho maluco dos dois cineastas, amigos de faculdade e profissionais do audiovisual há duas décadas, está se tornando realidade. Depois de oito anos escrevendo, produzindo, gravando e finalizando The Smoke Master, o filme está pronto para ser lançado, mas falta dinheiro. Augusto e André pagaram o filme do próprio bolso, não contaram com incentivos fiscais, financiamento público, investimento de produtoras ou de patrocinadores da iniciativa privada. Fizeram cinema da melhor qualidade na raça, falado em português, mandarim e inglês, com boas atuações, um roteiro sólido e engraçado, além de cenas de ação impecavelmente coreografadas.

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(The Smoke Master/Divulgação)

“É ao mesmo tempo uma brincadeira com filmes de kung fu e com filmes stoner, tentando juntar esses dois nichos para romper as bolhas, se tornar um filme para a família maconheira dos anos 2000”, explica Soares. “É um filme para a Sessão da Tarde da família canábica, que tem uma pegada comercial, tem a maconha, mas não é panfletário.”

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Uma viagem

Na história de The Smoke Master, a vida de Gabriel (Daniel Rocha) vira de ponta cabeça quando ele está prestes a completar 27 anos. Seu aniversário marca o início da caçada de uma lendária ordem de assassinos chineses contra sua vida, fruto de uma vingança contraída pelo seu avô, que tentou roubar dos vilões os segredos do Tao Lu da Fumaça, um estilo de luta mortífero dominado por poucos maconheiros ao redor do mundo.

Em sua jornada, Gabriel precisa encontrar o Mestre da Fumaça, protagonizado pelo maravilhoso ator chinês Tony Lee, e aprender os segredos das Oito Baforadas, permitindo que ele lute de igual para igual contra seus perseguidores.

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(The Smoke Master/Divulgação)

É nesse momento que o filme brilha realmente. Se no primeiro ato as artes marciais dão o contexto da história, a interação entre Rocha e Lee – que nunca tinha fumado um – arranca boas gargalhadas. The Smoke Master se torna Karatê Kid maconheiro, e o treinamento de Gabriel envolve aprender a dichavar uma flor de maconha, enrolar na seda, fumar no bong, cultivar, diferenciar cannabis sativa de cannabis indica, e, por fim, executar golpes perfeitos que explodem o coração dos inimigos.

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“Montamos um grupo de estudos de filmes de kung fu só entre amigos maconheiros”, conta André, sobre a idealização do filme. “Por um ano, nos reunimos todas as segundas-feiras para assistir um filme maluco.”

The Smoke Master

A grande inspiração para The Smoke Master é um clássico de Jackie Chan chamado Drunken Master, que aqui no Brasil foi traduzido como O Mestre Invencível. No filme, lançado em 1978, Chan representa um dos melhores papéis de sua carreira como um lutador que se aproveita da malemolência causada pelo álcool para criar golpes de kung fu. A diferença é que o estilo do Punho Bêbado realmente existe, enquanto Sigwalt criou o Tao Lu da Fumaça totalmente do zero: “Sou praticante de duas artes marciais chinesas tradicionais, o Bagua Zhang e o Xing Yi Quan. Passei boa parte dos últimos 10 anos entre China, Hong Kong e Taiwan estudando e pesquisando esses estilos”.

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Experiência e aprendizados

Não é só de kung fu que Sigwalt e Soares entendiam antes de fazer The Smoke Master. André é diretor de fotografia de cinema, tendo trabalhado com filmes como “Skull – A Máscara de Anhangá” e “A Percepção do Medo”, ambos disponíveis no Amazon Prime, enquanto Augusto mantém uma produtora de vídeo, onde escreve, produz e dirige vídeos para fins corporativos e publicitários para grandes clientes como Pfizer, Ernst & Young e BRF.

O que eles não sabiam, no entanto, era que produzir um filme na raça era mais difícil do que imaginavam: “Primeiro, pensamos que gastaríamos X. Sabíamos que faríamos um filme de guerrilha, que dependia muito mais da aceitação da equipe, dos amigos, das pessoas que queriam entrar no projeto porque ele era legal, e não pelo dinheiro, mas gastamos quase quatro vezes mais”, conta Augusto.

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(The Smoke Master/Divulgação)

“No começo, não tentamos patrocínio de propósito, para ter liberdade total. Esses prêmios governamentais são super importantes, não sou contra, mas pensamos que não queríamos lançar o filme pra vir alguém apontar o dedo na nossa cara e falar que usamos dinheiro público para gravar um filme sobre maconha, sabe?”, completa André.

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O caminho foi bem até todo o filme ter sido rodado entre a cidade de São Paulo, a Serra da Bocaina, também no estado paulista, e a China. “Vimos o buraco que estávamos quando caímos na pós-produção. Porque é muito caro, é muito equipamento para ficar bom”, diz André. “Conseguimos um patrocínio com uma empresa chinesa de tecnologia, que vendia seus produtos na 25 de março. Estava apalavrado, fechado no fio do bigode. O dono, um senhor chinês, assistiu o teaser, entendeu a brincadeira, adorou. Mas veio a pandemia, a fábrica fechou temporariamente e logo depois o comércio no Brasil também. Ele decidiu deixar para o próximo filme.”

Agora, André e Augusto estão inscrevendo o filme em festivais de cinema internacionais ao mesmo tempo que procuram um agente de vendas lá fora. Por aqui, as conversas estão encaminhadas principalmente com canais de streaming. “Queremos não só recuperar o dinheiro, mas possibilitar uma continuidade”, diz Augusto. “Nós pensamos em vários spin offs para a história: Quem é esse mestre, de onde ele veio? Se o Gabriel tiver um filho, será que a maldição vai continuar? Ou, a maldição recairá sobre a sobrinha dele? E qual será o destino de Tereza, que já é também uma Mestra da Fumaça? Nós queremos fazer várias coisas, até mesmo um guia dos movimentos do Tao Lu, vídeos explicativos com a coreografia na íntegra.”

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(The Smoke Master/Divulgação)

Um world movie

É inegável que a dupla mire águas internacionais com The Smoke Master, principalmente o mercado asiático. Os filmes clássicos de kung fu estrelados por Jackie Chan, Bruce Lee e muitos outros que foram absorvidos pelo Ocidente eram filmados principalmente nas regiões insulares de Hong Kong e Taiwan em uma época em que ambos os territórios não viviam tanto sob o domínio do comunismo chinês, enquanto na China Continental produções ao estilo “O Tigre e o Dragão”, um gênero conhecido como Wuxia, voltado para a mitologia regional, sempre foram mais comuns. Mas, o que significa fazer, no Brasil, um filme de uma temática tão cara aos chineses, como é o kung fu, e colocar a maconha como elemento central?

“Descobrimos que o universo dos filmes de kung fu é muito prolixo. São muitos nichos, como aqueles com elementos sobrenaturais, com sexo, filmes só de porradaria”, explica Augusto. “Ao mesmo tempo, existe muita aceitação com a comédia. Para nós, pode parecer um pouco de provocação inserir a maconha, mas as poucas vezes que mostramos parte do material para chineses, eles entenderam com naturalidade. Para eles, fica claro que é uma brincadeira. Além disso, concordam que a maconha é realmente um elemento da natureza.”

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(The Smoke Master/Divulgação)

André conta a lenda da deusa Magu, uma deusa chinesa ancestral conhecida como a Donzela do Cânhamo, e também que alguns dos primeiros indícios de plantas da cannabis no mundo estão na região da China e do Sudeste Asiático, há mais de cinco mil anos: “Culturalmente, a maconha é bem aceita na China, diferente de outros países em que a pessoa vai para a forca [risos]. Eles são rígidos com outras coisas, como quem contesta o regime ou a lógica política deles.”

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Para além do mercado asiático, os cineastas ainda estão batalhando para colocar The Smoke Master nos mercados europeu e americano. “Estamos tentando entrar no Festival de Cinema de Roterdã. Nossa chance é quase zero, mesmo em um festival de ficção em um país que entendeu a maconha há muitos anos. Fomos conversar com algumas pessoas que nos disseram que a possibilidade era muito pequena não porque o filme é ruim, mas porque não é o filme brasileiro de exportação. Não tem favela, não tem samba, não tem o interior nem criminalidade”, diz André.

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(The Smoke Master/Divulgação)

Ele continua: “Sinto que os festivais olham para nós dessa forma. Meu receio é que a gente vire um elefante branco, mas tomara que não. Porque os festivais de gênero falam que não tem tanto sangue, não tem terror, que é o estilo mais comum, não é tão agressivo. E os festivais mainstream não entendem a mistura de maconha com kung fu, um filme falado em chinês, inglês e português. Rola uma estranheza no mercado, que ainda não está preparado para receber um filme assim.”

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De quem era a plantação?

Em um país tão careta e atrasado quanto o nosso, era de se esperar que a maconha usada na gravação de The Smoke Master fosse falsa – pelo menos quando a planta aparece em cena, já que não posso atestar pelos becks fumados pelos atores em cena. No entanto, a flor em toda sua glória aparece de relance em algumas poucas cenas. Buds belíssimos, gordos e bem resinados, para ser mais exato.

“É tudo prop. É a grande arte do cinema”, diz André entre risadas. “Usamos alfafa, lúpulo, várias plantas”, completa Augusto. “Pesquisamos quem já tinha feito filmes com essa temática, ligamos para eles, mas não foi muito simples, as pessoas não abrem muito o jogo de como fazer.”

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(The Smoke Master/Divulgação)

Embora não haja ativismo no filme, os cineastas não negam seu posicionamento em relação à maconha: “É tanta benfeitoria, tanta coisa boa que surgiu da maconha. É incoerente proibi-la”, diz André. “Quem nunca fumou, viu pastor falando ou político na TV, imagina uma coisa asquerosa. E é uma planta linda, que está presente na história o tempo todo. Porque pego uma laranja ou uma uva no pé e não posso consumi-la?”

“Fumar maconha acontece em momentos de socializar. O Drunken Master aconteceu nos anos 1970, o álcool já é uma droga socialmente aceita há muito tempo. Você toma uma cervejinha do lado do seu filho, mas se esconde para fumar maconha. Não que a gente queira que as pessoas saiam fumando na frente de ninguém, mas é demonizado, você se esconde”, diz Augusto, que completa em tom de brincadeira. “Você passa metade da vida escondendo que fuma maconha dos pais, e a outra metade dos filhos.”

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(The Smoke Master/Divulgação)

Se bem aceito, The Smoke Master abre um novo paradigma no cinema nacional, a prova de que é possível empreender – ainda que a duríssimas penas – para realizar um sonho. E digo isso sem glamourizar um mercado liberal, mas porque realmente há a subversão de amarras quando a coisa se dá assim. É claro que isso ainda é um privilégio de poucos, mas mostra que a censura hipócrita é menos violenta, de fato, quando não há incentivo público envolvido.

Por enquanto, o filme continua sendo um sonho, mas já é incrível poder ter assistido o filme em uma tela de cinema. Sigwalt e Soares merecem atenção do mercado e respeito da crítica especializada. São realizadores antenados com nossos tempos, livres das amarras dos road movies e dramas brasileiros, cineastas competentes, criativos e inovadores. Que possamos ver sua realização em cartaz no ano que vem.

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