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Espreme que sai sangue

No YouTube e em podcasts, o gênero dos crimes reais tem sido dominado por mulheres. Qual o fascínio por trás de revisitar grandes mistérios?

por Artur Tavares Atualizado em 15 set 2021, 18h05 - Publicado em 23 ago 2021 23h41
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(Clube Lambada/Ilustração)

rua mal iluminada pelos postes meio decadentes está silenciosa. Nos prédios, são poucas as luzes ainda acesas nas janelas. A noite já está em suas horas mais profundas. De repente, um tiro, e os cães da vizinhança começam a latir. Ali perto, no parque, o sangue começa a escorrer pelo gramado. Mais uma vítima do misterioso assassino cai sem vida no chão.

Ligue a televisão e navegue pelo catálogo dos principais serviços de streaming e você perceberá que os principais lançamentos e os destaques do momento são os seriados e documentários dedicados a crimes reais: Elize Matsunaga, O Assassino de Golden State, o Filho de Sam, o culto Nxvim. Os temas não são necessariamente novos ou inéditos, mas o sucesso é estrondoso. No YouTube, garotas que falam sobre o assunto têm milhões de inscritos em seus canais, e alguns podcasts fecharam em 2020 entre os 10 mais ouvidos sobre qualquer assunto, em todo o Brasil.

No gênero do true crime, o roteiro é conhecido. Serial killers violentos, seitas bizarras, sequestros, estupros, mutilações. Se as cenas não são as mais agradáveis, no Brasil há uma esmagadora maioria de mulheres que produz conteúdo sobre o tema e também na audiência. São elas que curtem falar sobre o tema, debater a violência e se enveredar pelas mais diversas teorias sobre crimes sem solução. Parece fascinante, mas há um motivo para que seja assim?

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(Modus Operandi/Arquivo)

Final girls

“Tem uma teoria que esse interesse vem do fato de que geralmente nós somos as vítimas. A maioria desses crimes de assassinato são de homens contra mulheres. Talvez as mulheres queiram um pouco de vingança”, diz a jornalista Carol Moreira, que comanda o Modus Operandi junto com a publicitária Mabê Bonafé.

Programa de sucesso meteórico no Spotify, o Modus estreou em janeiro de 2020 e terminou o ano como o oitavo podcast mais ouvido do Brasil, o primeiro no gênero do true crime. Com audiência que chega a 75% de mulheres, o programa destrincha semanalmente histórias brasileiras e internacionais das mais variadas: feminicídios, crimes em série, desaparecimentos, assassinatos infantis.

“A maioria desses crimes de assassinato são de homens contra mulheres. Talvez as mulheres queiram um pouco de vingança”

Carol Moreira, jornalista
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O sucesso da dupla não é exclusivo. No YouTube, Jaqueline Guerreiro mantém o hiper bem-sucedido canal “Nas quartas usamos rosa e as quintas são misteriosas”. Com 3 milhões de inscritos, ela é um dos principais nomes do true crime na plataforma – e de vez em quando ainda fala sobre outras paixões, como maquiagens e roupas. Se a primeira vista parece um contrassenso, os números não mentem, e no final do dia seu público para todas as temáticas é o mesmo.

Assim como Carol, Jaqueline tem apenas uma teoria sobre o fascínio feminino sobre o tema: “A maioria dos casos, os mais famosos, envolve as mulheres. Talvez seja um pouco por isso, porque elas querem aprender, querem se policiar, não dar bobeira”, ela diz. “Acho que tem também uma coisa de preferir ouvir mulheres contando true crimes, assim como eu prefiro. Não sei se é a forma que abordamos os casos, ou se é simplesmente porque sou mulher. Acho que as mulheres se identificam, sabe?”

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(Jaqueline Guerrero/Arquivo)

Visibilidade

Tanto para a dupla Carol e Mabê quanto para Jaqueline, o true crime evoluiu de uma paixão e tornou-se um negócio lucrativo. Depois de uma websérie para a Netflix, o Modus Operandi foi sondado por diversas editoras e deve se tornar livro em breve. Já a comandante das Quintas Misteriosas conseguiu realizar um sonho antigo, o de abrir uma marca de roupas.

Para elas, o sucesso vem do respeito com que tratam os criminosos e as vítimas. Diferente da narrativa “mundo-cão” do noticiário policial cotidiano, o conteúdo que elas produzem se aproxima mais da literatura e da ciência: “Aqui no Brasil tem essa coisa de bandido bom é bandido morto. Nós gostamos de explicar o que levou a pessoa a cometer o crime. O que aconteceu? O criminoso foi abusado, não tinha família, teve uma infância terrível. Muitas vezes são pessoas completamente desamparadas pela sociedade”, diz Carol.

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Jaqueline concorda que, para os fãs de true crime, o que interessa é a história em si: “Acredito que é mais curiosidade. Não é que a pessoa goste dos crimes, mas sim de sanar essa curiosidade de entender porque a pessoa cometeu o crime, de saber porque não está solucionado, o que acontece por trás de toda a situação.”

“Não é que a pessoa goste dos crimes, mas sim de sanar essa curiosidade de entender porque a pessoa cometeu o crime, de saber porque não está solucionado, o que acontece por trás de toda a situação”

Jaqueline Guerreiro, jornalista
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(Bel Rodrigues/Arquivo)

Além da imaginação

Se os crimes reais estão bombando, as histórias ficcionais de suspense e terror também nunca saíram de moda. Dona de um clube de leitura dedicado à Agatha Christie, Bel Rodrigues é outro nome que vem se projetando como um dos principais do gênero no YouTube.

Com quase 1 milhão de inscritos em seu canal – o maior sobre literatura no Brasil –, Bel não distingue o fascínio do público entre crimes reais e ficções: “No geral, existe uma vontade grande de entender as vertentes de uma situação extrema. As pessoas se interessam pelo assunto porque tendem a crer que a maldade é intrínseca ao ser humano, real ou fictício, e que atos horríveis só podem ser cometidos por monstros. Mas não são”, ela diz. “Acho muito interessante quando os leitores buscam entender o cerne de uma situação ou ato, principalmente num assunto tão delicado.”

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A youtuber conta que começou a fazer vídeos para debater literatura porque não tinha amigos que gostavam tanto de livros quanto si própria, e que enveredar para os gêneros de mistério e terror foi apenas uma consequência devido aos seus próprios gostos. No entanto, Bel não acha que os gêneros possam ser considerados best-seller aqui no Brasil: “Falta incentivo, políticas públicas que realmente são voltadas para a criação de mais leitores, governantes que se importam com a educação e cultura de sua população. De 2015 a 2021, constatou-se uma diminuição de mais de 4 milhões de leitores. Fazer essas coisas é um começo bem pequeno para que nosso mercado literário continue respirando”, ela diz.

“As pessoas se interessam pelo assunto porque tendem a crer que a maldade é intrínseca ao ser humano, real ou fictício, e que atos horríveis só podem ser cometidos por monstros”

Bel Rodrigues

“Esse dado não é por acaso: vivemos uma era de sucateamento. Onde pessoas do mais alto escalão vêm a público chamar qualquer livro de subversão, atribuindo a história a regimes políticos e mais um monte de absurdos. Essa negação, obscurantismo e negligencia nos deixa cada vez mais à deriva, recorrendo às nossas redes para explicar o básico: a literatura é engrandecedora. Ela quebra qualquer barreira de discussão incendiada pela pequenez e nos leva sempre à nossa melhor versão. Vivemos tempos onde o óbvio precisa sempre ser dito, né? A literatura resistiu por anos e anos e vai continuar resistindo”, conclui.

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(Redação/Colagem/Ilustração)

Para que não aconteça mais

Se no Brasil a audiência de histórias de crimes chega a ser 75% feminina, a verdade é que o país tem números assustadores quando elas são as vítimas. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, foram 1.350 casos de feminicídio apenas em 2020, uma morte a cada 6 horas e meia no país, e um aumento de 0.7% de casos em relação a 2019.

Para Bel Rodrigues, há uma responsabilidade entre as mulheres que falam sobre crimes (reais ou ficcionais) em debater essa doença social: “É meu trabalho enquanto pessoa responsável por sua influência, principalmente porque muita gente vem me perguntar a respeito da minha opinião acerca desses assuntos. Isso diz que elas querem ouvir e confiam no que tenho a dizer, muito pelo meu conteúdo e formação, mas também porque buscam solidificar o pensamento crítico.“ Ela conta que prefere reservar essa conversa principalmente em suas lives, e diz que “o negócio é saber dosar, porque estamos enfrentando um período conturbado para todo mundo.”

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No Modus Operandi, Carol Moreira e Mabê Bonafé já foram acusadas de “romantizar certas situações”, mas também acreditam que existe um dever em falar sobre violências contra mulheres, e que a verdadeira audiência está interessada no assunto: “Quem escuta nosso podcast entende nossa vibe. Falamos sobre feminicídio, estupro, sobre colocarem a culpa nas vítimas, inclusive em julgamentos, sobre machismo na mídia. Há machismo quando as mulheres são as vítimas, mas, quando cometem os crimes, colocam uns nomes bizarros, tipo ‘a ninfeta de não sei o que lá’”, diz Moreira.

Curioso é notar que Carol nos concedeu essa entrevista apenas poucos dias antes da traficante de drogas Lorraine Cutier Bauer Romeiro ser presa em São Paulo e ganhar projeção nacional com um apelido bastante peculiar para uma garota que movimentou meio milhão de reais em crack no centro da maior metrópole da América do Sul, o de “Gatinha da Cracolândia”.

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“Há machismo quando as mulheres são as vítimas, mas, quando cometem os crimes, colocam uns nomes bizarros, tipo ‘a ninfeta de não sei o que lá'”

Carol Moreira, jornalista

Ao falar sobre Elize Matsunaga, que matou seu marido Marcos em 2012 e acaba de ganhar uma série documental na Netflix, Carol mostra que o machismo não é novo: “O documentário é interessante porque coloca um pouco a visão dela, do que ela estava sentindo. E, ok, ela matou o marido, mas por quê? O que rolou antes? Se você ver a mídia, só falavam em esquartejamento, em prostituição…No julgamento, ela foi com um blazer preto e uma trancinha, e saiu sobre seu look na imprensa. Quando foi que alguém falou do look de algum assassino do sexo masculino?”

Será que, quando as mulheres não forem mais vítimas de tanta violência, elas deixarão de ser o maior público-alvo das histórias de crime? Torcemos para que chegue o dia em que a gente veja isso acontecer.

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