Senhor, não, que eu sou um menino. Tenho alma de garoto, um boy”. É assim que Walter Firmo me responde quando somos apresentados, e assim toda a minha apreensão em conversar com um dos maiores nomes da fotografia nacional vai por água abaixo instantaneamente. Aos 84 anos, quase 70 de carreira, Firmo acaba de ganhar uma retrospectiva de sua obra no IMS Paulista. “Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito” é uma reunião de mais de 260 de suas fotografias, um trabalho que desde os anos 1950 dá destaque para a negritude no Brasil.
Nascido no Rio de Janeiro e criado no Pará, Firmo começou sua carreira como fotojornalista, mas seu contato com o movimento negro norte-americano fez com que ele reconhecesse sua própria negritude, ainda nos anos 1960. De volta para o Brasil, ele nunca mais parou de fotografar os pretos. Entre anônimos e famosos – Firmo dedicou boa parte de sua carreira à música brasileira –, suas imagens são um retrato do Brasil que muitas vezes esquecemos que existe, de tradições populares e culturais ricas, coloridas, diversas: “Meu mundo é esse aqui, da fantasia, ligado à questão de uma confraria racial da qual eu pertenço, incensados como totens do bem, trabalhadores, dignos”, ele conta.
Se a expectativa era a de encontrar um senhor quase que envolvido em uma redoma, dada sua importância, a surpresa de vê-lo passeando pelos dois andares de sua exposição durante os dias de montagem é um alívio. Firmo anda sem máscara para proteger-se da covid-19, cumprimenta a todos, conversa animadamente com jornalistas, montadores, curadores. “Saindo daqui vou tomar um vinho, ou algo on the rocks”, ele me confidencia, entre risadas. Sua disposição é invejável, digna de quem ganhou a vida atrás de uma câmera, da necessidade de estar sempre atento para clicar o melhor momento.
“Meu mundo é esse aqui, da fantasia, ligado à questão de uma confraria racial da qual eu pertenço, incensados como totens do bem, trabalhadores, dignos”
Walter Firmo
Sua memória tem a mesma clareza, e assim Firmo conta o que o motivou a abandonar as redações para perseguir um trabalho que fosse ao mesmo tempo artístico e militante: “Eu era muito inocente politicamente. Eu só fui me ater que esse país era safado em relação a essa exaltação de que só valem os brancos, e que os negros não fizeram esse país, quando morei em Nova York. Trabalhava na revista Manchete na época do Black is Beautiful, do preto é poderoso. E então um dia o diretor da sucursal me disse: ‘Walter, chegou aqui uma correspondência para você e queria te mostrar.’ Ele puxou o papel, fui ler e era de um fotógrafo, talvez enciumado, protestando: ‘Como vocês têm a coragem de contratar um mau profissional, analfabeto e negro?’. Ali caiu a minha ficha. Deixei meu cabelo crescer, voltei para o Brasil, e aí comecei a politizar meu trabalho em relação à causa.”
Era 1968, no auge do flower power, dos Panteras Negras, de Angela Davis, da luta contra a Guerra do Vietnã e das ditaduras sul-americanas. Se Walter tinha tudo para voltar inflamado para o Brasil, não foi bem assim: “Aconteceu um momento de descoberta e de exaltação a mim mesmo. Porque… eu não pensava que era branco, mas que todo mundo era igual. Eu estava indignado, mas nunca joguei pedra em vitrines. Porque minha maneira de falar através do silêncio das fotografias é fazer uma exaltação aos negros.”
E assim se construiu seu acervo tão fantástico, cuja parte ínfima está sendo exibida agora pelo Instituto Moreira Salles. Enquanto retratava famosos como Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Cartola, Pixinguinha, Gilberto Gil e os Novos Baianos, além de ser o autor do único retrato posado do Bispo do Rosário, Walter Firmo também pôde percorrer o Brasil e o mundo retratando festejos e cotidianos de descendentes da diáspora africana.
“Eu não pensava que era branco, mas que todo mundo era igual. Estava indignado, mas nunca joguei pedra em vitrines. Porque minha maneira de falar através do silêncio das fotografias é fazer uma exaltação aos negros”
Walter Firmo
“Walter organiza nosso mundo afetivo”, explica Janaina Damasceno, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, coordenadora do Grupo de Pesquisas Afrovisualidades: Estéticas e Políticas da Imagem Negra e uma das curadoras da exposição. “E não só em termos da brasilidade, porque o Walter é um dos grandes fotógrafos mundiais. Esquecemos de dar essa dimensão. Estamos em um país de dimensão continental, com a segunda maior população negra do mundo. Então, se o Walter está fotografando isso, está retratando boa parte da diáspora negra do mundo, e como nos tornamos múltiplos nesse mundo.”