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Reencontrando afetos

Aos 84 anos, Walter Firmo ganha retrospectiva de sua carreira no IMS reforçando a importância de retratar negros no segundo país mais preto do mundo

por Artur Tavares 5 Maio 2022 01h23
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(Arte/Redação)

Senhor, não, que eu sou um menino. Tenho alma de garoto, um boy”. É assim que Walter Firmo me responde quando somos apresentados, e assim toda a minha apreensão em conversar com um dos maiores nomes da fotografia nacional vai por água abaixo instantaneamente. Aos 84 anos, quase 70 de carreira, Firmo acaba de ganhar uma retrospectiva de sua obra no IMS Paulista. “Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito” é uma reunião de mais de 260 de suas fotografias, um trabalho que desde os anos 1950 dá destaque para a negritude no Brasil.

Nascido no Rio de Janeiro e criado no Pará, Firmo começou sua carreira como fotojornalista, mas seu contato com o movimento negro norte-americano fez com que ele reconhecesse sua própria negritude, ainda nos anos 1960. De volta para o Brasil, ele nunca mais parou de fotografar os pretos. Entre anônimos e famosos – Firmo dedicou boa parte de sua carreira à música brasileira –, suas imagens são um retrato do Brasil que muitas vezes esquecemos que existe, de tradições populares e culturais ricas, coloridas, diversas: “Meu mundo é esse aqui, da fantasia, ligado à questão de uma confraria racial da qual eu pertenço, incensados como totens do bem, trabalhadores, dignos”, ele conta.

apoieSe a expectativa era a de encontrar um senhor quase que envolvido em uma redoma, dada sua importância, a surpresa de vê-lo passeando pelos dois andares de sua exposição durante os dias de montagem é um alívio. Firmo anda sem máscara para proteger-se da covid-19, cumprimenta a todos, conversa animadamente com jornalistas, montadores, curadores. “Saindo daqui vou tomar um vinho, ou algo on the rocks”, ele me confidencia, entre risadas. Sua disposição é invejável, digna de quem ganhou a vida atrás de uma câmera, da necessidade de estar sempre atento para clicar o melhor momento.

“Meu mundo é esse aqui, da fantasia, ligado à questão de uma confraria racial da qual eu pertenço, incensados como totens do bem, trabalhadores, dignos”

Walter Firmo
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(Bumba meu boi, São Luís, MA, 1994 / Walter Firmo: Acervo IMS/Reprodução)

Sua memória tem a mesma clareza, e assim Firmo conta o que o motivou a abandonar as redações para perseguir um trabalho que fosse ao mesmo tempo artístico e militante: “Eu era muito inocente politicamente. Eu só fui me ater que esse país era safado em relação a essa exaltação de que só valem os brancos, e que os negros não fizeram esse país, quando morei em Nova York. Trabalhava na revista Manchete na época do Black is Beautiful, do preto é poderoso. E então um dia o diretor da sucursal me disse: ‘Walter, chegou aqui uma correspondência para você e queria te mostrar.’ Ele puxou o papel, fui ler e era de um fotógrafo, talvez enciumado, protestando: ‘Como vocês têm a coragem de contratar um mau profissional, analfabeto e negro?’. Ali caiu a minha ficha. Deixei meu cabelo crescer, voltei para o Brasil, e aí comecei a politizar meu trabalho em relação à causa.”

Era 1968, no auge do flower power, dos Panteras Negras, de Angela Davis, da luta contra a Guerra do Vietnã e das ditaduras sul-americanas. Se Walter tinha tudo para voltar inflamado para o Brasil, não foi bem assim: “Aconteceu um momento de descoberta e de exaltação a mim mesmo. Porque… eu não pensava que era branco, mas que todo mundo era igual. Eu estava indignado, mas nunca joguei pedra em vitrines. Porque minha maneira de falar através do silêncio das fotografias é fazer uma exaltação aos negros.”

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(Maestro Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Filho), Rio de Janeiro, RJ, 1967 : Walter Firmo: Acervo IMS/Reprodução)

E assim se construiu seu acervo tão fantástico, cuja parte ínfima está sendo exibida agora pelo Instituto Moreira Salles. Enquanto retratava famosos como Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus, Cartola, Pixinguinha, Gilberto Gil e os Novos Baianos, além de ser o autor do único retrato posado do Bispo do Rosário, Walter Firmo também pôde percorrer o  Brasil e o mundo retratando festejos e cotidianos de descendentes da diáspora africana. 

“Eu não pensava que era branco, mas que todo mundo era igual. Estava indignado, mas nunca joguei pedra em vitrines. Porque minha maneira de falar através do silêncio das fotografias é fazer uma exaltação aos negros”

Walter Firmo
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(Walter Firmo, Rio de Janeiro, RJ, 1968 : Walter Firmo: Acervo IMS/Reprodução)

“Walter organiza nosso mundo afetivo”, explica Janaina Damasceno, professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, coordenadora do Grupo de Pesquisas Afrovisualidades: Estéticas e Políticas da Imagem Negra e uma das curadoras da exposição. “E não só em termos da brasilidade, porque o Walter é um dos grandes fotógrafos mundiais. Esquecemos de dar essa dimensão. Estamos em um país de dimensão continental, com a segunda maior população negra do mundo. Então, se o Walter está fotografando isso, está retratando boa parte da diáspora negra do mundo, e como nos tornamos múltiplos nesse mundo.”

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(Casal, Pai e filho na Praia de Piatã, Salvador, BA, 2000 / Walter Firmo/Acervo IMS/Reprodução)
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Black is beautiful

Firmo nunca abandonou o fotojornalismo, embora seu trabalho tenha ganho contextos de fantasia. Enquanto fotógrafo, ele manipulou e criou cenas para alcançar seu objetivo, mas mesmo nesse campo onírico nunca deixou de retratar verdades: “O fotojornalismo, na cabeça de muitas pessoas, significa tíbia fraturada, sangue. Há sempre uma coisa condicionada à tragédia, e a vida não é feita disso. É feita de outras regalias na razão de viver, de momentos especiais. Então, eu queria seduzir os leitores com essa prática e essa invencionice que sonhamos de estar numa mesma sintonia do bem, do apaziguamento das formas, de um conteúdo mais sugestivo em relação à própria arte.”

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(Praia de Piatã, Salvador, BA, c. 1995 : Walter Firmo:Acervo IMS/Reprodução)

Nesse campo onde a realidade e a ficção se confundem, o fotógrafo afirma que seu trabalho continua sendo figurativo: “Porque o belo e a exaltação da vida que merece ser vivida também são notícias. Não é só porradaria, má política”.

“Estamos em um país de dimensão continental, com a segunda maior população negra do mundo. Então, se o Walter está fotografando isso, está retratando boa parte da diáspora negra do mundo, e como nos tornamos múltiplos nesse mundo”

Janaina Damasceno
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(Missa no povoado de Iauaretê, Alto Rio Negro, PA, 1963 : Walter Firmo:Acervo IMS/Reprodução)

Pergunto a Walter como ele enxerga um retorno a certas ideologias de embranquecimento populacional, que já foram colocadas em prática nos períodos pós-Estado Novo e da Ditadura, dois momentos em que ele atuou cotidianamente na fotografia: “Hoje as coisas não estão dureza apenas para os negros. Olhe as artes, por exemplo. Estamos todos destroçados.” Mas, ele faz também uma crítica à nossa sociedade: “Já estou envelhecido e não tenho a força da razão dos jovens que vão para a rua impregnados de ordem cívica, moral e coragem de tomar porrada. Nem isso estou vendo mais, porque no meu tempo tinha UNE, a juventude ia para a rua com a coragem de tomar cacetada. Vejo uma grande covardia desses jovens.”

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(Praia de Piatã, Salvador, BA, 2002 : Walter Firmo:Acervo IMS/Reprodução)

Para ele, o problema passa justamente pela dificuldade que estamos vivendo em nos comunicar mesmo estando conectados a todo momento: “Acho que, com a facilidade do celular, hoje todos somos fotógrafos. Virou um entorpecimento, uma demasia. Mas ainda há o prazer de ver coisas que o amador não consegue realizar. Porque o buraquinho da criatividade está para quem tem e está para fazer. Senão é apenas um vômito, uma chuva de imagens que desqualificam quem tem o prazer de fazer coisas bonitas. Quando vejo esse desencantamento, acho que é um grande vômito de uma coisa fácil que a sociedade se expõe. E tem esse direito, achar que está fazendo. Mas não é bem assim. A imagem de quem tem a sensibilidade é outra coisa.”

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(Vendedor de sonhos na Praia da Piatã, Salvador, BA, déc. 1980 : Walter Firmo:Acervo IMS/Reprodução)

Futuro incansável

A juventude que Walter Firmo expressa não parece ser da boca para fora. Mesmo absolutamente realizado, ele ainda pensa em projetos novos, e completamente distintos daquilo que fez até então. “Se eu viver mais um tempo, porque estou com 84 mas aparentemente bem, vou deixar a cor de lado e trabalhar em algo que nunca me descobri totalmente, que é o preto e branco. Quero trabalhar com formato quadrado nas minhas câmeras Hasselblad e Rolleiflex, sair sem destino procurando troncos de árvore que a maré trouxe até a praia em alguns litorais do mundo. Trabalhar com a natureza, sobretudo, deixar de lado a questão humanística.”

“Isso é herança, fortuna [aponta para negros rindo em um quadro]. Do que é feita uma sociedade? Dessas suas heranças, de como nós somos. Já outras etnias são assim [ele empina o nariz]. Se acham, né? Nunca sairão assim nas fotos”

Walter Firmo
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(Cantora Clementina de Jesus, Rio de Janeiro, RJ, c. 1977 / Cantor Jamelão (José Bispo Clementino dos Santos), São Paulo, SP, 2007 / Artista Arthur Bispo do Rosário na Colônia Juliano Moreira, Rio de Janeiro, RJ, 1985 / Walter Firmo/Acervo IMS/Reprodução)

Walter não considera ser um patrimônio brasileiro, mas não esconde o orgulho de suas fotos, afirmando que elas, sim, são valiosas: “Isso é herança, fortuna [aponta para negros rindo em um quadro]. Do que é feita uma sociedade? Dessas suas heranças, de como nós somos. Já outras etnias são assim [ele empina o nariz]. Se acham, né? Nunca sairão assim nas fotos.”

Walter Firmo: no verbo do silêncio a síntese do grito fica em cartaz no IMS Paulista até 11 de setembro. A entrada é gratuita.

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(Walter Firmo por Marcio Scavone, São Paulo, SP, c. 2010 : MarcioScavone/Reprodução)
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