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Amor preto é potência

Seis pessoas contam como o amor afrocentrado mudou a forma de se relacionar e funcionou até como parte do processo de cura interior

por Alexandre Makhlouf e Beatriz Lourenço Atualizado em 13 dez 2022, 11h37 - Publicado em 8 nov 2022 13h10
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(Gustavo Nascimento/Ilustração)

A escritora bell hooks, em seu texto “Vivendo de Amor”, diz que as mazelas do sistema escravocrata impactaram nossa forma de amar e que precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar. “Eu acredito que, por isso, falar de amor entre pessoas negras é uma urgência, já que tendemos a estar sempre reagindo a violências e nos acostumamos à negativa do afeto. E o afeto é uma necessidade humana que está associada ao nosso bem estar físico e emocional”, completa Stephanie Ribeiro, arquiteta, urbanista e apresentadora do Decora, no GNT.

“Amar e se permitir ser amado também é combate a estrutura racista. Não estamos aqui falando apenas da necessidade do amor romântico, mas do amor em todas as suas esferas. Mas, no que diz respeito ao amor romântico entre semelhantes, ele precisa ser naturalizado na nossa cultura brasileira, que tomou como base o embranquecimento da população via miscigenação”, continua Stephanie.

Depois de conversarmos com seis pessoas negras sobre amor e, principalmente, o amor afrocentrado – ou seja, quando uma relação romântica envolve duas (ou mais) pessoas pretas –, não tinha outro jeito de abrir essa reportagem a não ser citando bell hooks. A autora estadunidense acredita que o amor deve ser a mediação de tudo e, através dele, podemos melhorar todas as relações. 

“Falar de amor entre pessoas negras é uma urgência, já que tendemos a estar sempre reagindo a violências e nos acostumamos à negativa do afeto. E o afeto é uma necessidade humana que está associada ao nosso bem estar físico e emocional. Amar e se permitir ser amado também é combate a estrutura racista”

Stephanie Ribeiro
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Em uma sociedade racista e preconceituosa, é claro que experimentar esse amor, seja ele qual for, também não vai ser uma experiência igualitária. Estar em uma relação inter-racial pode, em muitas instâncias, impedir que uma pessoa preta se sinta 100% compreendida por conta desse cenário. “Um relacionamento preto é também uma forma de resistência. Afrocentrar a relação é uma maneira de manter e dar continuidade ao legado da nossa ancestralidade, nossos traços, nossa identidade” explica o estudante de arquitetura Mateus Amorim.

E, na hora de correr atrás de um novo date, isso também pode dar um trabalhão. Foi pensando nisso que um grupo formado por quatro sócios lançou, em outubro, o aplicativo Denga Love, primeira plataforma de paquera exclusiva para pessoas pretas. 

“Falar sobre esse tipo de relação tem a ver com humanizar pessoas. A ideia é viver o flerte e a paquera em um espaço seguro onde o racismo não afete as conversas, como acontece em outros modelos”, diz o sócio Roger Cipó. “São modelos onde as pessoas estão livres para viver suas experiências sem que precisem se justificar ou se defender a todo momento – além de celebrar sua beleza.”

“Milhões de negros nas outras plataformas não encontram experiências nas quais eles podem existir com plenitude. A Denga Love aponta para uma urgência de mercado – as pessoas querem paquerar em ambientes seguros e isso significa existir mais plataformas assim”

Roger Cipó
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Disponível gratuitamente nos sistemas Android e iOS, o app já soma mais de 33 mil usuários e o time já recebeu dezenas de feedbacks de pessoas que confirmam sua eficiência. “Lançaram o aplicativo Denga Love tem 14h e o meu date saiu em menos de 8 horas depois do lançamento. Obrigada aos envolvidos”, escreveu uma usuária.

“Isso mostra que os milhões de negros nas outras plataformas não encontram experiências nas quais eles podem existir com plenitude. Essa marca aponta para uma urgência de mercado – as pessoas querem paquerar em ambientes seguros e isso significa existir mais plataformas assim”, conclui Cipó.

Como celebração neste novembro, mês da Consciência Negra, ouvimos pessoas pretas que vivem ou viveram relações afrocentradas e se sentiram à vontade para compartilhar conosco suas transformações e processos de cura proporcionados por essa experiência.

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Amor preto é atemporal e necessário

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(Gustavo Nascimento/Ilustração)

Para Stephanie, existe uma necessidade pungente de falar sobre amor, ser amado e se permitir amar alguém. “Veja, casais entre negros existem e se amam, mas ainda é raro ver isso representado na mídia. Assim como geralmente pessoas negras que ascendem socialmente não são vistas com parceiros negros”, conta. “Existe uma associação do relacionamento com pessoas brancas como símbolo de poder e ascensão. Acho que por todos esses pontos falar de amor preto é algo atemporal e necessário.”

Ela considera uma relação afrocentrada não só aquela em que pessoas negras optam por se relacionar com outras pessoas negras, mas aquela em que essas pessoas negras são conscientes do seu lugar e, juntas, se fortalecem numa perspectiva de companheirismo e troca. “Depois de ter uma relação assim, acredito que o meu crescimento pessoal e até mesmo profissional se deu pela paz de poder viver com alguém que entendia o meu lugar no mundo e me acolhia”, conta. “Me relacionar, em especial com pessoas brancas, sempre trouxe a necessidade de ensinar o outro um letramento racial. Existem muitas possibilidades afetivas que não envolvam estar com brancos, como estar com pessoas asiáticas, indigenas e outros negros. Cada relação terá suas demandas e dificuldades individuais a partir de cada indivíduo.”

“Todo ato que humaniza existências negras, e que permite que sejamos livres, felizes, dignos cura. Enfrentar o racismo também é rir, brincar e amar. Existe algo muito lindo em se permitir amar e ser amada”

Stephanie Ribeiro
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“Eu não tenho a postura de querer obrigar que negros devem ficar com negros, mas acho que é preciso a reflexão coletiva do porque é tão comum na nossa cultura não termos essa construção amorosa como padrão público de figuras importantes para própria discussão do racismo, para cultura e pra representatividade negra. Os relacionamentos inter-raciais no contexto brasileiros fazem parte de uma lógica que acreditava que via a miscigenação seria possível embranquecer a população e, assim, diminuir a quantidade e consequentemente, o poder da população preta. A questão é que isso ainda é totalmente naturalizado na nossa cultura, até um tempo atrás era super raro ter casais negros em novelas, geralmente os personagens negros estavam se relacionando com pessoas brancas”, reflete. 

O amor preto pode curar?
“Sim. Todo ato que humaniza existências negras, e que permite que sejamos livres, felizes, dignos cura. Enfrentar o racismo também é rir, brincar e amar. Existe algo muito lindo em se permitir amar e ser amada”.

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Amor preto é ser casa para o outro

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(Gustavo Nascimento/Ilustração)

Mateus Amorim e Wesley Lima se conheceram da forma que boa parte dos relacionamentos contemporâneos começa: pelo Instagram. Um curtia as fotos do outro, até rolava um clima de paquera, mas a distância parecia tornar essa vontade impossível de se realizar: Wesley, na época, morava em Salvador, enquanto Mateus estava em São Paulo.

Foi em meados de 2018, quando os dois passaram a morar na capital paulista, que a troca de DMs se intensificou e eles finalmente marcaram um date. “Nosso encontro foi numa noite cultural de uma loja de produtos orgânicos no centro de São Paulo. Foi um momento muito especial nos ver pela primeira vez, o Wesley apresentar seus amigos, dançarmos juntos, provar comidinhas gostosas e sentir o toque um do outro. Desde então, estamos juntos há quase 4 anos.”

“Uma das principais mudanças que notamos em uma relação afrocentrada é a possibilidade de se enxergar no outro de maneira mais profunda. Ver no seu parceiro alguém que divide as suas dores, entende suas angústias e passa pelos mesmos desafios impostos pelo racismo”

Mateus Amorim e Wesley Lima
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“Nós acreditamos muito na potência política de um relacionamento. Em uma sociedade que é atravessada pelo racismo de forma estrutural, pensar afetos que questionem o status quo é uma forma de resistência. É sobre ter consciência que todos os aspectos das bases que fundamentam a construção da vida privilegiam a pessoa branca, sua cultura e suas características, ao passo que, ao corpo preto, é reservada a marginalização. No campo afetivo, isso não é diferente. Desde crianças, somos condicionados a ver o branco como referência do belo e da felicidade. É só a gente lembrar dos personagens dos contos de fadas e desenhos animados até os atores de novelas e modelos em capas de revista. Já o preto é quase sempre representado como feio, perigoso, violento e preterido. Nesse sentido, amar outra pessoa preta é um movimento tanto de valorização pessoal quanto coletiva, na resistência ao racismo“, pontuam.

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Durante esses quase quatro anos, as mudanças foram muitas. Não só as mudanças literais, como Mateus e Wesley irem morar juntos e até criarem um perfil de decoração no Instagram, o Casa de Pretos, onde dividem um pouco da rotina. Também teve muita mudança do lado de dentro de cada um. “Uma das principais mudanças que notamos em uma relação afrocentrada, ao nosso ver, é a possibilidade de se enxergar no outro de maneira mais profunda. Ver no seu parceiro alguém que divide as suas dores, entende suas angústias e passa pelos mesmos desafios impostos pelo racismo. É ter alguém que vai conseguir te dar um apoio mais empático, baseado nas próprias vivências e que consegue te enxergar mais próximo da sua totalidade, considerando as nuances complexas na vida do negro.”

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(Mateus Amorim / Wesley Lima/Arquivo)

O amor preto pode curar?
“Sim, ele tem essa potencialidade. Não podemos, no entanto, colocar nele a responsabilidade de contornar todos os desafios de uma relação e do próprio indivíduo. Mas ele é importantíssimo para curar as feridas e ser uma opção coerente para o lugar político de um casal. Nas palavras de Emicida: ‘Amor é espiritualidade; Latente, potente, preto, poesia; Um ombro na noite quieta; Um colo pra começar o dia’.”

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Amor preto é força

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(Gustavo Nascimento/Ilustração)

“Eu não sei se o amor preto cura ou salva, mas o que eu posso dizer é que ele fortalece. Essa é a minha experiência e o que eu vivo numa sociedade como a nossa, adoecida pelo racismo e que a gente é estereotipado e colocado numa hipersexualização. Além disso, o amor preto é, principalmente, resistência.” É assim que o ator Paulo Lessa define sua experiência em relações afrocentradas. Junto da parceira Cindy Cruz há quase 15 anos, com quem tem uma filha, Jade, ele acredita que o amor preto é um caminho de cura e, principalmente, de exemplo. 

“Existem muitas feridas para serem curadas, tanto de homens e de mulheres – e com o amor negro é possível seguir esse caminho. Quando falamos sobre cura é algo muito complexo, porque parece que estamos sempre lambendo feridas. A cada saída de casa não sabemos o que vai acontecer, parece que as pessoas se sentem no direito de externar o seu racismo. O fundamental numa sociedade como a nossa é se fortalecer para resistir. A importância de falar sobre o amor preto é também a de humanizar homens e mulheres, suas complexidades, suas vontades. Cindy e eu estamos formando uma família a partir desse amor e a Jade vai ter esse espelho – é fundamental para ela.” 

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“Eu não sei se o amor preto cura ou salva, mas o que eu posso dizer é que ele fortalece. Acredito que, num relacionamento preto, há uma empatia maior com o outro e podemos entender melhor as questões de cada um”

Paulo Lessa

“Acredito que, num relacionamento preto, há uma empatia maior com o outro e podemos entender melhor as questões de cada um. Digo isso da minha relação porque é difícil padronizar todas as relações. Minha mulher é preta e africana, veio para o Brasil para estudar numa universidade federal e sofreu com racismo, machismo e xenofobia, tudo no mesmo lugar. Nossa caminhada junto e nosso relacionamento nos fortalece todos os dias, é incrível.”

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Amor preto é família

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(Gustavo Nascimento/Ilustração)

Quando Rafael Santos descobriu que teria uma filha, decidiu ir a uma igreja evangélica para poder ser um pai presente e largar de vez o alcoolismo. Foi lá que conheceu Mariana, “a primeira pessoa que olhou para mim através dos estereótipos, me enxergando de verdade”, ele lembra. O romance não começou de bate-pronto: tentaram uma primeira vez, acabaram se afastando e só depois foram ficar juntos de vez. Um ano depois, em 2014, começaram a namorar e casaram-se um ano depois. Estão juntos desde então.

“Sabe o que mudou depois de viver uma relação afrocentrada? Tudo. O padrão de relacionamento que as pessoas têm como objetivo não é um padrão afrocentrado. Essa ideia de relacionamento romântico, de ações afetivas, não é uma coisa afrocentrada. Nós batemos muito a cabeça buscando esse tipo de relacionamento, mas só quando conhecemos a história do nosso povo e entendemos como eles se relacionavam lá atrás que compreendemos que o padrão ocidental não se aplica a nós. Foi quando nós vimos que sofremos vários atravessamentos por conta do racismo, das condições socioeconômicas e aí conseguimos, juntos, reconstruir a relação – a partir daí conseguimos olhar um para o outro com consciência e compreensão.

“O amor preto me curou e me cura todos os dias. Uma das coisas que me deu mais força para lutar contra a abstinência do alcoolismo foi receber todo o amor que a Mari sempre me deu. O amor que eu recebo da minha família me faz ser uma pessoa melhor todos os dias”

Rafael Santos
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“Mas uma realidade que esse tipo de relacionamento vive é a construção. O padrão de homem que muitas mulheres procuram é o que a minoria consegue oferecer, que é o homem formado, com bom emprego, etc. Nem sempre vai ser o gerente, o engenheiro, às vezes vai ser alguém que está no corre se esforçando para sobreviver que vai estar disposto a construir uma relação verdadeira e real. Os homens pretos muitas vezes se fecham por conta das pancadas que levamos, do estereótipo que é atrelado a nós e do machismo que vivemos”, Rafael completa. 

“Eu não conheço nenhuma pessoa preta que não tenha passado por algum relacionamento traumático com pessoas não pretas. Quando a gente se relaciona com pessoas pretas, sabemos que um pertence ao mundo do outro”, explica Mariana.

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Donos do perfil Sankofamily, o casal divide a rotina com seus filhos e mostra o dia a dia de uma família preta, recheado de amor, de conversas importantes e de construção de afeto. “Um dos nossos trabalhos é educar nossas crianças para desenvolver novos padrões de relacionamento. Assim, esperamos que elas, dentro da grandeza que são, saibam que têm que ser comprometidas com pessoas pretas e que a sequência do nosso povo na Terra são os relacionamentos afrocentrados”, pontua Mariana. 

O amor preto pode curar?
“Sim. Ele me curou e me cura todos os dias. Uma das coisas que me deu mais força para lutar contra a abstinência do alcoolismo foi receber todo o amor que a Mari sempre me deu. Uma das coisas que me faz ser uma pessoa melhor todos os dias é o amor que eu recebo da minha família. Somos muito afastados desse amor de maneira intencional para que a gente não possa exercer a força que ele nos dá. Isso é um projeto pensado desde que invadiram nosso continente. Isso porque, a partir do momento em que a gente se ama, se respeita e se afeta, não tem mais como o sistema nos atravessar – porque somos potência”, finaliza Rafael. 

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