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A língua, nossa primeira morada

Exposição "Araetá", em cartaz no Memorial Minas Gerais Vale com mais de 300 livros indígenas, firma a importância e riqueza das culturas originárias

por Laís Brevilheri 8 nov 2023 22h35

A primeira vez que vim para São Paulo, quando ainda não sabia que essa terra ia virar minha casa, fui visitar o Museu da Língua Portuguesa. O vídeo narrado por Fernanda Montenegro passeava pelos infinitos recantos da última flor do Lácio, brincando em jogos de palavras e sotaques. Eu, que já naquela época tinha largado mão do meu amor pelas letras em favor de uma certa concretude que o design me parece ter, chorei. “Nossa língua, amada e bela, nossa língua materna”, encerrava o manifesto, e então começava o desfile de poemas animados na sala escura, além da tela. (O vídeo-apresentação-manifesto foi trocado na reabertura depois do incêndio, os poemas ainda existem – apesar de não serem os mesmos e eu sentir saudades imensas de Quadrilha, de Drummond: “João amava Tereza…” ) Era tudo tão tão bonito. Falava com uma parte de mim que existia sob todas as outras. Realmente elementar, basal, materno.

Corta a cena, estou em Belo Horizonte, no antigo prédio da Secretaria da Fazenda do Estado, na Praça da Liberdade, onde hoje fica o Memorial Minas Gerais Vale. O centro cultural proporciona uma experiência imersiva a seus frequentadores: em cada uma de suas salas, uma parte da história mineira é contada com auxílio de todo tipo de tecnologia. Vamos falar sobre pintura rupestre? Então cria-se uma caverna. Fofocas sobre a inconfidência? Coloca todos os personagens trocando faíscas e lavando a roupa suja em uma grande roda de conversa.

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Imagem sem texto alternativo (Cristiano Fiuza/Divulgação)

Se fosse apenas contraste entre a arquitetura imponente da antiga repartição pública e a tecnologia lúdica dedicada a contar histórias apenas, o museu já seria um bom passeio. Mas a programação, com direito a shows, palestras e um espaço de leitura, guarda ainda outra joia. Desde o final de agosto a exposição Araetá: a literatura dos povos originários torna a recomendação mais doce.

Araetá tem curadoria de Ademario Payayá, escritor e educador, e Selma Caetano, gestora cultural à frente do Prêmio Oceanos, uma das maiores premiações de literatura em Língua Portuguesa do mundo, além de consultoria literária do escritor Daniel Munduruku e do linguista e professor Ariabo Kezo, que faz a narrativa de apresentação do percurso expositivo. A exposição também pode ser vista em São Paulo, no SESC Ipiranga.

Separados por biomas, os livros de autores indígenas cobrem história, poemas, canções, mitos originários e posições políticas. Fica clara a enorme riqueza contida nessa produção, que compreende a raiz da cultura brasileira e começa a ser valorizada como merece – a eleição do pensador, ativista e escritor Ailton Krenak para imortal da Academia Brasileira de Letras é um bom sinal dessa nova direção.

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(Luiza Palhares/Divulgação)

Junto aos livros, também estão expostas fotografias das marchas recentes até Brasília, na luta contra o marco temporal e todo tipo de abuso que os verdadeiros donos dessa terra vivem. Alguns monitores rodam vídeos em que os autores contam da sua vivência e da importância que os livros têm na construção de um futuro mais justo.

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Aldeia Katurãma

A cacica Célia Angohó, do povo Pataxó, esteve na exposição para falar sobre como a língua de seu povo é importante. Segundo ela, a reconstrução da aldeia depois do rompimento da barragem de Brumadinho é um processo que nasce de muitas iniciativas simultâneas, mas a língua é essencial. Ao mesmo tempo que revivem sua língua, algo que já foram proibidos de usar, lutam contra grileiros que ocupam ilegalmente suas terras, plantam árvores, resgatam as nascentes do rio, constroem casas melhores, preparam a terra para poder plantar, participam de marchas e manifestações políticas. Cada perna dessa construção é essencial, mas a língua é o que faz deles um povo.

A partir de entrevistas com os anciões da comunidade que mantiveram vivo o idioma apesar das dificuldades, eles estão revivendo essa língua. Durante os anos em que foram proibidos de usar suas próprias palavras, corriam o risco de desaparecer, de perder a conexão com a sua identidade. Agora, ganharam na justiça o direito de registrar suas crianças com nomes Pataxós e ergueram na nova terra uma escola para ensinar aos mais novos.

O caminho é longo, através dessas iniciativas de valorização e preservação da sabedoria do seu povo, é um trabalho possível. E é muito importante ter a noção de como toda essa diversidade humana é o que faz o Brasil um país cheio de oportunidades, de riquezas. Precisamos lutar e valorizar junto da causa indígena, porque ela é a causa humana por excelência, é a verdadeira solução para os enormes problemas que criamos.

Araetá – A Literatura dos Povos Originários

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Belo Horizonte – Memorial Minas Geais Vale
até 5 de novembro
Praça da Liberdade, 640,
esquina com Rua Gonçalves Dias
Terça a sábado: 10h às 17h30 (exceto quinta) | Quintas: 10h às 21h30 | Domingo: 10h às 15h30
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São Paulo – Sesc Ipiranga
17 de março de 2024
Rua Bom Pastor, 822, Ipiranga, São Paulo
Terças a sextas, das 9h às 21h30; sábados, das 10h às 21h30; domingos e feriados, das 10h às 18h30

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