A primeira vez que vim para São Paulo, quando ainda não sabia que essa terra ia virar minha casa, fui visitar o Museu da Língua Portuguesa. O vídeo narrado por Fernanda Montenegro passeava pelos infinitos recantos da última flor do Lácio, brincando em jogos de palavras e sotaques. Eu, que já naquela época tinha largado mão do meu amor pelas letras em favor de uma certa concretude que o design me parece ter, chorei. “Nossa língua, amada e bela, nossa língua materna”, encerrava o manifesto, e então começava o desfile de poemas animados na sala escura, além da tela. (O vídeo-apresentação-manifesto foi trocado na reabertura depois do incêndio, os poemas ainda existem – apesar de não serem os mesmos e eu sentir saudades imensas de Quadrilha, de Drummond: “João amava Tereza…” ) Era tudo tão tão bonito. Falava com uma parte de mim que existia sob todas as outras. Realmente elementar, basal, materno.
Corta a cena, estou em Belo Horizonte, no antigo prédio da Secretaria da Fazenda do Estado, na Praça da Liberdade, onde hoje fica o Memorial Minas Gerais Vale. O centro cultural proporciona uma experiência imersiva a seus frequentadores: em cada uma de suas salas, uma parte da história mineira é contada com auxílio de todo tipo de tecnologia. Vamos falar sobre pintura rupestre? Então cria-se uma caverna. Fofocas sobre a inconfidência? Coloca todos os personagens trocando faíscas e lavando a roupa suja em uma grande roda de conversa.
Se fosse apenas contraste entre a arquitetura imponente da antiga repartição pública e a tecnologia lúdica dedicada a contar histórias apenas, o museu já seria um bom passeio. Mas a programação, com direito a shows, palestras e um espaço de leitura, guarda ainda outra joia. Desde o final de agosto a exposição Araetá: a literatura dos povos originários torna a recomendação mais doce.
Araetá tem curadoria de Ademario Payayá, escritor e educador, e Selma Caetano, gestora cultural à frente do Prêmio Oceanos, uma das maiores premiações de literatura em Língua Portuguesa do mundo, além de consultoria literária do escritor Daniel Munduruku e do linguista e professor Ariabo Kezo, que faz a narrativa de apresentação do percurso expositivo. A exposição também pode ser vista em São Paulo, no SESC Ipiranga.
Separados por biomas, os livros de autores indígenas cobrem história, poemas, canções, mitos originários e posições políticas. Fica clara a enorme riqueza contida nessa produção, que compreende a raiz da cultura brasileira e começa a ser valorizada como merece – a eleição do pensador, ativista e escritor Ailton Krenak para imortal da Academia Brasileira de Letras é um bom sinal dessa nova direção.
Junto aos livros, também estão expostas fotografias das marchas recentes até Brasília, na luta contra o marco temporal e todo tipo de abuso que os verdadeiros donos dessa terra vivem. Alguns monitores rodam vídeos em que os autores contam da sua vivência e da importância que os livros têm na construção de um futuro mais justo.
Coração na aldeia, pés no mundo, de Auritha Tabajara
A queda do Céu, de Davi Kopenawa
O lugar do saber ancestral, de Márcia Kambeba
Das coisas que aprendi, de Daniel Munduruku
A vida não é útil, Ailton Krenak
O olho bom do menino, de Daniel Munduruku
Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak
Tucumã. de Lucia Morais Tucuju
Cânticos de uma filha da terra, de Eva Potiguara
Redondeza, de Daniel Munduruku
Sapatos trocados, Cristino Wapichana