m novembro de 2020, a Câmara dos Vereadores de Porto Alegre se tornou mais diversa — ainda que não o suficiente para deixar o local igualitário. Pela primeira vez, o município elegeu cinco parlamentares negros, dentre eles quatro mulheres, uma delas líder de bancada: Bruna Rodrigues, do PCdoB.
Eleita com 5.366 votos, Bruna teve a adolescência marcada pela violência doméstica, por muito trabalho e pela maternidade. Nascida e criada na Vila Cruzeiro, periferia da cidade, ela entende as necessidades daqueles que são mais vulneráveis. As escolas de qualidade, a vaga na creche para mães que trabalham, a saúde pública e o transporte que chega em bairros mais afastados são as diretrizes de seus mandatos. Ainda assim, esses projetos, que parecem simples, não têm total apoio. “Somos em dez parlamentares progressistas, porém, 26 governistas. Com isso, o trabalho fica difícil porque, para aprovar qualquer coisa, precisamos de votos que não temos”, conta.
O número de mulheres na Câmara aumentou quase três vezes em relação à eleição anterior, passando de quatro para onze. Com isso, Porto Alegre se torna a capital com maior número de eleitas, seguida por Belo Horizonte, Natal e São Paulo. No entanto, apesar do aumento, a maioria dos eleitos são homens brancos, totalizando 24 das 36 cadeiras. A dificuldade de escuta é o maior problema que isso causa. Segundo Bruna, os vereadores não a olham, não direcionam a palavra e não ouvem o que ela diz. “Eles falaram que estão acostumados a discutir com homens, mas eu sou mulher, fui eleita e represento o povo”, afirma.
A parlamentar também faz parte de outro marco na história da cidade: a Frente Parlamentar Antirracista. Aprovada por unanimidade em fevereiro deste ano, ela foi formalizada no dia 29 de abril. Além dela, a coordenação da Frente será dividida pelas vereadoras Karen Santos (PSOL), Daiana Santos (PCdoB), Reginete Bispo (PT) e o vereador Matheus Gomes (PSOL). De acordo com Rodrigues, este é um espaço unificado que tem como objetivo articular políticas e ações antirracistas. O grupo já teve uma primeira reunião, a qual decidiu os principais núcleos de articulação: saúde, educação e proteção à mulher.
É importante lembrar que esse movimento é essencial, uma vez que Porto Alegre lidera desigualdade entre negros e brancos no país. Segundo dados de 2017 divulgados pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) da população negra na capital gaúcha é de 0,705, enquanto o da população branca é de 0,833. A diferença de 18,2%, é a maior encontrada entre as cidades brasileiras consideradas no estudo — a diferença média nacional é de 14,42%.
Após alguns meses de sua eleição, a vereadora já protocolou três projetos de lei: O PL Selo Empresa Amiga da Mulher, que visa criar um selo para incentivar empresas que comprovem ações de boas práticas relativas à igualdade de gênero; o PL Complementar Recicladores de Resíduos Sólidos, que tem o objetivo de retirar o caráter de infração que tem recaído sob os trabalhadores por entender que o “lixo” é de propriedade do município e a PL Violência Doméstica, que institui prioridade de acesso aos programas e políticas sociais às mulheres vítimas de violência doméstica. Em uma conversa franca sobre sua trajetória e visão de mundo, Bruna conta como é fazer parte da Câmara dos Vereadores de Porto Alegre.
Como é o começo da sua história na política e qual foi o ponto chave para você começar na militância?
A minha militância começa com a luta pela vaga na creche. Sempre estudei em escola pública e ela era o lugar que me acolhia nos momentos que eu precisava. Isso porque minha mãe sofria violência doméstica em casa, era um processo difícil mas que, na época, era naturalizado dentro das comunidades. Dito isso, minha mãe foi mãe aos 13 anos e eu fui mãe aos 16, mas fiz da maternidade o meu maior desafio. Assim, sempre quis que ela não fosse um espaço de reprodução, mas de luta.
Um dia, eu estava sentada na calçada de onde eu morava e passou uma mulher na rua falando da necessidade dos jovens na vida política para que mulheres como eu tivessem mais espaço e direitos. Essa jovem era Manuela d’Ávila, candidata a vereadora na época. Nós, então, a apoiamos porque ninguém tinha falado conosco daquela forma antes. A juventude é vista como algo a ser considerado no futuro, só que muitos jovens nem chegam lá. A juventude de onde eu venho não tem oportunidade, por isso é preciso pensar no presente — e essa era a proposta da Manuela. A partir disso, organizamos as mulheres que já eram mães na comunidade e passamos a lutar para que se retomasse a creche que nós tínhamos perdido. Eu não imaginei que esse seria só o começo. Refleti que não ter essa vaga é algo decisivo para as mulheres, é quase como uma violação. Elas ficam sem condições de conquistar sua liberdade econômica, o que é essencial. Aí iniciei minha militância e me filiei ao PCdoB.
Nessa época, quais outros movimentos de luta você participou?
Quando começaram as obras da Copa do Mundo de 2014, fui removida por uma delas. Parte da comunidade recebeu uma cartinha embaixo da porta dizendo que tinha 45 dias para sair de casa. Nos organizamos em um outro processo de luta para que nos garantissem outro lugar para morar. Quem aderiu ao movimento teve sucesso, e quem não teve luta até hoje para pagar um aluguel social. Em seguida, fecharam a escola da região e houve diversas tentativas de fechar o pronto atendimento da Vila Cruzeiro, o maior da cidade e o que todas as pessoas da comunidade usam. Foram vários processos de mobilização e de necessidade de resistência.
“A juventude é vista como algo a ser considerado no futuro, só que muitos jovens nem chegam lá. A juventude de onde eu venho não tem oportunidade, por isso é preciso pensar no presente”
A escola era a Escola Estadual Alberto Bins. A justificativa do governo foi que reduziu o número de alunos, mas uma escola leva muito tempo para criar respeito dentro de uma comunidade. Quando fecharam, em uma véspera de Natal, os lugares que poderiam nos atender não estavam mais respondendo e as crianças não estavam mais em aula. Identificamos que esse processo foi estratégico. A secretaria de educação não deu nenhuma informação e não houve ata do conselho escolar. Hoje o lugar é ocupado pelo Coletivo Preta Velha porque passou a ser usada para uso de drogas, estupro e até agressões. Os alunos foram redistribuídos, mas muitos nem seguiram com os estudos porque há conflitos de território e um problema no deslocamento.
Tem um momento da militância que a gente percebe que só ocupando os espaços de poder conseguimos construir projetos e mudar a política. É preciso se organizar e resistir porque as pessoas que estão lá quase nunca precisaram acessar políticas públicas.
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