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Um lugar de rainha

Com seus livros reeditados, Carolina de Jesus ganha exposição no IMS Paulista e, do além, se consagra como merece: uma gigante das letras brasileiras

por Artur Tavares Atualizado em 19 out 2021, 16h46 - Publicado em 19 out 2021 00h04
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(Clube Lambada/Ilustração)

té quando vamos julgar livros por suas capas, permitir que o machismo e o racismo consigam esconder à olho nu algumas das pérolas (negras) mais bonitas já formadas no Brasil? Fôssemos um país que tivesse superado suas questões sociais mais básicas e urgentes, nunca trataríamos Carolina de Jesus por sua jornada, que formou uma das escritas mais impressionantes e urgentes do último século. Escritora nascida em Sacramento, cidadezinha de Minas Gerais, e publicada em algumas dezenas de países, a autora de romances como Quarto de Despejo não seria lembrada como preta, favelada, catadora de lixo, mas sim como uma imortal – celebrada ao lado de Guimarães Rosa, Machado de Assis e Carlos Heitor Cony na Academia Brasileira de Letras.

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Morta desde 1977, Carolina não é uma imortal, mas parece estar mais uma vez viva nesse Brasil de 2021. Seus livros foram reeditados pela Companhia das Letras, e desde o final de setembro está em cartaz no IMS Paulista a exposição “Um Brasil para os Brasileiros”. Com curadoria da historiadora Raquel Barreto, do antropólogo Hélio Menezes e a assistência de curadoria da historiadora da arte Luciara Ribeiro, a mostra reúne arquivos fotográficos, sonoros e figurinos de Carolina, além de obras de arte de brasileiros que foram seus contemporâneos e artistas da nossa atualidade. A celebração de sua vida e obra pode ser vista de longe, já que a graffiteira Criola estampou um retrato divino da escritora – todo em roxo, como as representações de Nanã – em uma empena de 47 metros de altura nos cruzamentos da Avenida Paulista e Consolação.

23.fev.1963. Foto de Sidney.
23.fev.1963. Foto de Sidney. (Arquivo Público do Estado de São Paulo/Última Hora/Divulgação)
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Aquilo que Carolina escreveu não envelheceu mal. Ou, na verdade, não envelheceu um dia sequer. “Um Brasil para os Brasileiros” é o título de dois cadernos de manuscritos da escritora que estavam em posse do Instituto Moreira Salles, recordatórios íntimos de uma mulher que tinha tudo para seguir o destino de uma anônima subalternizada no Brasil, mas que não abaixou a cabeça contra tudo e todos.

A exposição dá conta não apenas de seus trabalhos escritos, mas reverencia o ser humano Carolina: uma mulher que gostava das coisas boas da vida, de joias, roupas boas, sair bonita em fotos, sambar. “Desde o início, quando o Hélio e a Raquel encontram os dois cadernos de manuscritos da Carolina pertencentes ao IMS, ao ler esses cadernos, se percebe essa pulsão da Carolina que não se limita ao que era mais conhecido dela, as relações de escrita em diário. Se vê esse desejo de Carolina em permear o campo das artes. A proposta de fazer o diálogo entre Carolina e artistas afro brasileiros, tanto contemporâneos a ela como a nós, parte da própria autora. A chave dessa exposição é entender Carolina como multiartista. Como artista visual, da música, da moda”, explica Luciara Ribeiro.

Além da primeira página

Pesquisadora formada pela USP e pela Universidade de Salamanca, na Espanha, Luciara afirma que “Um Brasil para os Brasileiros” propõe aos espectadores uma potente quebra de pré-conceitos que impedem com que as pessoas se relacionem e se entendam em plenitude: “Acho bastante preocupante que vejamos essa produção, tanto dos artistas da atualidade na mostra, quanto de Carolina, pelo viés da precariedade. Não acho que é essa a dimensão na qual ela se sustenta, e sim a da reorganização das artes. O que esses artistas estão propondo não é se basear em pensar a pobreza, a desigualdade, enfim. Também, porque parte dos problemas da nossa sociedade estão aí, mas não é a principal pauta. Acho que é olhar o campo artístico, politizá-lo e entendê-lo como um espaço que pode ser utilizado tanto para suas questões individuais, coletivas ou subjetivas.”

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Moenda, 1951. Óleo sobre tela, 65 cm x 81,1 cm.
Moenda, 1951. Óleo sobre tela, 65 cm x 81,1 cm. (Heitor dos Prazeres – Acervo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo/Divulgação)

Luciara explica que a exposição no IMS não tenta mudar a narrativa da vida de Carolina de Jesus, mas se coloca um passo à frente de boa parte do que já foi escrito sobre ela: “É inevitável falar da vida de Carolina porque faz parte de sua obra. Mas, como em diversos outros casos, ela não é uma exceção. A questão é o porquê isso é sempre evidenciado nela e nas outras autoras não-brancas. Por que essas escolhas? E aí não adianta só identificarmos, se não há mudanças efetivas. Acho que identificar que isso é parte de uma estrutura racista, classista, burguesa-acadêmica, hierarquizada”. Com razão, ela dispara uma crítica importante de ser ouvida e repetida, sempre: “E o quanto a nossa mídia é tendenciosa, movida pelo mercado, não construíndo ou auxiliando no entendimento das subjetividades dos indivíduos negros periféricos. Mas tudo isso já sabemos, agora é descobrir o que fazemos com isso.”

A historiadora da arte ainda ajuda a esclarecer que o nome da exposição é uma crítica da própria Carolina a outro imortal: “Acho que quando a exposição resgata esse nome dado pela Carolina aos seus cadernos de manuscritos, que ela atribui ao Ruy Barbosa, vemos um movimento dela de se apropriar de uma fala e ressignificá-la. Por que, qual é o Brasil para brasileiros do Ruy Barbosa? Não é o mesmo Brasil para os brasileiros de Carolina, assim como não é o mesmo para nós, hoje. Quando trazemos Carolina, tomamos um partido, que é esse Brasil que queremos pensar. Um Brasil que fala em primeira pessoa a partir de suas exclusões, daqueles que foram excluídos do projeto de nação. Carolina descreve isso na década de 1960 e esse país continua com uma estrutura muito parecida.”

23.fev.1963. Foto de Sidney.
23.fev.1963. Foto de Sidney. (Arquivo Público do Estado de São Paulo/Última Hora/Divulgação)

E continua: “Porque Carolina fala que o elevador do [hotel] Fasano é maior do que o barracão dela. Ela está dizendo qual Brasil ela quer pensar. Não é o do Fasano, e sim das periferias. É esse Brasil que deve entrar no elevador do IMS. Não é uma exposição para o público da elite. É também, mas sobretudo para onde Carolina sempre esteve viva, nas periferias. Foi ali, e nos saraus, escolas e bibliotecas que a presença dela sempre esteve viva. É uma exposição que sai da rua, preenche o edifício e chega no topo, onde Carolina sempre mereceu estar.”

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Futuros imortais

60 artistas dividem o espaço do IMS Paulista junto com Carolina de Jesus. Além de Criola, que pintou a empena do prédio no cruzamento com a Consolação, a mostra apresenta obras de nomes como Tolentino Ferras, Maria Auxiliadora, Arthur Bispo do Rosário, Maxwell Alexandre, Heitor dos Prazeres, Ana Clara Tito, Zélia Gattai, além de Antônio Obá, que foi comissionado para pintar um retrato imponente da autora.

Mineira como Carolina, autora de obras potentes que resgatam as ancestralidades africanas e a escancaram em muros, prédios, vias de passeio e também em galerias de arte, a graffiteira Criola relata a emoção de pintar a autora: “A figura de Carolina me toca bastante porque é uma memória coletiva. O percurso dela é muito similar ao da minha avó e da minha mãe. Traz uma memória bem individual e familiar. Ao mesmo tempo, ela é coletiva. É a história das mulheres negras no Brasil. Esse lugar de memória afetiva me toca bastante, e acredito que só cheguei onde cheguei por conta das minhas ancestrais, de minha avó e de minha mãe. Eu sou o sonho das minhas ancestrais. Os esforços de mulheres como Carolina fazem com que mulheres da minha geração consigam dar um passo à frente.”

Conhecimento é a única coisa que ninguém tira de nóis, 2020.
Conhecimento é a única coisa que ninguém tira de nóis, 2020. (Janaina Vieira – Coleção da artista, Jacareí/Divulgação)
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Já Antônio Obá, cujo trabalho “Meada” estampa com destaque um retrato pintado de Carolina no centro de uma das paredes do IMS, retratar a autora como uma rainha foi uma honra que ele nem esperava: “Foi um convite muito comovente, embora eu não tivesse noção do que seria totalmente. Com o decorrer do tempo e das conversas com o Hélio e a Luciara, fui tomando pé da situação. Mas mesmo na abertura foi surpreendente, porque imaginei que, na verdade, todas as obras fossem ter uma representação literal da Carolina. Quando vi a obra lá, em grande destaque, mesmo sabendo que seria um retrato comissionado justamente para recriar essa identidade, foi uma grata surpresa pela grandeza que acabou sendo contemplada ali.”

Obá, acostumado a pintar pessoas, nunca havia levado sua obra ao patamar que foi apresentado no IMS. Por insistência da equipe curatorial, colocou uma moldura dourada imponente no quadro: “Essa dinâmica da forma que se apresenta é indício que fica rico justamente pela pluralidade de interpretações, a obra se abre. Eu não costumo emoldurar meus trabalhos, quanto mais uma moldura muito adornada, dourada. Acabamos escolhendo em conjunto e, de fato, ficou muito bonita, imponente. Entendo que é uma imponência, uma nobreza, que dentro do que fui conhecendo de Carolina fora do arquétipo dela estereotipada, tinha a ver com o gosto dela pelo requinte, pelas joias, por querer se apresentar sem lenço na cabeça, fugir dessa marca da mulher favelada que conseguiu uma ascensão na vida através da escrita. Claro que tecemos um diálogo com a tradição, meu retrato tem referências do retratismo renascentista, como uma forma de criticar, mas também de pegar essa história que é reconhecidamente grandiosa e usar ao meu favor.”

A ancestral do futuro, Criola
A ancestral do futuro, Criola (Gabriel Sousa/Divulgação)
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Se Obá subverte a arte ao seu favor dentro do espaço expositivo, Criola tem a rua para inspirar milhares de pessoas diariamente – a empena fica por um ano antes de ser coberta. Ela conta que no último 7 de setembro, foi às ruas durante a manifestação fascista dos apoiadores de Bolsonaro, para ver o mural pronto pela primeira vez: “Cheguei a caminhar pela Paulista, por entre os manifestantes, para poder ver o mural. É um contraste muito grande, que evidencia o quanto isso não é aleatório. É um projeto de governo, mesmo, para que as pessoas não tenham acesso a uma educação de qualidade. Ver, ali, uma escritora que não teve acesso a uma educação de qualidade e ainda assim chegar onde ela chegou, é, para mim, um exemplo muito forte. É algo a ser seguido. Ao mesmo tempo, é complexo, ver esse lugar onde o Brasil está estacionado hoje. Mas, acredito em fagulhas de esperança, como Carolina ali estampada em 47 metros de altura na Avenida Paulista.”

Não deixo de perguntar se aquelas manifestações são a representação de um Brasil para os brasileiros: “Um Brasil para os brasileiros não é, definitivamente, o que estamos vendo agora. Acho que é um Brasil que nos vemos representados, onde temos um governo que realmente se importa com a população. Acredito que seja um Brasil com mais esperança, empatia, respeito pelas diferenças. Um Brasil com auto estima, que vê suas qualidades, seus pontos fortes, um Brasil que investe em educação de qualidade, que caminha junto com as pessoas, que se preocupa, que valoriza a arte, as cores, a alegria. Acho que é algo possível. Acredito que nós, de uma maneira geral, estamos vendo o que há de pior que existe nas pessoas, o ápice desse egoísmo. E isso é importante para entendermos os egoísmos dentro de nós, as coisas que precisamos trabalhar.”

1961.
1961. (Arquivo/Estadão Conteúdo/Divulgação)

A exposição “Um Brasil para os Brasileiros” fica em cartaz até 30 de janeiro de 2022, e é uma das mais bonitas atualmente em São Paulo. Não perca.

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