té quando vamos julgar livros por suas capas, permitir que o machismo e o racismo consigam esconder à olho nu algumas das pérolas (negras) mais bonitas já formadas no Brasil? Fôssemos um país que tivesse superado suas questões sociais mais básicas e urgentes, nunca trataríamos Carolina de Jesus por sua jornada, que formou uma das escritas mais impressionantes e urgentes do último século. Escritora nascida em Sacramento, cidadezinha de Minas Gerais, e publicada em algumas dezenas de países, a autora de romances como Quarto de Despejo não seria lembrada como preta, favelada, catadora de lixo, mas sim como uma imortal – celebrada ao lado de Guimarães Rosa, Machado de Assis e Carlos Heitor Cony na Academia Brasileira de Letras.
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Morta desde 1977, Carolina não é uma imortal, mas parece estar mais uma vez viva nesse Brasil de 2021. Seus livros foram reeditados pela Companhia das Letras, e desde o final de setembro está em cartaz no IMS Paulista a exposição “Um Brasil para os Brasileiros”. Com curadoria da historiadora Raquel Barreto, do antropólogo Hélio Menezes e a assistência de curadoria da historiadora da arte Luciara Ribeiro, a mostra reúne arquivos fotográficos, sonoros e figurinos de Carolina, além de obras de arte de brasileiros que foram seus contemporâneos e artistas da nossa atualidade. A celebração de sua vida e obra pode ser vista de longe, já que a graffiteira Criola estampou um retrato divino da escritora – todo em roxo, como as representações de Nanã – em uma empena de 47 metros de altura nos cruzamentos da Avenida Paulista e Consolação.
Aquilo que Carolina escreveu não envelheceu mal. Ou, na verdade, não envelheceu um dia sequer. “Um Brasil para os Brasileiros” é o título de dois cadernos de manuscritos da escritora que estavam em posse do Instituto Moreira Salles, recordatórios íntimos de uma mulher que tinha tudo para seguir o destino de uma anônima subalternizada no Brasil, mas que não abaixou a cabeça contra tudo e todos.
A exposição dá conta não apenas de seus trabalhos escritos, mas reverencia o ser humano Carolina: uma mulher que gostava das coisas boas da vida, de joias, roupas boas, sair bonita em fotos, sambar. “Desde o início, quando o Hélio e a Raquel encontram os dois cadernos de manuscritos da Carolina pertencentes ao IMS, ao ler esses cadernos, se percebe essa pulsão da Carolina que não se limita ao que era mais conhecido dela, as relações de escrita em diário. Se vê esse desejo de Carolina em permear o campo das artes. A proposta de fazer o diálogo entre Carolina e artistas afro brasileiros, tanto contemporâneos a ela como a nós, parte da própria autora. A chave dessa exposição é entender Carolina como multiartista. Como artista visual, da música, da moda”, explica Luciara Ribeiro.
Além da primeira página
Pesquisadora formada pela USP e pela Universidade de Salamanca, na Espanha, Luciara afirma que “Um Brasil para os Brasileiros” propõe aos espectadores uma potente quebra de pré-conceitos que impedem com que as pessoas se relacionem e se entendam em plenitude: “Acho bastante preocupante que vejamos essa produção, tanto dos artistas da atualidade na mostra, quanto de Carolina, pelo viés da precariedade. Não acho que é essa a dimensão na qual ela se sustenta, e sim a da reorganização das artes. O que esses artistas estão propondo não é se basear em pensar a pobreza, a desigualdade, enfim. Também, porque parte dos problemas da nossa sociedade estão aí, mas não é a principal pauta. Acho que é olhar o campo artístico, politizá-lo e entendê-lo como um espaço que pode ser utilizado tanto para suas questões individuais, coletivas ou subjetivas.”