ponte de São Gonçalo, por onde dizem ter passado os soldados de Napoleão Bonaparte que enfrentaram as tropas portuguesas, está vazia, sem os turistas que corriqueiramente se debruçam sobre seu guarda-corpo para que lhes tirem fotos a fingir olhar a paisagem que se forma ao fundo. Tão pouco a igreja que também leva o nome do beato parece ter gente de fora: apenas alguns locais — vestindo máscaras e respeitando as novas normas de se sentar em bancos intercalados — prestam atenção no sermão do padre, que precisa aumentar o tom da voz quando o sino da igreja avisa que já são 5 da tarde.
Amarante é uma pequena, mas charmosa cidade no Norte de Portugal (a cerca de 40 quilômetros do Porto) que se desenvolveu nas margens do rio Tâmega. Mas foi especialmente em torno da fama de São Gonçalo, um ermitão que no século 11 escolheu a região sossegada para viver, que atraiu pessoas interessadas nas pregações que ele fazia. Aos poucos, pousadas e restaurantes começaram a abrir para atender o público que vinha de fora. E assim, Amarante foi ganhando seu caráter de cidade turística, que se mantém até hoje.
Desde o início de março, com a pandemia do novo coronavírus impondo regras de distanciamento social em todo o território português, a cidade tem sofrido sem o constante fluxo de visitantes externos. Mas embora isso tenha afetado bastante a economia, o moral dos amarantinos não parece assim tão abalado. Logo na saída da ponte no sentido ao centro da cidade, uma faixa com os dizerem “We’ll rise” (“vamos nos erguer”, em bom português) mostra um certo otimismo local. Para quem não é morador, pode causar estranheza que a figura ao lado das letras seja a de um pênis pintado em preto, sob fundo branco. Mas para os que vivem ali, o símbolo fálico já faz parte da rotina.
Pênis estão por todos os lados. Até em ímãs de geladeira e chaveiros que se transformaram em souvenirs à venda nas lojinhas nas ruas mais famosas de Amarante. Curiosamente, eles estão ligados à São Gonçalo, o padroeiro da cidade, cujos “quilhõezinhos” (testículos) se tornaram uma espécie de reverência a ele, como as medalhinhas, velas ou outros corriqueiros objetos religiosos. Aqui, a reprodução do órgão sexual do religioso causa risadas aos turistas, mas a verdade é que enche os bolsos dos comerciantes, especialmente aqueles donos de confeitarias.
Os “colhões” ou “caralhinhos” de São Gonçalo, como chamam alguns, se originaram primeiro como um doce feito à base de farinha de trigo e açúcar, com consistência rija, como um símbolo de um ritual de flerte e de fertilidade de longa data. Reza a tradição que os doces surgiram para que as mulheres viúvas pudessem demonstrar seu interesse (de forma pouco sutil) aos homens da vila. “Muitas tinham perdido os maridos na guerra e, por isso, precisavam encontrar outro homem provedor”, explica Aida Guerra, responsável da área de Turismo da Câmara de Amarante.
Também ganhou a tradição, mais tarde, de se presentear as mulheres solteiras com os tais colhões como um tipo de amuleto de boa sorte na vida amorosa. De uma forma ou de outra, os doces são uma oferenda ao santo reverenciado, uma oração para ser devorada pedindo por união ou fertilidade. “Se fordes a São Gonçalo, trazei-me um sãogonçalinho”, diz um famoso texto local, assim mesmo, no diminutivo — ainda que alguns doces possam chegar a um metro.
Os doces religiosos e com nomes celestiais são uma tradição há muito estabelecida em Portugal. Entre “toucinhos do céu” a “papos de anjo”, muitas receitas se popularizaram através dos mosteiros e conventos espalhados por todo o país, dando origem à uma rica doçaria construída com criatividade, gemas de ovos e muito, muito açúcar. O caso do doce de São Gonçalo é uma exceção: foi criado mais como um biscoito, com base de farinha, que pudesse durar por mais tempo.
“Quem mora aqui, entende o doce mais como uma tradição, então consome mais durante as festas. O turista é que sempre quer provar”
Exatamente como a tradição do doce se originou é um mistério. Assim como a própria fama do religioso em relação ao romance e à fertilidade. Diziam os locais que a imagem de São Gonçalo exposta na igreja matriz de Amarante era um bom sinal para as mulheres solteiras sobre um possível par: ao levantar as vestes da estátua, a visão do pênis indicava que o pretendente estava a caminho. O que se sabe ao certo é que a diocese afastou a imagem da curiosidade táctil dos fiéis e, tal como as lágrimas que são vertidas dos olhos de algumas santas como milagres em algumas igrejas do mundo, é impossível comprovar a veracidade do órgão sexual.
Também é fato comprovado que São Gonçalo nunca foi santo. Ele não chegou a ser beatificado pela Igreja Católica, sendo reconhecido apenas como um beato. Mas isso faz pouca diferença para os locais, que têm o pregador como um padroeiro. “Ele é santo pelo povo”, afirma Aida. Tanto que há uma importante festa para lembrar sua morte em janeiro. E outra para celebrar sua vida e suas palavras em junho, quando os doces se tornaram comuns para serem comprados e presenteados.
Há quem acredite também que a tradição tenha origem nos tempos pré-cristãos, já que símbolos fálicos sempre estiveram representados em práticas pagãs — que o Cristianismo passou a absorver, ao invés de erradicar. Mas com o aumento turismo e com a fama do santo a se expandir para além da cidade, foi melhor manter a relação, e as confeitarias locais decidiram que não era pecado alongar um pouco a produção dos pênis para outros meses.
Muitas começaram a fazer os colhões o ano inteiro, de olho no interesse cada vez maior dos visitantes. A cidade, então, ficou ainda mais famosa pelos doces que espalharam a fama do santo, o que atraiu mais turistas, gerando uma curiosa cena turística em torno das guloseimas fálicas.
“Nós fazemos o ano todo. Algumas docerias fazem mais na época das festas ou por encomendas, mas os turistas procuram muito, então nunca parávamos de fazer”, diz uma atendente da confeitaria O Moinho, que há 20 anos criou sua versão para o doce, feito de pasta choux (a mesma das bombas de chocolate) e recheado de creme pasteleiro. “Fica mais gostoso”, ela diz. Com a pandemia, o fluxo de turistas em Amarante diminuiu muito, e os pênis deixaram de ser produzidos na mesma quantidade.
“Quem mora aqui, entende o doce mais como uma tradição, então consome mais durante as festas. O turista é que sempre quer provar”, diz. A torcida é para que as estreitas ruas da cidade possam se encher de novo de visitantes. No próximo janeiro, ao que tudo indica, a festa de São Gonçalo deve acontecer normalmente, se o coronavírus deixar. Nesta data, a cidade ganha o colorido das flores em carros alegóricos religiosos, a música embala as procissões e até vendedores de rua montam suas barracas nas calçadas para vender os doces da fertilidade aos fiéis e turistas. Os colhões do padroeiro são um símbolo perfeito para representar o sentimento de Amarante perante o futuro pós-pandemia: a cidade não vai se deixar fraquejar. “We will rise”.