Mesmo proibida no Brasil, a cannabis está movimentando o mercado com previsões de lucro e crescimento vertigionosas
por Danila MouraAtualizado em 6 out 2023, 09h46 - Publicado em
5 out 2023
09h29
Todo empreendimento existe para diminuir a dor de um grande problema do consumidor. Agora, imagine a dificuldade em combater uma dor que a sociedade tem, mas não sabe nem do tamanho e até da existência dela. Este é um dos maiores desafios para os empreendedores que se aventuram pelo universo das startups e empresas canábicas no Brasil, onde a população é privada dos benefícios e utilidades da plantinha.
Some às dificuldades o atraso da falta de regulamentação do uso da maconha para outros fins não medicinais, como alimentícios, têxteis, biocombustíveis e outros, e o que existe é um mercado que quer mas não pode se desenvolver.
Para ser pioneiro no mercado da maconha rodeado de tabus, é preciso estar atento e ter sangue nos olhos para enxergar as poucas brechas de atuação. Afinal, enquanto pouquíssimos faturam, milhares morrem diariamente em nome da guerra às drogas.
Mesmo com a sedutora previsão do mercado internacional da cannabis movimentar R$ 26 bilhões no 4º ano de legalização no Brasil (dados da consultoria Kaya Mind), quando ela acontecer, ainda soa como um delírio apostar neste segmento no país se você não é herdeiro ou milionário.
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O desafio parece dar uma brisa a mais para este time feminino de profissionais do hempreendedorismo: Damaris Ribeiro, Natália Ferreira e Poliana Rodrigues.
Durante três anos, acompanhamos de perto a evolução dessas mulheres em frentes diversas no ecossistema canábico. Da primeira conversa até hoje, elas fizeram história e seguem construindo as bases de um mercado que engatinha. Em comum, todas carregam no DNA a sabedoria da ancestralidade canábica, o gosto pela inovação disruptiva e um carinho enorme por uma erva milenar.
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Damaris Ribeiro
DIRETORA DE COMUNICAÇÃO DO IPSEC E GESTORA DA COMUNIDADE DE NEGÓCIOS SOCIAIS E AMBIENTAIS CIVI-CO
O que mudou no seu mundo da maconha de 2020 até agora?
Resposta: O segmento de mercado da cannabis se tornou uma ótima oportunidade para ser executada nos eixos do programa de transição ecológica do governo brasileiro. Nunca estivemos tão perto de uma regulamentação
Não importa o cenário ou a situação, uma mulher sempre se destaca mais que todos no espaço. Às vezes, elas são as únicas representantes em um universo de executivos masculinos. Esse é o caso de Damaris Ribeiro, diretora do Instituto de Pesquisas Sociais e Econômicas da Cannabis (IPSEC), uma ONG que desempenha papel de advocacy para políticas públicas relacionadas à cannabis medicinal e industrial, e gestora da comunidade de negócios sociais e ambientais do Civi-co. Durante dois anos, ela foi head de inovação da The Green Hub, primeira aceleradora especializada em startups canábicas no Brasil.
Trabalhar com maconha no Brasil é um desafio constante, mas as falas de Damaris empoderam de uma forma que até a pessoa mais descrente em relação à própria capacidade de hempreender é capaz de mergulhar no mundinho das pivotagens e outras expressões “farialimers” sem dó.
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Dona de uma perspectiva muito aguçada para visualizar novas ideias em potencial, a formação em Cinema abriu as portas para ela chegar ao universo da cannabis. Graças a série “Pico na Neblina”, Damaris mergulhou no tema que gerou uma grande mudança na trajetória profissional dela. “Trabalhei por mais de dez anos na área do audiovisual. Eu estava na O2 Filmes fazendo a série ‘Segunda Chamada’, atuando na equipe de produção e vivendo muitos questionamentos sobre ser uma mulher preta em 2019. Por coincidência, algumas pessoas da equipe que eu fazia parte trabalharam na série ‘Pico da Neblina’. Eu estava nesse movimento de me perguntar bastante sobre os motivos de ser um tema tão analisado e discutido entre essas pessoas que não viviam a realidade da guerra às drogas”, conta.
Ao se deparar com um anúncio de trabalho na aceleradora focada em cannabis, Damaris mudou a rota, deu um tempo das produções e transicionou de carreira: “Sabendo de todo potencial da cannabis e do cânhamo e de todos os desafios socioambientais que temos pela frente, vi que poderia construir a ponte que vai fazer este nova indústria apoiar a justiça no que diz respeito ao encarceramento em massa e a guerra às drogas, apoiar o meio ambiente nas questões de reparação de solo, sequestro de carbono, insumos sustentáveis, apoiar o desenvolvimento humano alimentar, psicológico e o tratamento de patologias, entre outros benefícios como a geração de emprego.”
“Sabendo de todo potencial da cannabis e do cânhamo e de todos os desafios socioambientais que temos pela frente, vi que poderia construir a ponte que vai fazer este nova indústria apoiar a justiça no que diz respeito ao encarceramento em massa e a guerra às drogas, apoiar o meio ambiente nas questões de reparação de solo, sequestro de carbono, insumos sustentáveis, apoiar o desenvolvimento humano alimentar, psicológico e o tratamento de patologias, entre outros benefícios como a geração de emprego”
Damaris Ribeiro
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Para Damaris, a transição não foi difícil. “O mundo das startups não é diferente do mundo das produtoras audiovisuais, o padrão de liderança é o mesmo”, ela compara. “O que muda, para minha sorte, é que a questão racial e por consequência, social, não conseguem ser secundárias.”
Ciente da posição privilegiada que ocupa no ecossistema bilionário do mercado da erva, dar espaço e incentivar negócios de impacto social e ambiental é a forma que Damaris encontrou para exercer o ativismo canábico: “Desde o primeiro projeto que liderei neste segmento de mercado, tive a oportunidade de potencializar temas que interseccionam raça e gênero. Seja considerando lideranças diversas para contribuir intelectualmente com a construção de políticas e boas práticas ou no reconhecimento do saber ancestral que dá origem e capacidade para hoje estarmos construindo essa base sustentável de insumos e oportunidades.”
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No primeiro projeto, que aconteceu durante a pandemia, pôde levantar o desafio do encarceramento em massa trazendo o intercâmbio de práticas adotadas por ativistas norte americanos que trabalham pela equidade racial, como Steve DeAngelo, fundador do Last Prisoner Project, uma iniciativa que visa libertar todas pessoas que foram injustamente presas por posse ou comércio de cannabis, dado o reconhecimento do Estado de que a planta não é uma substância perigosa. “Desde então, já percebemos o nascimento de negócios que de fato incluem em sua estratégia impactar a geração de renda para grupos minoritários. Isso vai além das questões de saúde e de proteção ambiental que são mais facilmente atribuídas à planta”.
“O segmento de mercado da cannabis é uma ótima oportunidade para ser executada nos eixos do programa de transição ecológica do governo brasileiro. Nunca estivemos tão perto de uma regulamentação”
Damaris Ribeiro
O cotidiano de trabalho de Damaris envolve muita escuta com parceiros estratégicos através de entrevistas, acompanhamento de posicionamento de pauta, construção de projetos de educação e divulgação de aprendizados. O IPSEC faz uma curadoria de informações e dados para embasar a tomada de decisões pelo poder público em relação à regulamentação da cannabis. Hoje, a instituição integra a Frente Parlamentar da Cannabis Medicinal e Cânhamo Industrial na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), que tem a presidência do deputado estadual Caio França e Eduardo Suplicy como vice. A frente parlamentar traz discussões importantes sobre cultivo, sustentabilidade e fomento de projetos de pesquisas em parceria com universidades.
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“O segmento de mercado da cannabis é uma ótima oportunidade para ser executada nos eixos do programa de transição ecológica do governo brasileiro. Nunca estivemos tão perto de uma regulamentação”, acredita Damaris.
Desde 2015, Poliana Rodrigues acompanha tudo o que acontece no noticiário canábico internacional. Aquilo que começou com mergulhos profundos nos sites das marcas participantes das feiras do setor, como a Spannabis, sediada em Barcelona, tornou-se rapidamente um encanto pelos produtos à base da erva. “Mas também fiquei incomodada porque este universo está longe da realidade brasileira. A partir daí, nasceu um enorme desejo de aproximar o Brasil através do empreendedorismo a um mundo no qual a cannabis não é demonizada”, explica.
O sonho se tornou realidade oito anos depois. Quando conversou comigo, Poliana tinha sido convidada para defender o cânhamo têxtil na Alesp junto de uma comissão parlamentar, trazendo como exemplo a primeira calcinha menstrual de cânhamo feita no Brasil. O item é o carro-chefe da sua marca, a Floyou, a primeira dedicada a cuidados menstruais e cannabis do país.
Diversos fitocanabinóides da maconha são os melhores amigos das mulheres na TPM. As propriedades anti inflamatórias do CBD podem atenuar os sintomas da endometriose. Embora o THC seja injustamente marginalizado por causa dos efeitos psicoativos, ele pode agir como um poderoso analgésico nas cólicas menstruais.
Em vez de trabalhar a questão dos cuidados menstruais através de produtos tradicionais como óleos, Poliana optou por abrir os caminhos canábicos para suas clientes com o tecido de cânhamo, que é a maconha com baixo teor de THC, até 0,3%.
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Uma das motivações da hempreendedora é dar acesso a um produto à base de cannabis que as pessoas podem se beneficiar de forma lícita sem necessidade de prescrição médica. Desta forma, ela quer aproximar a cannabis a um público mais amplo e diversificado: “Uma mulher que não necessariamente faz uso da cannabis pode usar a calcinha, gostar e indicá-la para uma amiga. Ao ter um benefício direto, ela começa a considerar que essa planta não é de todo mal como acreditava. É uma forma de quebrar tabu, desmistificar a cannabis transformando em uma calcinha que qualquer uma pode usar”, explica.
“Uma mulher que não necessariamente faz uso da cannabis pode usar a calcinha, gostar e indicá-la para uma amiga. Ao ter um benefício direto, ela começa a considerar que essa planta não é de todo mal como acreditava. É uma forma de quebrar tabu, desmistificar a cannabis transformando em uma calcinha que qualquer uma pode usar”
Poliana Rodrigues
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Antes da Floyou, Poliana manteve uma marca independente de lifestyle canábico, porém, o alcance foi tamanho que surgiu a necessidade de se profissionalizar. A empresária demorou um ano para sair da ideia até o lançamento da primeira peça.
Trabalhar com o tecido derivado do cânhamo também não é simples aqui no Brasil. O primeiro desafio é, claro, utilizar um material cuja produção é vetada no país. Nossa distância com os países fabricantes, como a China, faz estender o prazo de confecção das peças. E também dói no bolso arcar com as taxas de impostos, o que encarece todo o desenvolvimento do produto.
A segunda dificuldade é compreender na prática como se aplicam as propriedades do cânhamo têxtil. É necessária muita pesquisa de mercado e de referências. Ter uma rede de apoio formada por empreendedores do setor é vital: “Para eu entender como é absorção e ação antibactericida do cânhamo, recorri a pessoas que já estavam trabalhando com isso porque não existe um INMETRO, por exemplo, que explique ou mensure. Só sabe quem usa o material. Os maiores detentores do conhecimento a respeito do cânhamo têxtil não são a grande indústria, os cultivadores ou quem processa a fibra, são as pessoas que desenvolvem produtos e tecnologias a partir dele”.
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Falta acrescentar mais uma tortuosidade: o mercado de calcinhas menstruais já tem grande players, pois as marcas “antigas” de absorvente abriram os olhos quando viram um mercado que deve movimentar 279 milhões no Brasil até 2026. A Pantys, por exemplo, é parceira da Sempre Livre, da Johnson & Johnson. Em novembro do ano passado, a Intimus anunciou sua entrada no segmento com uma calcinha própria.
“Desde o cultivo até a costura podem receber pessoas egressas do sistema prisional. São áreas que já têm iniciativas semelhantes em outros ramos da tecelagem. Um curso de costura e modelagem é mais acessível educacionalmente do que uma profissionalização na área de saúde para atuar numa empresa de CBD, por exemplo”
Poliana Rodrigues
Mas Poliana garante que a tecnologia da Floyou se provou mais eficiente do que os modelos que não são feitos de cânhamo. A ação antibactericida é mais eficiente e longa, a pele “respira” melhor, o tecido seca mais rápido, absorve mais e tem maior resistência e durabilidade. E o cânhamo pode ser um diferencial na decisão de compra das maconheiras ativistas.
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O potencial de promover reparação histórica às pessoas pretas e periféricas vítimas da guerra às drogas é destacado pela empresária. “Desde o cultivo até a costura podem receber pessoas egressas do sistema prisional. São áreas que já têm iniciativas semelhantes em outros ramos da tecelagem. Um curso de costura e modelagem é mais acessível educacionalmente do que uma profissionalização na área de saúde para atuar numa empresa de CBD, por exemplo”.
O plantio e venda dos derivados da cannabis são proibidos no Brasil, o tecido e a fibra vêm de fora do país. Mas não existe lei específica que regule ou caracterize a importação como crime. A Anvisa já se posicionou que sua regulação se restringe ao uso humano da planta na área da saúde. Resultado: o cânhamo está perdido em um limbo jurídico, nem permitido, nem proibido.
Apesar da falta de regulação, dados da COMEX Stat (Estatísticas do Comércio Exterior Brasileiro) levantados pela Kaya Mind mostram que o Estado de São Paulo importou mais de 15 toneladas de cânhamo bruto entre 2020 e 2021. Antes, 100 toneladas foram importadas no período de 2007 a 2008.
Estima-se que se o Brasil autorizasse o cultivo de cânhamo, seriam vendidos R$ 1,64 bilhão por safra no quarto ano de regulamentação e arrecadados por volta de R$ 330 milhões de impostos no mesmo período. A geração de empregos e o barateamento dos medicamentos à base de cannabis são outros fatores de alto impacto social. Os dados também são da Kaya Mind.
Os benefícios não são apenas econômicos, como também ambientais:
Para produzir 1Kg de cânhamo, são necessários 2.900 litros de água. O algodão demanda 10.000 litros.
O plantio do cânhamo devolve até 70% de nutrientes do solo, em contrapartida, o algodão tem potencial de esterilizar o solo, porque é cultivado em monocultura.
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O cânhamo tem propriedades naturais de defesa e não precisa de pesticida ou fertilizante. Além disso, sua produção de carbono é negativa.
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Natália Ferreira
IDEALIZADORA DOS FANKUKIES
Durante o período entre os séculos XVI e XIX, estima-se que 5 milhões de africanos tenham sido trazidos ao Brasil. Uma cultura milenar percorreu o Atlântico aprisionada em navios, cujas velas eram feitas de cânhamo. Apesar de toda violência inflingida ao povo africano, o homem europeu não conseguiu evitar que a sabedoria envolta do uso da ganja e de ricos hábitos alimentares criasse raízes na então colônia portuguesa.
Ressignificar esta ancestralidade por meio da soberania alimentar como redutora de danos é a missão da empresária Natália Ferreira: “Eu procuro construir um imaginário com alimentos para as pessoas terem um olhar sobre o que a cannabis é de verdade. Imagine todo esse conhecimento sobre a maconha desde 1535 e as reduções de danos que já faziam parte de uma ordem natural. Um período inteiro retirado, não tem como desconectar a relação da maconha e a ancestralidade. Não conseguimos nem dizer o quanto do benefício advindo da nossa ascendência foi retirado. Não sabemos se utilizavam a erva realmente como emplastro. As pessoas pretas estão presas, marginalizadas, julgadas e apontadas pelo recorte racial de ser maconheiro. Quantas coisas poderiam ter sido diferentes se tivéssemos acesso a todo conhecimento ancestral?”, questiona.
“Procuro construir um imaginário com alimentos para as pessoas terem um olhar sobre o que a cannabis é de verdade. Imagine todo esse conhecimento sobre a maconha desde 1535 e as reduções de danos que já faziam parte de uma ordem natural. Um período inteiro retirado, não tem como desconectar a relação da maconha e a ancestralidade. Não conseguimos nem dizer o quanto do benefício advindo da nossa ascendência foi retirado”
Natália Ferreira, idealizadora dos Fankukies
Além de redutora de danos, Natália é cozinheira especialista em alimentação para o sistema endocanabinoide. Desde 2017, ela desenvolve os Fankukies, alimentos que são adjuvantes – aqueles que retaliam os agentes patológicos e agressores da saúde humana, sejam físicos, dietéticos, emocionais e ambientais – para equilibrar os canabinóides em quem faz uso adulto terapêutico da cannabis. A jornada começou quando ela superou o alcoolismo através do uso da planta. Motivada, seguiu os estudos com alimentos e terpenos de forma despretensiosa. Mas a história dela mudou radicalmente após se formar em um renomado curso de gastronomia do Senac em Campos de Jordão, quando um colega utilizou suas receitas para aliviar os sintomas do tratamento médico de um familiar. O episódio foi o ponto de virada na carreira da ativista.
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Pela primeira vez, recebeu um feedback positivo das receitas na saúde de quem as experimenta. Na sequência, criou novas formulações dos ingredientes. Leite de vaca, manteiga, farinha de trigo e gordura animal são banidos. Priorizar a agricultura orgânica familiar na compra dos insumos é fundamental para evitar os danos gerados por agrotóxicos. A próxima etapa foi a especialização como terapeuta canábica no curso da Paróquia de Ermelino Matarazzo em parceria com a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), criado pelo falecido padre ativista Ticão.
A redução de danos acontece por meio de uma dieta saudável, alcalina, longe dos alimentos ativadores de processos inflamatórios no corpo, como os ultra processados, que são inibidores da ação canabinoide. A esfera dos “provocadores de danos” ultrapassa o universo das drogas ilícitas e abrange o consumo de açúcar, álcool, cafeína, alimentos ultraprocessados, nicotina, ansiolíticos, moderadores de apetite, benzodiazepínicos, xaropes com codeína, anabolizantes. É uma longa lista de substâncias causadoras de malefícios ao corpo vendidas em supermercados, bares e farmácias.
Natália vê a fusão de terpenos, grãos, leguminosas e especiarias como paliativo natural dos prejuízos submetidos à sociedade brasileira, vítima do alimento industrializado e do consequente apagamento racista dos hábitos alimentares saudáveis da cultura ancestral preta canábica. A CEO da Fankukies resgata a história do menu ancestral somando outros grãos em suas receitas, numa combinação que aumenta os efeitos positivos do consumo de cannabis medicinal em tratamentos de saúde. “O mundo da maconha é tão lindo que você não precisa nem ter a ganância, porque quando você tem a ganância perde o mais legal, que é ver as pessoas felizes, compreendendo e desmistificando a erva através da cura”, avalia.
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“Utilizar o termo cannabis é uma forma de esconder todas as cicatrizes que a palavra maconha carrega, como as mortes pretas causadas pelo proibicionismo, o apagamento do conhecimento ancestral das curandeiras, assim como todo domínio africano sobre os usos da planta milênios antes da primeira folha de maconha chegar na população branca”
Natália Ferreira, idealizadora dos Fankukies
Os terpenos trabalham em conjunto com os flavonoides e os canabinóides para criar a experiência completa da cannabis, que é batizada de “efeito entourage”. No corpo humano, por exemplo, os terpenos se conectam com neurotransmissores como a dopamina, a molécula da motivação, ou a serotonina, que regula o sono e o humor: “No curso da paróquia, percebi como a redução de danos é uma desconstrução. Foi incrível. Comecei a pesquisar os benefícios alimentares.”
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O histórico de pessoas beneficiadas com os Fankukies de Natália é enorme: “Um amigo fazia tratamento da dependência química de crack e, ao experimentar as receitas do Fankukies, passou a sentir menos fissura. Algumas mães sentiram um alívio dos sintomas da endometriose e de outras inflamações. Um rapaz com psoríase também relatou melhora no tratamento. Em comum, todos utilizavam cannabis medicinal. Tudo foi se juntando.”
Durante sua formação em Projetos Culturais, Natália iniciou uma imersão na periferia de São Paulo em rolês pela Brasilândia, Ermelino Matarazzo, Guaianazes e outras regiões onde é raro o acesso aos tratamentos canábicos de alto custo. Sobre as questões racistas da maconha e territorialidade, Natália traz observações muito pertinentes: “Quanto mais preventiva for a redução de danos, menos ela é necessária. Se você fornece a informação correta para as pessoas, elas podem ter outras possibilidades, tomam consciência para se apropriar do que a maconha é de verdade, sua herança preta é um fato comprovado pela história. Ao mesmo tempo, as pessoas são presas, famílias são desestruturadas pela guerra às drogas e quem está fora desse recorte territorial se beneficia disso e reproduz comportamento racista.”
Acompanhar as redes sociais da Fankukies também é uma forma de acompanhar as andanças e interações sociais de sua prolífica criadora. Vale a pena conferir as entrevistas feitas por Natália com grandes mulheres negras no Instagram, como aquela com a colunista digital Dandara Pagu. As trocas são inspiradas nas “escrevivências” do cotidiano, lembranças e da coletividade das experiências negras, conforme ideia da escritora Conceição Evaristo. Na definição do projeto, as lives são um convite para refletir sobre o apagamento e as potências das narrativas negras na sociedade, convidando protagonistas de histórias coletivas para refletir as relações de existência no período contemporâneo”.
Em relação ao atual mercado canábico, Natália avalia que é preciso abrir mão do privilégio branco para ver mudanças positivas neste segmento tão racista quanto a lei proibicionista que os tais heemprendedores tanto combatem, pois limitam suas vendas: “Como os brancos no poder se mantêm de mãos fechadas, são necessárias leis de reparação histórica no processo de regulamentação da erva no país”. Na visão da gastrônoma, “utilizar o termo cannabis é uma forma de esconder todas as cicatrizes que a palavra maconha carrega, como as mortes pretas causadas pelo proibicionismo, o apagamento do conhecimento ancestral das curandeiras, assim como todo domínio africano sobre os usos da planta milênios antes da primeira folha de maconha chegar na população branca”, ela diz.
Natália tem razão, por mais que os brancos queiram ser os protagonistas do universo da maconha, eles nunca poderão se orgulhar de ter no sangue o DNA da verdadeira cultura canábica milenar: “O branco racializou a maconha, esperou o máximo de tempo possível para deixá-la bem criminalizada para os pretos. Tudo isso ocorreu para hoje poderem utilizá-la como cannabis. Na minha teoria, a maconha é o último produto que a branquitude consegue retirar, porque eles não conseguirão tirar a nossa alma, nosso amor e a nossa essência, sabe? Eles não vão roubar nada disso, porque são coisas íntimas, é algo singular. A branquitude pode olhar para nós como se fôssemos selvagens e achar que podem continuar se apropriando. Mas não vão conseguir, porque a ancestralidade não se apropria, é algo que se adquire com a vida.”
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Comida brasileira
Devido ao elevado número de etnias dos africanos que chegaram ao Brasil, a herança alimentar trazida para cá tem uma variedade cujo valor é inestimável.
A canela e o cravo aportaram na África Oriental por intermédio dos árabes a partir do século XII, quando se tornaram ingredientes típicos da culinária Suaíli da região costeira. Tais especiarias foram somadas à pimenta, erva-doce e alecrim quando arraigadas ao norte do continente, no Egito, Marrocos, Argélia e outros países.
Grão de bico e leguminosas estão presentes na culinária do Chifre Africano devido aos costumes vegetarianos das religiões cristãs e islâmicas.
A pimenta malagueta, amendoim, coco, banana, azeite de dendê, o café e uma enorme lista de alimentos só chegaram ao Brasil por causa dos africanos. Os traficantes de escravizados carregavam os itens, pois os negros era excluídos dessa possibilidade.
As estilistas Teodora Oshima, Rafaella Caniello e Ana Cecilia Gromann falam sobre a valorização da identidade brasileira para emancipar o mercado fashion