screver um livro de memórias aos 29 anos pode parecer algo pretensioso. Mas para um cozinheiro negro nascido nos EUA que viveu a infância no violento Bronx nova-iorquino, passou um período da adolescência na Nigéria, vendeu drogas na faculdade e se tornou um dos mais promissores jovens chefs em um país em que o racismo ainda é notório, Kwame Onwuachi parece ter muito o que dizer.
Com a mãe, que tinha uma empresa de catering, ele aprendeu a cozinhar, mas foi nas cozinhas de restaurantes de alta gastronomia que forjou seu estilo de técnica apurada que o levou a abrir seu restaurante Kith/Kin, em Washington, e a receber alguns dos mais importantes prêmios da área – o reconhecimento do Guia Michelin, um dos mais importantes na gastronomia, e um James Beard como chef revelação. Em seu recém-lançado livro, Notes From a Young Black Chef (Notas de um Jovem Chef Negro, sem edição no Brasil), Onwuachi narra as minúcias de seu tempo como aprendiz em uma das mais concorridas cozinhas do mundo, a do Per Se, do renomado chef Thomas Keller, em Nova York. Do sonho de pisar em um restaurante tão premiado às desilusões que o agressivo ambiente da alta gastronomia trouxeram – “a retórica de um restaurante é muito diferente do que realmente acontece na cozinha”, escreve –, ele lembra como era ser um negro de origem humilde em um ambiente dominado por brancos.
“Houve muitos momentos, quando eu senti que estava sendo chamado pela ‘palavra com n’ [em inglês, nigger; uma conotação pejorativa de negro], sem que ninguém realmente a dissesse. Ninguém precisava, ou talvez eles fossem espertos demais para usá-la”, conta. Hoje, à frente da sua própria cozinha, diz que sente as coisas mudarem, ainda que muito gradativamente. Inclusive no menu e na aceitação das pessoas às comidas de origem africana.
Celebrando suas heranças que vão da Nigéria à Jamaica, unindo África Ocidental e Caribe, Nova Orleans e Nova York, ele diz perceber um maior interesse e aprovação dos pratos que serve, como a sopa egusi (receita nigeriana feita de sementes), com fufu, salsa e sementes de melão torradas, o arroz jollof ou o bolo cremoso de banana-da-terra, nozes-pecã e caramelo salgado. “É parte da minha herança, então eu tento servir de uma maneira que a maioria das pessoas possa entender a minha história”, diz.
“Houve muitos momentos, quando eu senti que estava sendo chamado pela ‘palavra com n’, sem que ninguém realmente a dissesse. Ninguém precisava, ou talvez eles fossem espertos demais para usá-la.”
Kwame Onwuachi, chef
Nunca a cultura alimentar africana ganhou tanto destaque no mundo da gastronomia como hoje. “Trata-se de uma culinária que é muito diversa”, ele diz, lembrando que as pessoas costumam colocar todo um continente sob um mesmo rótulo. “Realmente não conheço muitas pessoas que foram para a África e conheceram os cheiros, as pessoas, a cultura. Elas precisam de algo novo e agora estão se voltando para uma comida que é, ao mesmo tempo, emocionante e desconhecida”, ele acredita. Mas por que você acha que demorou tanto tempo?, pergunto. “Ah, isso é fácil: racismo!”, Onwuachi responde na lata, sem se preocupar em fazer rodeios.
Racismo à mesa
O fato é que, quando parece cada vez mais urgente discutir as raízes africanas e suas contribuições para o mundo, a comida parece ter um papel importante neste debate: o de trazer o tema, literalmente, para a mesa. “Você não pode falar sobre comida americana sem falar sobre a África Ocidental”, Onwuachi diz. A própria cultura alimentar dos Estados Unidos, assim como de muitos outros países, foi fortemente influenciada pelos negros vindos da África, que acabaram por criar elementos bastante similares nos pratos de distintas nacionalidades. “Antes da Conferência de Berlim [que delimitou regras e acordos durante a ocupação do continente africano pelos países europeus] não havia linhas coloniais na África Ocidental. Havia tribos especializadas em certos alimentos e preparos. Tribos diferentes faziam trocas seguindo suas necessidades”, diz o chef. “Eles também compartilharam muitas das mesmas influências em sua comida; os países africanos têm muita culinária regional, mas também muitas semelhanças, o que nos traz a uma discussão sobre o que é a identidade da comida de cada lugar”, defende.
Ainda que muitas nacionalidades reconheçam a importância da imigração de povos distintos em seus territórios para sua riqueza culinária, poucas são aquelas, segundo Onwuachi, que se orgulham com o mesmo afinco de suas influências africanas como fazem com as raízes francesas, italianas, japonesas. “Estou esperando o dia em que a cozinha africana será tão comum para a maioria dos americanos quanto o sushi”, desafia.
Ele acredita positivamente que a culinária africana está apenas começando nos EUA e no mundo. E ganhando uma repercussão crescente e inédita. No ano passado, o Ikoyi, em Londres, foi o primeiro restaurante que serve apenas pratos de inspiração africana ou caribenha a ganhar uma estrela no Guia Michelin. O restaurante, com foco em receitas da África Subsaariana, é dirigido por dois amigos: Iré Hassan-Odukale, inglês negro, e Jeremy Chan, inglês nascido de pai chinês e mãe canadense.