ssa é uma história que começa pelo seu final. No entardecer do último sábado, 28, um colega de profissão apoiou seus braços em uma das cinco árvores guaritás que sustentam a obra Elevazione, do italiano Giuseppe Penoni, olhou no fundo dos meus olhos e disparou: “queria dizer que esse é um momento de felicidade, esse sentimento muito difícil de ser capturado. Enquanto ela passa, é bom falar sobre ela.”
Havia dois dias, estávamos no Inhotim em um grupo de profissionais da imprensa para acompanhar a abertura das primeiras obras comissionadas pelo parque-museu inaugurado há 15 anos, os trabalhos “Propaganda”, de Lucia Koch, e “O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção”, de Rommulo Vieira Conceição, além de uma exposição temporária da polonesa Aleksandra Mir. Para a grande maioria de nós, era o primeiro contato com nossos colegas, com um avião, um ônibus lotado de gente, com obras de arte, enfim, com a vida como ela deveria ser. A felicidade capturada e expressada por esse amigo estava também estampada nos rostos de todos nós.
Andar por Inhotim nesse momento é ao mesmo tempo libertador e melancólico. O caminho que leva ao parque passa por dentro da cidade de Brumadinho, destruída pelo rompimento de uma barragem da companhia mineradora Vale no ano de 2019. Enquanto o lugar tenta se reconstruir, o museu a céu aberto soa como um paraíso idílico, um santuário de preservação de patrimônios materiais da humanidade e de uma parte da vida no planeta Terra. Se há em Inhotim mais de 4.3 mil espécies vegetais vindas dos quatro cantos do mundo, nas ruas de Brumadinho os ares são de um espaço em suspensão pintado com tons de terra, um lembrete silencioso da lama que soterrou casas, vidas, sonhos, progresso e esperança.
É nesse contexto que Lucia Koch concebe “Propaganda”. Extensão de um trabalho de mais de três décadas, no qual ela fotografa os interiores das mais diferentes embalagens, a artista gaúcha transformou um saco de Carvão Arco-Íris em outdoors de propaganda que estão espalhados pela cidade de Brumadinho, e reproduziu a imagem em um painel imenso por sobre um dos lagos do Inhotim. Ela também fotografou queijeiras – um item bastante mineiro – transformando-os em quasipavilhões do próprio Inhotim.
“A ideia de que esses painéis não terão, por um ano, publicidade de carros importados, condomínios de luxo, de venda de seguros ou de cursos de informática e, ao mesmo tempo, estar substituindo por imagens que não parecem muito o que estão fazendo ali… esse tipo de perturbação é o que me interessava colocar naquele lugar”
Lucia Koch, artista
“Propaganda é um conjunto de intervenções que começa a ser concebido na visita a Brumadinho, naquilo que a cidade estava experimentando naquele momento [em que foi convidada para o comissionamento], há dois anos”, diz Lucia apresentando a obra. “A cidade, inteira de luto, revirada de lama e minério, começa a receber indenizações enormes, situação que leva a uma explosão de mercado de carros importados, condomínios de luxo. Isso se revela nas imagens espalhadas pela cidade, na quantidade de outdoors que existem lá.”
Ao posicionar suas fotografias nos outdoors de Brumadinho, Koch propõe uma reflexão sobre prioridades. Se o interior do saco de Carvão Arco-Íris (cujo arco-íris é pintado apenas de vermelho sangue) representa um respiro das publicidades que tomaram uma cidade destruída, é também um vórtice de volta para o momento da destruição. O aspecto da fotografia lembra uma caverna, um buraco de mineração, um veio por onde mais lama poderia fluir a qualquer momento.
“A ideia de que esses painéis não terão, por um ano, publicidade de carros importados, condomínios de luxo, de venda de seguros ou de cursos de informática e, ao mesmo tempo, estar substituindo por imagens que não parecem muito o que estão fazendo ali… esse tipo de perturbação é o que me interessava colocar naquele lugar”, afirma.
“Propaganda”, para mim, tem outros tons: como respirar se vivemos sufocados? Esse sufoco que não é apenas mercadológico, que hoje tem a ver com a própria possibilidade de respirar em segurança sem uma máscara de proteção, e que, de certa forma, tinha a ver com a mesma possibilidade de não ser privado de ar em um instante tão cruel como o rompimento de uma barragem. Como respirar sem que haja felicidade, sem que exista medo, sem as pressões econômica, social e moral que envolvem nossa sociedade como um grande saco sem saída, um invólucro injusto e cruel demais desses tempos que vivemos.