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Além da melancolia

Inhotim inaugura obras de Lucia Koch e Rommulo Vieira Conceição, e um passeio pelo parque-museu renova a esperança por viver

por Artur Tavares Atualizado em 1 set 2021, 17h19 - Publicado em 31 ago 2021 23h24
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(Clube Lambada/Ilustração)

ssa é uma história que começa pelo seu final. No entardecer do último sábado, 28, um colega de profissão apoiou seus braços em uma das cinco árvores guaritás que sustentam a obra Elevazione, do italiano Giuseppe Penoni, olhou no fundo dos meus olhos e disparou: “queria dizer que esse é um momento de felicidade, esse sentimento muito difícil de ser capturado. Enquanto ela passa, é bom falar sobre ela.”

Havia dois dias, estávamos no Inhotim em um grupo de profissionais da imprensa para acompanhar a abertura das primeiras obras comissionadas pelo parque-museu inaugurado há 15 anos, os trabalhos “Propaganda”, de Lucia Koch, e “O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção”, de Rommulo Vieira Conceição, além de uma exposição temporária da polonesa Aleksandra Mir. Para a grande maioria de nós, era o primeiro contato com nossos colegas, com um avião, um ônibus lotado de gente, com obras de arte, enfim, com a vida como ela deveria ser. A felicidade capturada e expressada por esse amigo estava também estampada nos rostos de todos nós.

PROPAGANDA, 2021, Lucia Koch. Obra instalada em Brumadinho
PROPAGANDA, 2021, Lucia Koch. Obra instalada em Brumadinho (Inhotim/Divulgação)

Andar por Inhotim nesse momento é ao mesmo tempo libertador e melancólico. O caminho que leva ao parque passa por dentro da cidade de Brumadinho, destruída pelo rompimento de uma barragem da companhia mineradora Vale no ano de 2019. Enquanto o lugar tenta se reconstruir, o museu a céu aberto soa como um paraíso idílico, um santuário de preservação de patrimônios materiais da humanidade e de uma parte da vida no planeta Terra. Se há em Inhotim mais de 4.3 mil espécies vegetais vindas dos quatro cantos do mundo, nas ruas de Brumadinho os ares são de um espaço em suspensão pintado com tons de terra, um lembrete silencioso da lama que soterrou casas, vidas, sonhos, progresso e esperança.

É nesse contexto que Lucia Koch concebe “Propaganda”. Extensão de um trabalho de mais de três décadas, no qual ela fotografa os interiores das mais diferentes embalagens, a artista gaúcha transformou um saco de Carvão Arco-Íris em outdoors de propaganda que estão espalhados pela cidade de Brumadinho, e reproduziu a imagem em um painel imenso por sobre um dos lagos do Inhotim. Ela também fotografou queijeiras – um item bastante mineiro – transformando-os em quasipavilhões do próprio Inhotim.

“A ideia de que esses painéis não terão, por um ano, publicidade de carros importados, condomínios de luxo, de venda de seguros ou de cursos de informática e, ao mesmo tempo, estar substituindo por imagens que não parecem muito o que estão fazendo ali… esse tipo de perturbação é o que me interessava colocar naquele lugar”

Lucia Koch, artista

“Propaganda é um conjunto de intervenções que começa a ser concebido na visita a Brumadinho, naquilo que a cidade estava experimentando naquele momento [em que foi convidada para o comissionamento], há dois anos”, diz Lucia apresentando a obra. “A cidade, inteira de luto, revirada de lama e minério, começa a receber indenizações enormes, situação que leva a uma explosão de mercado de carros importados, condomínios de luxo. Isso se revela nas imagens espalhadas pela cidade, na quantidade de outdoors que existem lá.”

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PROPAGANDA, 2021, Lucia Koch. obra instalada na península do Instituto Inhotim e PROPAGANDA, 2021. Lucia Koch. Obra instalada em Brumadinho
PROPAGANDA, 2021, Lucia Koch. obra instalada na península do Instituto Inhotim e PROPAGANDA, 2021. Lucia Koch. Obra instalada em Brumadinho (Inhotim/Divulgação)

Ao posicionar suas fotografias nos outdoors de Brumadinho, Koch propõe uma reflexão sobre prioridades. Se o interior do saco de Carvão Arco-Íris (cujo arco-íris é pintado apenas de vermelho sangue) representa um respiro das publicidades que tomaram uma cidade destruída, é também um vórtice de volta para o momento da destruição. O aspecto da fotografia lembra uma caverna, um buraco de mineração, um veio por onde mais lama poderia fluir a qualquer momento.

“A ideia de que esses painéis não terão, por um ano, publicidade de carros importados, condomínios de luxo, de venda de seguros ou de cursos de informática e, ao mesmo tempo, estar substituindo por imagens que não parecem muito o que estão fazendo ali… esse tipo de perturbação é o que me interessava colocar naquele lugar”, afirma.

PROPAGANDA, 2021, Lucia Koch. obra instalada na Galeria Praça, no Instituto Inhotim
PROPAGANDA, 2021, Lucia Koch. obra instalada na Galeria Praça, no Instituto Inhotim (Inhotim/Divulgação)

“Propaganda”, para mim, tem outros tons: como respirar se vivemos sufocados? Esse sufoco que não é apenas mercadológico, que hoje tem a ver com a própria possibilidade de respirar em segurança sem uma máscara de proteção, e que, de certa forma, tinha a ver com a mesma possibilidade de não ser privado de ar em um instante tão cruel como o rompimento de uma barragem. Como respirar sem que haja felicidade, sem que exista medo, sem as pressões econômica, social e moral que envolvem nossa sociedade como um grande saco sem saída, um invólucro injusto e cruel demais desses tempos que vivemos.

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Aqui e além

Se a dicotomia entre o profano e o sagrado existe na arte desde seus registros mais antigos, cabe pensar como as obras expostas em Inhotim trazem esse debate para o contexto da contemporaneidade. Vivemos um momento crucial do antropoceno, este período no qual a humanidade é a força capaz de alterar as capacidades planetárias. Nos aproximamos de deuses, mas estamos aquém das graças deles. Nossa potência não tem sido criadora, e sim destruidora.

Claudia Andujar, Gisela Motta, Leandro Lima, Yano-a, 2005.
Claudia Andujar, Gisela Motta, Leandro Lima, Yano-a, 2005. (William Gomes/Divulgação)

Visitar a monumental galeria dedicada ao trabalho de vida da fotógrafa Claudia Andujar junto aos indígenas da etnia Yanomami é capaz de promover um outro mergulho às profundezas sombrias das noções de brasilidade. As mais de 500 fotos da suíça radicada no Brasil, feitas a partir dos anos 1970, são registros potentes de uma vida em harmonia com a natureza sendo destruída rapidamente pela intervenção de uma colonização antropocêntrica que começou com a chegada dos brancos europeus no continente, há mais de 500 anos, e que nunca terminou verdadeiramente.

Se naquele momento da viagem de Andujar à floresta havia o empreendimento da ditadura escancarada, hoje a invasão mesquinha é patrocinada por viúvos desses militares entreguistas e desconectados de qualquer espírito, mas que juram defender os valores de Deus. A diferença é que, nesse Brasil de 2021, cada vez mais pessoas parecem dar valor às vidas e aos saberes indígenas, buscando a iluminação justamente naqueles que os reacionários tentam extinguir.

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Dos indígenas profanados aos negros tornados profanos pelos mesmos brancos, é preciso destacar também as obras do fotógrafo Miguel Rio Branco, expostas em pavilhão não tão distante ao de Claudia Andujar. O espaço onde ambas as galerias habitam talvez seja o mais gritantemente atual e necessário para entender a sociedade brasileira.

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Mais ou menos nos mesmos anos 1970 em que a fotógrafa suíça estava na Amazônia, Rio Branco começou a retratar a vida nos guetos de Salvador, contrapondo ideias estéticas barrocas a representações cruas de um cotidiano de uma pobreza material que nunca conseguiu de fato consumir de verdade os espíritos. Em suas fotos, há miséria, mas existe também a ginga da capoeira, o gozo do sexo, as risadas que ecoam em loop sonoro junto a projeções.

Cildo Meireles, Através, 1983 – 1989
Cildo Meireles, Através, 1983 – 1989 (Pedro Motta/Divulgação)

Em “Através”, uma das três obras de Cildo Meireles expostas em Inhotim, pisar em cacos de vidro dispostos sob um cenário de grades e obstáculos é um convite do artista para refletir sobre limites impostos, segurança tomada, as prisões em que vivemos mesmo estando aqui, livres. É difícil não pensar no próprio exercício do jornalismo nessa sociedade raivosa que hostiliza profissionais, suas câmeras e gravadores nas ruas, mas também todas as imposições morais que vigiam cada ruído que emitimos, mais ou menos como os cristais em pedaços que estão ali, no chão.

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Reaprendendo a conviver

São nesses três momentos específicos que encontro diálogo com “O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção”, de Rommulo Vieira Conceição, uma instalação a céu aberto que propõe a reflexão sobre as interseccionalidades da fé, a concepção dos saberes humanos e os paradigmas que as estruturas de poder empurram sobre nossas consciências desde seus primeiros desenvolvimentos.

O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção (2021), Rommulo Vieira Conceição.
O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção (2021), Rommulo Vieira Conceição. (Inhotim/Divulgação)

“São formas que reconhecemos de algum lugar em andaimes de cores super brilhantes, que convidam as pessoas a entrarem”, explica o artista baiano. “São frontões, cúpulas islâmicas, domos judaicos, quartinhas de barro. Existe uma familiaridade que remete a templos.”

Rommulo diz que pretendeu fazer da obra um momento de estudo entre as diferenças entre espaço e lugar, entre o que é desconhecido e aquilo que é familiar, uma constante de sua carreira. “Já que a poética do trabalho é sobre essa linha tênue, a coisa é embaralhar esse lugar para ver como nos comportamos dentro deles. De alguma forma o indivíduo será prendido, seja pela cultura que tiver, por suas informações de bagagem ou por aquilo que ele está observando.”

“Busquei esses elementos e deixei-os de formas harmônicas, labirínticas e embaralhadas, para que o público pudesse transformar esse espaço em lugar através da identificação, criando esse momento de convivência. Mesmo que não seja fácil em primeira instância, que seja uma tentativa”

Rommulo Vieira Conceição, artista
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Embora seja óbvio que a espiritualidade leve para o mesmo lugar independente da crença, a proposta de “O espaço físico pode ser um lugar abstrato, complexo e em construção” é justamente nos fazer questionar sobre o porquê colocamos certos lugares ou doutrinas como sacras enquanto relegamos outras ao status de profanas.

Rommulo Vieira Conceição
Rommulo Vieira Conceição (Isis Medeiros/Divulgação)

“Em 2013, o Brasil vivia um período muito estranho, com o crescimento da intolerância, um momento que repercute novamente em 2016 e 2018. O país foi visto internacionalmente como um país multicor, diverso, onde culturas eram possíveis. Sabemos que não é bem assim, mas existia uma tendência de que isso se tornasse verdade, uma venda desse imagético. O fato de já ter isso na sua imagem de país cria em todos nós essa imagem de sociedade brasileira harmônica. De 2013 para frente, a intolerância começa a partir das campanhas contra o aborto subsidiadas pelos extremismos religiosos.”

O artista explica que a história da arte está intimamente ligada à história das religiões. “De alguma forma, construímos imagéticos a partir de acervos arquitetônicos e culturais deixados pelas religiões. Para o trabalho, busquei esses elementos e deixei-os de formas harmônicas, labirínticas e embaralhadas, para que o público pudesse transformar esse espaço em lugar através da identificação, criando esse momento de convivência. Mesmo que não seja fácil em primeira instância, que seja uma tentativa.”

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Possibilidades

Na Galeria Praça, que recebe exposições temporárias e itinerantes, a polonesa Aleksandra Mir apresenta quatro obras impressionantes da série “Mediterranean”, feitas quando morou na ilha da Sicília entre os anos de 2005 e 2010. Tratam-se de painéis enormes feitos com canetas Sharpie comuns, nos quais ela questiona noções de sociedade desenhando ilhas e espaços aquáticos transformados em símbolos, questionando noções de trânsito, trocas e dominações culturais.

Da esquerda para direita: Aleksandra Mir, Mediterranean Heartbreak; Mediterranean Iceage; Mediterranean Heatwave e Mediterranean Headache, 2007, caneta Sharpie sobre papel Fabriano, 300 x 800 cm
Da esquerda para direita: Aleksandra Mir, Mediterranean Heartbreak; Mediterranean Iceage; Mediterranean Heatwave e Mediterranean Headache, 2007, caneta Sharpie sobre papel Fabriano, 300 x 800 cm (Inhotim/Divulgação)

Saltam aos olhos as cruzes pintadas à exaustão em uma das quatro telas, causando um choque de como o pensamento daquilo que é chamado de Ocidente pode ser tão potente mesmo além das margens transatlânticas, e fazendo com que nos questionemos se precisamos almejar as identidades desse lugar.

Em outra de suas pinturas, uma praia repleta de gente nos faz perguntar se vivemos realmente juntos ou separados, se somos um só povo ou se isso não passa de uma mesma noção identitária. Há uma potência no homem sentado na areia, cartunizado ao estilo dos quadrinistas franceses, uma canga com personagens do Ursinho Pooh ao seu lado, enquanto acima dele três mulheres desenhadas ao estilo realista americano caminham conversando felizes.

As obras de Lucia Koch e Rommulo Vieira Conceição, e os trabalhos de Aleksandra Mir parecem escancarar perguntas tão importantes do último biênio em todo o planeta: Quem tem o direito de existir? Sob quais condições? À revelia dos benefícios de quem?

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Assim como a felicidade alcançada por meu colega ser produto de um momento, difícil de ser capturada e prolongada, a melancolia é igualmente o retrato de um espaço de tempo bem definido, gerada por sensações e sentimentos exteriores que mexem com nossas noções íntimas daquilo que é viver. Visitar Inhotim, estar presente em um momento tão importante de inauguração de obras, as primeiras desde o início da pandemia, foi mágico. Metaforicamente, havia a potência da aura como conceitualizada por Walter Benjamin não apenas nos trabalhos de Koch, Conceição e Mir, mas na própria visita em si.

Acima, Dan Graham, Bisected triangle, Interior curve, 2002 e abaixo, Vista aérea do Centro de Educação e Cultura Burle Marx no Instituto Inhotim. Arquitetos Associados.
Acima, Dan Graham, Bisected triangle, Interior curve, 2002 e abaixo, Vista aérea do Centro de Educação e Cultura Burle Marx no Instituto Inhotim. Arquitetos Associados. (Brendon Campos/Divulgação)

Com a gradativa reabertura de museus e espaços de arte em todo o Brasil, não existe momento melhor para ser contaminado por sentimentos de alívio e esperança que a arte entrega. Talvez seja disso que precisamos, afinal, dessa tal noção de convivência da qual falou Rommulo, para que não caiamos nas ilusões do totalitarismo tacanho mais uma vez.

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