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Isabela Mariotto: da Tina ao Leopardo de Ouro em Locarno 

Intérprete da personagem de sucesso no Instagram, atriz fala sobre suas multifaces, do teatro de resistência ao cinema

por Ágata Fidelis Atualizado em 12 set 2022, 10h00 - Publicado em 12 set 2022 08h46
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(Clube Lambada/Ilustração)

oi sob o teto do marco arquitetônico desenhado por Lina Bo Bardi para sediar o Teatro Oficina que Isabela Mariotto encontrou solo fértil para se desenvolver enquanto atriz. O diretor José Celso Martinez, com sua antena captadora de frequências, rapidamente percebeu o talento da atriz também para a comédia, lhe dando o desafio de interpretar personagens hilários em obras de peso como Macumba Antropófaga e Roda Viva, que dispensam apresentação.

Se você é da tribo dos interessados em temas como desigualdade, sustentabilidade e também ama uma boa dose de irreverência, provavelmente foi impactado no Instagram pelos vídeos de Tina (@a.vida.de.tina), personagem viral criada por Isabela durante o ócio criativo pandêmico, em parceria com a também atriz Júlia Burnier, com quem divide a criação dos roteiros e a interpretação – Isabela é o corpo de Tina e Júlia, a voz. Como próximos passos da personagem, que já acumula quase 200 mil seguidores no Instagram, as atrizes têm trabalhado no projeto de um longa com o diretor e roteirista Teo Poppovic.

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Formada em Letras pela USP, com carreira no teatro e participação em curtas e séries, você, leitor, há de concordar que Isabela tem uma trajetória precoce para uma atriz de 30 anos recém-completados. Mas foi no seu primeiro filme, o longa Regra 34, com direção de Julia Murat, que a paulistana viveu um dos grandes momentos da sua carreira até aqui. Indicado para o prêmio de Melhor Filme, na 75° edição do Festival de Locarno, um dos mais disputados festivais de cinema do mundo, que aconteceu durante o mês de agosto deste ano, na Suíça, o longa, que traz Isabela como um dos destaques, saiu vencedor máximo do festival. Isso mesmo: um filme brasileiro ganhou o título de melhor filme em um festival europeu, em tempos de desmonte da cultura no Brasil. É ou não é motivo para comemorar muito?

Batemos um papo com Isabela sobre a Tina, a carreira no cinema, o ofício de atriz e tudo que atravessa seu trabalho, como críticas políticas e deboche da esquerda. Se liga:

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Como você definiria a Tina? Como surgiu a personagem e o que ela representa para nossa bolha?
A Tina é uma jovem que pode ser encontrada em qualquer grande capital. Pertence à elite, mas uma elite intelectual e minimamente preocupada com questões sociais. Entretanto, essa preocupação vai até a página 2… Apesar dos belos discursos nas redes sociais, seu ativismo não vai muito além disso. 

A personagem foi criada por mim e pela Júlia Burnier, a voz da Tina, que, além de editar os vídeos, desenvolve junto comigo os roteiros.  A Tina surgiu despretensiosamente, bem no início da pandemia. Com mais tempo disponível, pessoas do meio artístico e intelectual começaram a postar muita coisa nas redes sociais, expondo suas novas rotinas pandêmicas e ostentando as mil possibilidades de cursos, receitas e exercícios que só uma condição privilegiada poderia oferecer. Diante disso, criamos alguns vídeos ironizando essas situações e postamos no Instagram. Aos poucos, fomos testando novos formatos e desenvolvendo mais a personagem.

Vejo a Tina como uma metáfora da bolha. Pelo caráter episódico do projeto, essa personagem consegue reunir em si as múltiplas facetas que essa elite bem intencionada assume. Afinal, quantos tipos de Tina não existem por aí? Desde a mãe de plantas, amante da natureza e frequentadora de retiros espirituais, até a DJ hipster recém chegada de Berlim, para citar apenas algumas de suas faces. Não importa a roupagem: a bolha – e a classe – é sempre a mesma. 


“Vejo a Tina como uma metáfora da bolha. Essa personagem consegue reunir em si as múltiplas facetas que essa elite bem intencionada assume. Afinal, quantos tipos de Tina não existem por aí? Não importa a roupagem: a bolha – e a classe – é sempre a mesma”

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(Phillip Lavra/Divulgação)

O filme Regra 34 ganhou um festival super importante para o cinema e foi feito com dinheiro público. E a cultura no Brasil está sendo atacada por todos os lados. Como você encara essa contradição?
Regra 34 foi feito com o dinheiro do último edital federal, de 2017. De lá pra cá, foram cinco anos sem editais, só agora surgiu um novo. Tivemos falta de financiamento para a finalização do filme. Nesse sentido, estar num festival dessa magnitude e ainda levar o prêmio máximo significa muita coisa. Ainda mais pensando no filme em questão, que aborda questões como sexo, desejo, racismo e feminismo, tudo de um ponto de vista nada moralista. De fato, é realmente contraditório conseguirmos ter chegado tão longe nessa escassez de recursos para a cultura. O prêmio nos faz lembrar que ainda é possível criar novos significados para a vida em meio a esse desgoverno que tem a morte como tônica.

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(Regra 34 / esquina Filmes/Reprodução)

A Tina é uma mulher da classe média, mas que às vezes usa elementos da classe trabalhadora em sua bolha. Por que, mesmo em tempos de crise econômica, social e política, ainda glamourizamos a pobreza?
Com a Tina, a Júlia e eu criamos uma série chamada “Expiando a Culpa Burguesa”. Ao agirem em prol do coletivo, me parece que alguns setores da burguesia fazem isso apenas por culpa de serem ricos.  Claro, em meio à crise que vivemos num país em que a desigualdade é gigantesca, é razoável ter vergonha de ser herdeiro. Ao meu ver, o problema acontece quando essa vergonha passa a ser o motor das boas ações. Parece que muito do que essas pessoas fazem nesse sentido serve apenas para aliviar uma culpa individual, e não para construir algo coletivo que possa realmente transformar a sociedade.  

Dito isso, acho que esse sentimento de vergonha acaba por levar a uma glamourização da pobreza. A Tina, assim como algumas pessoas que conheço, prefere dizer que mora na Santa Cecília, mesmo morando em Higienópolis. Infelizmente, mentiras como essas não mudam em nada a realidade de miséria e pobreza que o Brasil enfrenta.

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Você bombou fazendo uma sátira e, agora, ganhou o festival de Locarno com um drama. Como fazer para que as coisas não se misturem no imaginário das pessoas – e nas redes sociais?
Sinto que existe uma tendência do mercado, talvez mais forte no Brasil, de categorizar atores em caixinhas. Tal pessoa é um ator dramático, tal pessoa é um ator de comédia… Como se nós não pudéssemos transitar entre os mais diversos papéis e as mais diversas linguagens…

Lembro que quando tinha dez anos de idade, me apaixonei pela Nazaré Tedesco, e por conta dessa personagem me apaixonei pela Renata Sorrah. Nazaré foi uma porta de entrada pra eu conhecer o trabalho de Renata. Depois disso, vê-la atuando no teatro ou interpretando outros papéis se tornou algo ainda mais instigante, pois sua versatilidade se comprovou de maneira extraordinária.

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Por isso, acho muito interessante ver a força que personagens podem gerar. Não acho que uma personagem marcante nos reduz, pelo contrário, ela pode criar muito interesse em torno da atriz que a representa.


“Em meio à crise que vivemos num país em que a desigualdade é gigantesca, é razoável ter vergonha de ser herdeiro. Ao meu ver, o problema acontece quando essa vergonha passa a ser o motor das boas ações”

Você é atriz do Teatro Oficina, considerado patrimônio cultural brasileiro por resistir às mudanças socioculturais e políticas do Brasil, apesar da postura política extremamente crítica adotada por Zé Celso em sua vida e obra. O que representa para uma atriz navegar por esse mar norteada pelo leme de um capitão como o Zé?
Trabalhar no Teatro Oficina mudou a minha vida nos mais diversos âmbitos. Não apenas enquanto atriz, mas enquanto ser humano. Na verdade, seria difícil dissociar uma coisa da outra, pois algo que descobri no Oficina é como a vida e a arte estão profundamente ligadas. Nossas peças são ritos onde colocamos os tabus em cena para assim transformá-los em totens, gerando assim novas interpretações para a realidade.

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Regra 34 é seu primeiro filme e traz pautas identitárias debatidas a partir de reflexões profundas acerca da violência e do desejo, além de mensagens políticas importantes, como racismo, feminismo, e violência doméstica. Para você, o que faz do longa o grande campeão do Festival de Locarno deste ano?
Acredito que o filme conquistou esse prêmio pela forma corajosa e livre com a qual aborda essas questões, que por si só já são muitíssimo importantes. As inúmeras contradições presentes na personagem Simone, interpretada magnificamente por Sol Miranda, e suas não resoluções tornam Regra 34 uma espécie de paradoxo instigante, mobilizante, que impede racionalizações e respostas fáceis acerca de temas tão complexos.


“‘Regra 34’ foi feito com o dinheiro do último edital federal, de 2017. Estar num festival dessa magnitude e ainda levar o prêmio máximo significa muita coisa. Ainda mais pensando no filme em questão, que aborda questões como sexo, desejo, racismo e feminismo, tudo de um ponto de vista nada moralista”

Sol Miranda, Júlia Murat, Tatiana Leite, Isabela Mariotto e Gabriel Bortolini
Sol Miranda, Júlia Murat, Tatiana Leite, Isabela Mariotto e Gabriel Bortolini (Isabela Mariotto/Arquivo)

Você tem 30 anos. Atuou no teatro em obras transgressoras como Macumba Antropófaga, Bacantes e Roda Viva, é co-criadora de uma personagem digital que faz críticas socioculturais relevantes e em seu primeiro longa, que também traz mensagens políticas, ganhou Locarno. Essa trajetória é bem pensada ou uma grande coincidência?
Enquanto artista, gosto de criar especialmente a partir daquilo que é contraditório,  espinhoso, e que não pode ser facilmente explicado ou apreendido. Quando possível, busco participar de trabalhos que provoquem sensações variadas no público, que permitam reflexões inusitadas acerca da vida e da realidade. Pra mim, não tem nada mais instigante do que ser provocada por uma peça, do que sair transformada depois de assistir um filme. Acho que é por isso que procuro realizar trabalhos nessa linha. 

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