o estado do Pará, um dos mais violentos da Amazônia brasileira, com o triplo da média nacional de suicídio entre jovens, campeão em desmatamento por 15 anos consecutivos e foco dos incêndios que devastaram a floresta em 2019, uma jovem liderança indígena inspira a resistência contra os interesses que devastam o meio ambiente e a dignidade de seu povo. Falo de Juma Xipaia, descendente dos Xipayas, natural da aldeia Tukamã, em Altamira. Ela é mãe, ativista, ambientalista e defensora dos direitos humanos e da floresta amazônica. Aos 24 anos, em 2015, foi condecorada a primeira cacica da história dos Xipayas. Como líder de seu povo, ela vem, desde então, revigorando um levante contra os nocivos trâmites no processo de construção da Usina de Belo Monte.
Em 2017, após descobrir um esquema de corrupção envolvendo empresas de assistência a indígenas, viveu o terror diário das ameaças de morte. Num período de seis meses, ela sofreu cinco atentados. Com o segundo filho de três meses no colo, precisou se refugiar em uma casa na cidade por cerca de um mês. Não saía para nada, enquanto sua irmã encarregava-se de levar mantimentos. Juma denunciou sua situação às Nações Unidas, e lhe foi oferecido exílio na Suíça. Guerreira e comprometida com a causa, no entanto, decidiu ficar. E lutar. Hoje, ela cursa medicina na Universidade Federal do Pará, onde homens armados chegaram a ir em seu encalço por duas vezes.
Um dos momentos emblemáticos de sua jornada militante mais recente foi no encontro “Amazônia Centro do Mundo”, em Altamira, em novembro de 2019, quando um grupo de grileiros e seus apoiadores compareceram para desferir provocações durante a fala de Juma. Mas ela não se intimidou. Ao contrário, assumiu a voz e apontou o dedo diretamente para eles: “Se vocês dizem que a Amazônia é do Brasil, por que não lutam para defender a Amazônia? Você não sabe o que é perder um filho, não sabe o que é ter suas casas invadidas, não sabe como é ser expulso de sua terra.”
Juma pertence a um povo que sentiu o gosto amargo de ser considerado extinto e necessitou provar, sob falta de reconhecimento da própria Funai (Fundação Nacional do Índio), que tinha sobrevivido à tentativa de extermínio. Primeira indígena acadêmica e representante dos Xipayas a palestrar na ONU, ela atua como diretora da Associação dos Estudantes Indígenas na UFPA (APYEUFPA), conselheira do Movimento de Mulheres do Xingu, da Federação dos Povos Indígenas do Pará e do movimento Liberte o Futuro: Mudanças Climáticas.
Além disso, prepara-se para lançar o Instituto Juma, de apoio a mulheres indígenas e não indígenas no estado paraense, como disse em primeira mão à Elástica na entrevista a seguir.
Há quanto tempo você está na luta contra os danos ambientais e sociais de Belo Monte?
Olha, eu iniciei bem cedo, aos 13 anos. No começo, poucos sabiam o que era realmente essa hidrelétrica de Belo Monte. Hoje, muitos parentes continuam ainda sem saber, porque é um empreendimento muito grande. Por mais que a gente fale dos impactos, do que não está sendo cumprido com relação às condicionantes da hidrelétrica, principalmente voltadas para os povos indígenas, ainda tem muitas coisas que não se conhece no que diz respeito a esses impactos, que estão surgindo e que vão surgir com o passar do tempo. Por isso que sempre falamos que Belo Monte é um ato, um grande ato, um projeto criminoso, de violações de direitos.
Como é possível um projeto como Belo Monte, que tem mais de 30 anos, ainda ser algo tão obscuro?
No Médio Xingu, com os povos indígenas, tem pouco menos de dez anos que este projeto vem se tornando cada vez mais forte em sua implementação, essa parte de construção e tudo mais. Então, para nós, é muito recente. Não significa que, ao longo desses mais de 30 anos, a questão tenha sido discutida, apresentada, ou feita uma consulta aos povos indígenas. Quando deixou de ser Kararaô e foi chamado de Belo Monte, ninguém conhecia entre os povos indígenas. E continua sendo algo muito complicado de se compreender e de lidar, porque não só houve uma alteração no meio ambiente, mas também cultural, territorial. As múltiplas invasões, não só de território, mas no contexto cultural… Invasão e modificação da cultura dos povos. Além de impacto na saúde física, há muitos impactos, como o da saúde mental, que não são contabilizados, não são levados em conta como um dos efeitos sofridos pela população.
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Existem muitos impactos que não foram levados em consideração, entre os que estão surgindo, mas que são negligenciados e não são correlacionados a Belo Monte?
Sim, e isso é algo que nos assusta muito. Quando falo da modificação no aspecto cultural, e consequentemente na saúde mental dos povos, não somente indígenas, mas da população daqui em Altamira de forma geral, em todos esses anos, as muitas concentrações na cidade, com os caciques, as lideranças, levam as pessoas a passar cada vez menos tempo dentro de suas comunidades, ficam mais ausentes da cultura, da família. Isso tem um agravamento muito sério, muitas comunidades pararam de produzir seu cultivo tradicional, passando a receber toneladas de comidas industrializadas. Tudo isso foi algo muito novo, e também uma forma de enganar o povo, com essas migalhas oferecidas, mas que estavam sendo cobradas e contabilizadas no valor de Belo Monte. E que, claro, acarretaram muitas consequências. Hoje, temos um índice altíssimo de todos os tipos de doenças, diabetes, câncer, colesterol, obesidade, hipertensão, dentro das comunidades. Coisa que, antigamente, a gente ou não tinha ou, se tinha, não era um número tão crescente quanto agora.
Por que as condicionantes da saúde e educação foram cortadas em cerca de 90% do Plano Básico Ambiental (PBA)?
Eles justificaram que isso era políticas públicas e não obrigação da executora. Tudo isso repercutiu, claro, de forma negativa na saúde. E quando a gente tem esse aumento de doenças dentro das comunidades, surge a dificuldade de prover uma maior assistência básica. Em muitas comunidades, ainda sequer foram construídas Unidades Básicas de Saúde (UBS), que era uma das obrigações da Norte Energia S.A., que constava nas condicionantes. E aquelas que foram construídas não têm manutenção e nem funcionamento. Então, está aí, um monte de “elefantes brancos” dentro das aldeias, com a superlotação de parentes doentes na cidade, porque faltam técnicos de enfermagem, material de EPI (Equipamento de Proteção Individual), medicação… Esse impacto na saúde não foi só nos territórios indígenas. Na cidade mesmo, fecharam hospitais, UBSs… aumentou o número de pessoas no município e reduziu o atendimento. O colapso de Altamira já é de bem antes da pandemia, com esse número exorbitante de pessoas que chegaram da noite para o dia.
“Muitas comunidades pararam de produzir seu cultivo tradicional, passando a receber toneladas de comidas industrializadas. Tudo isso foi algo muito novo, e também uma forma de enganar o povo, com essas migalhas oferecidas, mas que estavam sendo cobradas e contabilizadas no valor de Belo Monte”
Reduziu o consumo do peixe por causa de garimpos, fazendas, próximos às terras indígenas?
Quando chove, todo aquele veneno, o agrotóxico que é jogado, vai para o rio. Temos, por isso, uma mortandade de peixes e animais. A gente fica com medo de consumir peixe e, até mesmo, a água do rio. Todos esses impactos foram ocasionados e incentivados por diversos fatores, inclusive pela circulação de buscar emprego em Altamira, por causa de Belo Monte, numa expectativa frustrada, porque não se encontra emprego em massa. As pessoas vão buscando alternativas para sobreviver, vão invadindo, vão garimpar, caçar ou pescar ilegalmente. Tem todos esses outros tipos de práticas criminosas que foram resultado de Belo Monte. Já acontecia, só que aumentou muito, e isto, de certa forma, modifica o nosso modo de vida, nossa cultura e tudo mais. A geração atual não toma mais banho de rio e come menos peixe por causa do mercúrio, dos agrotóxicos, a gente fica, até mesmo dentro do território, refém.