Conheça o ativismo dos pais e mães pioneiros no uso da propriedade medicinal da cannabis no Brasil
por João VarellaAtualizado em 20 out 2021, 14h33 - Publicado em
18 out 2021
01h39
o decidir praticar tráfico internacional de drogas, Margarete Santos de Brito era ciente das consequências. Advogada, é habilitada a encontrar e compreender a lei 11.343, que prevê pena de até 15 anos de prisão e multa de milhões de reais a quem importar qualquer substância enquadrada como droga ilícita. A vida da filha valia o risco.
A filha de Margarete, Sofia, tem a síndrome genética CDKL5, considerada rara. “Causa epilepsia refratária e déficit de desenvolvimento, a Sofia não anda, não fala e ainda tem crise convulsiva. Por causa dessa mutação genética, esse defeitinho de fabricação, ela não produz uma proteína que organiza os neurônios”, descreve. Não há cura. Este vídeo mostra uma crise de epilepsia. A criança é a estadunidense Harper Elle Howard, então com três anos. São imagens fortes e importantes.
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O remédio
Há uma substância que ajuda a mitigar a situação de Harper, Sofia e outros pacientes de inúmeras outras doenças: a cannabis sativa, nome científico da maconha, também conhecida como beck, cigarrinho de artista, entre inúmeros outros apelidos infames. Foi essa substância que Margarete traficou. Porém, ela trouxe em forma de óleo de canabidiol, produto químico presente na planta. Para as autoridades não há diferença, era tudo crime. “Quando vi que outra criança usava, eu mandei um foda-se para a questão se é legal ou ilegal. A cannabis é uma das ferramentas para tratar minha filha”, conta a advogada.
Estamos numa espécie de período final da Idade das Trevas em relação ao uso da maconha. O consenso científico em voga aponta que substratos da cannabis como o CBD produzem resultados consistentes no tratamento de diversos males. A epilepsia é o mais evidente, mas chega a atenuar ansiedade, enjoo, falta de apetite, insônia e dor. Um dos maiores skatistas da história, o brasileiro Bob Burnquist, por exemplo, usa maconha para tratar as dores crônicas que sente em razão de dezenas de ossos quebrados. “Se eu pego e uso uma morfina, que é legal e eu posso pegar com prescrição médica, vai me destruir completamente. Eu não posso tratar algo crônico com algo viciante”, disse recentemente à TV Cultura.
“Quando vi que outra criança usava, eu mandei um foda-se para a questão se é legal ou ilegal. A cannabis é uma das ferramentas para tratar minha filha”
Margarete Santos de Brito, advogada
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Essa multiplicidade de usos instiga a ciência. “A maconha está para a medicina do século 21 assim como os antibióticos para a medicina do século 20”, costuma dizer o neurocientista Sidarta Ribeiro, fundador do Instituto Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
A experiência prática das mães que tratam filhos com maconha corrobora a ciência. Porém, o acesso não é fácil. Ainda mais no Brasil, o primeiro no mundo a criminalizar o uso da cannabis – um produto do racismo estrutural, conforme já relatamos aqui em outra ocasião. “Os mesmos que achavam que o Brasil não estava preparado para acabar com a escravidão, acham hoje que o Brasil não está preparado para a legalização”, afirma Margarete Brito.
Não bastasse o preconceito, é preciso buscar médicos que tenham a cabeça arejada e a coragem para prescrever, entrar com pedido na Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), obter na Justiça autorização para o plantio e extração de óleos medicinais, além do medo de uma represália policial ou ainda de amigos.
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Para facilitar o trâmite e evoluir a discussão, Margarete abandonou a advocacia para abraçar o ativismo. Virou um dos rostos mais conhecidos da causa ao ter seu caso retratado no documentário Ilegal, da Superinteressante, feito em 2014. No início, ela criou grupos informais em redes sociais. Agora, está à frente da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) com 2 mil associados.
Em julho de 2020, o grupo conseguiu na Justiça a autorização para o plantio. A Apepi criou uma fazenda no município de Paty do Alferes, a pouco mais de cem quilômetros da capital carioca, com 1,5 mil plantas de maconha. Agrônomos, biólogos e farmacêuticos cuidam do cultivo – a Apepi hoje conta com cerca de 30 profissionais de diversas áreas. Cabe mais. A meta é um dia chegar em 10 mil plantas nos 600 mil metros quadrados da fazenda.
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Social x medicinal
Para avançar na luta pelo remédio, foi preciso criar uma ponte com os defensores do uso recreativo – ou social, como preferem os ativistas. Até o começo da década de 2010, era como se tivessem dois grupos, o do CBD e do THC (tetrahidrocanabinol, principal psicoativo da maconha), conforme conta Cidinha Carvalho, de 54 anos, presidente da Cultive – Associação de Cannabis e Saúde, de São Paulo. Ela também é mãe de uma menina que precisa da maconha em seu tratamento: Clárian, 18 anos, portadora da síndrome de Dravet, uma doença genética rara, progressiva e incapacitante. Implica em crises de epilepsia severas e traz risco de morte súbita. Nos primeiros oito meses de vida de Clárian, a mãe contou mais de 600 crises convulsivas.
Para cuidar da filha, teve de abrir mão de uma promoção no banco em que trabalhava que demandaria uma carga horária maior. “Minha filha precisava mais de mim do que nunca”.
Além das crises convulsivas, Clárian tinha apneia. Cidinha e seu marido, Fabio Carvalho, tinham de revezar na vigília. Outro filho do casal desenvolveu síndrome do pânico. Sem saber ler em inglês, Cidinha contou com tradutores online para encontrar, em julho de 2013, artigos científicos apontando que a maconha poderia auxiliar e trazer mais qualidade de vida à família.
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Importação ilegal
Um amigo disse que iria aos Estados Unidos e poderia trazer o óleo da maconha. Cidinha investiu o dinheiro das férias ao adquirir por US$ 500 uma única seringa. Deu certo, Clárian ficou 11 dias sem nenhuma crise, passou a duas crises por mês, nunca mais precisou ir a emergências médicas, entre outros benefícios. No entanto, o investimento era alto e arriscado – do jeito que o Código Penal está, o amigo tinha praticado tráfico internacional.
Em 2014 começou a exercer e a incentivar o autocultivo. Conforme Cidinha explica, o grupo de pais temia que a mistura com a pauta dos recreativos atrapalhasse a causa. “Havia gente que achava que por ser importado era melhor”, conta. Até o termo maconha era tabu, a planta era sempre referida pelo seu nome científico no grupo dos medicinais.
Cidinha se aliou ao pessoal do THC e, assim, se inscreveu em uma corrente de pensamento de especialistas gabaritados, como o neurocientista e professor na Universidade de Columbia Carl Hart, que apregoam que a classe média assuma e questione a repressão. “Fomos a primeira família a participar da Marcha da Maconha, em 2014. Eu e o Fabio éramos os únicos pais. Levamos irmão, irmã, cunhada, cunhado só para fingir que tinha mais famílias”, relata Cidinha, interessada em obter um conhecimento holístico da planta.
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Hoje, o processo artesanal de Cidinha na Cultive produz óleo em quantidade equivalente ao importado por US$ 500 (aproximadamente R$ 2.600) por apenas R$ 60. “O maior custo é a luz”, explica Cidinha. Fica assim claro um lado nefasto da nova bandeira tarifária da ‘escassez hídrica’, atualmente em vigor no Brasil.
“Fomos a primeira família a participar da Marcha da Maconha, em 2014. Eu e o Fabio éramos os únicos pais. Levamos irmão, irmã, cunhada, cunhado só para fingir que tinha mais famílias”
Cidinha Carvalho, presidente da Cultive
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Acessibilidade
Luciano Lima faz coro à necessidade da acessibilidade dos remédios derivados da maconha. “Para rico, já tem medicamento na farmácia”, diz Lima. Ele é pai de Alcir Luan, 18 anos, portador da síndrome Lennox-Gastaut, tipo raro de epilepsia. Usa maconha desde 2012 e está bem, obrigado, conforme relata o pai. “Nem gripe ele pega”.
Luciano é um dos fundadores da Abrace Esperança. No começo, produzia o óleo aos associados na cozinha, testando e experimentando até chegar no ponto certo, aprendendo na prática. Sabia que aos olhos da lei, cometia crimes. “Entre ver o caixão e uma cadeia, prefiro a cadeia”. Hoje, a Abrace coordena uma das maiores plantações de maconha do Brasil, na Paraíba, com 10 mil pés. Mesmo legalizado e regulamentado, a Abrace sofreu intervenções da polícia.
“Entre ver o caixão e uma cadeia, prefiro a cadeia”
Luciano Lima, fundador da Abrace Esperança
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Os perrengues também chegam no campo pessoal. Em 2018, perdeu o emprego de técnico em segurança e medicina do trabalho por defender o uso da maconha. “Do nada chegou a demissão porque eu não me enquadrava nos perfis da empresa”, afirma Lima, que prefere não revelar quem eram seus empregadores.
Hoje, são 23 mil pacientes sendo tratados com maconha produzida pela Abrace. O crescimento atrapalhou, pois a Justiça estava julgando o mérito de uma ação para atender cerca de 150 pessoas e revogou a liminar no começo deste ano. A Abrace chegou a ser fechada por alguns dias, mas voltou a atuar.
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“As pessoas no desespero vão plantar, traficar, fazer o que for preciso. É hora do governo regulamentar essa questão”, afirma Lima. Apesar de uma lei de 2006 prever o uso medicinal da maconha, o Parlamento é omisso e há 15 anos evita discutir a regulamentação. Enquanto isso, a Abrace se dispõe a facilitar pesquisas e testes. Anunciou que ofereceria a médicos da linha de frente da Covid-19 tratamento com CBD, mas a Justiça proibiu.
Avanços
Aos trancos e barrancos, a questão avança. Para plantar sem encrenca com a polícia, centenas de pacientes obtiveram habeas corpus preventivo.
Em 2015, a Anvisa liberou a importação de remédios à base de CBD. Nesse ano foram 850 produtos importados. Em 2020 esse número subiu para 15.862. O preconceito diminui enquanto cresce a quantidade de médicos dispostos a emitir receita, fora a tranquilidade de se falar do assunto publicamente e os avanços que podem vir da facilidade de se pesquisar a fundo a cannabis. Conquistas que as associações ajudaram a conquistar, empurrando a roda da história para longe das trevas.
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As imagens que acompannham essa matéria foram feitas por Dnego Justino, veja mais do seu trabalho aqui