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Das raízes da floresta

Ativista, geógrafa e curandeira, Mayalu Waurá Txucarramãe se inspira em seu avô, o cacique Raoni, para lutar pela sobrevivência dos povos do Xingu

por Laís Duarte Atualizado em 9 ago 2021, 19h13 - Publicado em 6 ago 2021 02h08
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(Clube Lambada/Ilustração)

eslizar com facilidade por entre rios e florestas, tendo a mata como lar. Não ver diferença em grau de importância entre gente e borboleta, preguiça, onça, sumaúmas, castanheiras ou pequizeiros. “Longe da floresta a gente não existe. A relação do indígena com a terra vem de nossos antepassados. Onde nossos antepassados estão enterrados é a nossa conexão com a terra. A partir do momento que o indígena têm o seu ancestral, o seu ente querido naquele lugar, é a história dele que está ali. As suas raízes. Por isso a terra é nossa família, nossa parente. Então, a relação que nós povos indígenas temos com a terra, com a natureza, é muito forte. Sabemos que tudo se transforma, o nosso corpo se transforma em terra e, por conseguinte, se transforma na nos elementos da natureza”.

Quem conta é Mayalu Waurá Txucarramãe, jovem liderança indígena que nasceu predestinada a ser a voz de seu povo. “Eu sou de dois povos indígenas: Kayapó, que vive na Terra Indígena Capoto Jarina, e Waurá, que vive na Terra Indígena Xingu. Meu avô materno foi cacique do povo Waurá. Na parte Kayapó, sou sobrinha-neta do cacique Raoni. Meu avô, pai do meu pai, é irmão do Raoni. Nos nossos costumes, filhos do nosso irmão são também nossos filhos. Quando meu avô faleceu, Raoni deu continuidade aos cuidados e à educação do meu pai. Então, dos dois povos eu carrego essa herança de liderança ancestral e por isso, por ter essa genética, sigo essa missão de defender o povo, de defender o direito dos indígenas”, explica ela.

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(Mayalu Waurá Txucarramãe/Arquivo)

Para Mayalu, Raoni é o avô que conta histórias, que eterniza e distribui conhecimentos. Para o mundo, é o símbolo da resistência indígena. Um homem que dedica a vida à defesa da Amazônia e dos povos da floresta. Apoiando seu legado em cada passo, ela marchou ao lado do ancião Brasil afora. Ajudou a criar o movimento dos Jovens Mebengokrê, com guerreiros Kayapó, Juruna e Tapayuna, para amparar Raoni na Rio+20 e manter vivas as tradições de cada cultura. Mobiliza vozes na internet contra o Marco Temporal, uma ação no Supremo Tribunal Federal que defende que os povos indígenas só podem reivindicar terras onde já estavam no dia 5 de outubro de 1988, data de nascimento da Constituição. Na convivência com Raoni aprendeu lições que livro nenhum ensina. “O que mais admiro nele, e que eu estou trabalhando em mim, é o amor às pessoas. É a paciência, o respeito pelo outro, pela sua história. Muitas vezes a gente não tem paciência com outro e meu avô tem total paciência. Ele cultiva esse amor à humanidade. E é esse exemplo que vou levar comigo, esse trabalho de unificar os povos, independente da diversidade, dos diferentes costumes que nós temos. Essa unificação da vida que ele mostra ser possível vai ser carregada por mim com certeza e será transmitida para meus filhos e para as próximas gerações, porque isso é lindo. Quem mais tem esse ato de amor? Quem mais tem amor transbordando? A gente fica tentando apontar o dedo para o outro, mas ele não. Mesmo com esses ataques e ofensas que o governo faz, ele prefere ignorar essas falácias. Ele prefere manter-se sempre forte para defender o povo, para defender o meio ambiente. É essa a lição que eu tenho aprendido com ele”, revela a neta.

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“O que mais admiro nele, e que eu estou trabalhando em mim, é o amor às pessoas. É a paciência, o respeito pelo outro, pela sua história. Muitas vezes a gente não tem paciência com outro e meu avô tem total paciência. Ele cultiva esse amor à humanidade”

Ser uma ponte entre os indígenas e a sociedade não-indígena é o que seu avô quer para ela. Por isso, Mayalu fez faculdade de geografia, tornou-se secretária-executiva do Conselho Distrital de Saúde Indígena Kayapó, em Mato Grosso. E, para mapear a própria história, fez-se militante da causa indígena. “Se um indígena está ameaçado, se está sofrendo, nós todos sofremos. Essa ligação, essa irmandade, nós temos uns com os outros. É que me faz levantar todos os dias para poder lutar, para brigar pelos direitos dos povos indígenas”.

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(Antônio Carlos Banavita/Fotografia)
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Do Xingu para o mundo

O cacique Megaron Txucarramãe, pai de Mayalu, foi o primeiro indígena a dirigir o Parque Indígena do Xingu, a primeira terra indígena homologada pelo governo brasileiro, em 1961. Uma área de 2,6 milhões de hectares, tamanho equivalente ao estado de Sergipe, lar de mais de 6 mil indígenas e de uma biodiversidade exuberante. O encontro entre o cerrado, as florestas mais secas do sul e a úmida Amazônia. Um ecossistema fundamental para a manutenção da vida. Os principais idealizadores do território que abriga várias etnias foram os irmãos Orlando, Claudio e Leonardo Villas-Bôas, em um projeto construído do talento do antropólogo Darcy Ribeiro, funcionário do Serviço de Proteção ao Índio, na época. Entre o Xingu e a aldeia cresceu Mayalu, e assim também ela cria os quatro filhos. Por eles e pela futuras gerações assumiu para si o dever de defender as florestas, porque sabe que perder floresta é como amputar uma parte do próprio corpo. “Nós temos a floresta como uma farmácia viva. Ela é nossa família, nosso remédio. É na floresta que nós encontramos nossa medicina. Portanto, quando a mata é derrubada a gente adoece e nós não queremos isso. Os povos indígenas não aceitam essa destruição dos nossos matos. Nós temos esse modo de vida, de estar em harmonia com a natureza. Nós, pelo modo de vida, preservamos as florestas”.

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(Antônio Carlos Banavita/Fotografia)
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Pílulas de sabedoria

Ela teve as lições dentro de casa. A mãe, Kamirrã Trumai Waurá, é pajé e raizeira, responsável pela cura dos conterrâneos e por ensinar à filha que os remédios para todos os males nascem do solo, estão nas folhas, nas raízes, nas cascas das árvores da floresta. Para ter o dom de receber as entidades protetoras e reconhecer o tratamento certo para cada doença é preciso nascer escolhido pelos espíritos da floresta. “Quando a pessoa cresce vai adoecendo, a assistência de saúde não consegue tratar, aí o pajé já percebe que aquele doente está no processo de se tornar também pajé. Se ele quiser assumir a função, passará por um ritual. Se não quiser, é libertado do processo. Quando a pessoa recebe o dom, herda a missão, ela envelhece muito rápido. Os cabelos branqueiam. Se for mulher, para de menstruar antes do tempo, porque ser pajé exige muita força”, conta Mayalu.

O ritual de passagem varia de acordo com a cultura. Nas tradições do Xingu, são necessários dois ou três anos de preparação. O futuro pajé fica recluso, sob cuidados dos pajés anciãos. “ É um processo doloroso, pois o corpo fica vulnerável a muitas doenças. O indígena precisa pegar as doenças para se fortalecer e aprender a curar. Ele passa cada fase dos tratamentos tomando as raízes da floresta. No rito final, fuma erva do mato”, explica Mayalu.

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(Mayalu Waurá Txucarramãe/Arquivo)

Só o pajé é capaz de reconhecer no mato a planta certa, rica na substância necessária para promover a cura. Só ele transforma raízes, cascas e folhas fervidas em remédio potente, que pode ser consumido em chás ou banhos. Faz-se assim o intercâmbio de energia e saúde entre tudo o que é vivo. “Eu e meus filhos só usamos a medicina tradicional indígena. Sempre que estamos na aldeia, pelo menos uma vez ao mês, minha mãe realiza os tratamentos preventivos. A gente passa pelo ritual da arranhadura: ela arranha a nossa pele com dente de peixe e passa um remédio no corpo todo. Dependendo da função do ritual, uma parte do corpo é arranhada, por exemplo, para proteção, são riscados os braços e pernas. Isso nos faz mais fortes. Quando não passamos pelo ritual ficamos mais vulneráveis, sem proteção”, afirma.

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É à noite, enquanto dorme, que a pajé recebe os espíritos da floresta. Segundo Mayalu, como num sonho, Kamirrã é levada a ver o doente e o tratamento com a planta correta é revelado. A visão também vem para outros curadores enquanto fumam e fazem as rezas. A conexão com o que brota da terra é sustento, é remédio, é proteção. Por isso, a vida dos indígenas, que sempre foi de muita luta, virou a luta para salvar vidas: de gente, de bicho e de planta.

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(Mayalu Waurá Txucarramãe/Arquivo)

“É importante levar a voz do meu povo para todos os cantos do mundo. É importante mostrar que a falta de conexão com a natureza nos faz mais angustiados, mais egoístas, mais doentes. No contexto em que vivemos hoje, há uma política pública para nos desconectar da natureza, o que está nos cegando. Os indígenas e seu modo de vida são essenciais não só para a história do Brasil, mas para o futuro do Brasil, para manter o equilíbrio humano, para conter o avanço das temperaturas e as mudanças climáticas. Quero deixar registrado que nós pedimos socorro. Nossa sobrevivência é a sobrevivência da floresta. E a sobrevivência das florestas é a sobrevivência do planeta. Estamos no limite. Mas até o fim seremos resistência”.

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