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Você decide

Os minipúblicos ou assembleias cidadãs propõem uma nova forma de participação política, com engajamento direto no problema, mais diversidade e informação

por Isabella D'Ercole, de Claudia 4 ago 2021 00h29
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(Clube Lambada/Ilustração)

magine uma assembleia de condomínio, mas sem as brigas e os tumultos. De 30 a 200 pessoas se reúnem (online, desde março do ano passado), estudam uma temática e tomam uma decisão que afetará a comunidade, a região ou até uma instituição. Esse tipo de votação parece algo banal, pois já faz parte da nossa concepção de convivência, porém, o que acontece quando o poder de decisão é usado para algo realmente importante e que pode impactar a vida de muita gente? Em 2017, em Ilhéus, na Bahia, o aumento do desemprego levou à multiplicação dos mototáxis, muitos deles sem regulamentação. Com registros de acidentes fatais e caos na cidade litorânea, Marília Arruda, representante do Instituto Nossa Ilhéus, recorreu a conhecidas que poderiam ajudar. Ela procurou o Delibera Brasil, grupo cofundado por Silvia Cervellini, cientista política que por anos foi diretora do Instituto de Pesquisa Ibope. “Eu me lembro que, no grupo, tinham dois jovens de classe média alta e eles defendiam que o mercado devia se autorregular. E uma senhora respondia: ‘Mas pensa na pessoa mais pobre, do morro, se os preços ficarem exorbitantes, ele não consegue pagar pelo uso, pode não ter como levar os filhos na escola’. É um exemplo perfeito de como as diferentes visões e vivências se encontram no mesmo espaço, buscando um resultado que beneficie toda a população”, descreve Silvia. Ilhéus foi um tipo de versão beta de um minipúblico ou uma assembleia cidadã, modelo de tomada de decisão que se torna cada vez mais popular no mundo. Na cidade baiana, deu bons frutos, levando à criação de uma lista de recomendações dos cidadãos que depois foi levada ao poder público e algum tempo depois aconteceu a regulamentação.

Você decide

Um dos exemplos mais conhecidos da chamada onda deliberativa – assim descrevem os especialistas – é a experiência na Irlanda, que contribuiu para a legalização do aborto no país. Em 2016, o parlamento irlandês propôs a criação de uma assembleia cidadã que pensaria a questão. Noventa e nove pessoas foram escolhidas, num equilíbrio de gênero, idade, classe social e origem geográfica. Havia ali uma mistura de perfis e também de opiniões, com pessoas sendo extremamente contra a legalização e outras que viam a queda da proibição como uma questão urgente. A deliberação durou cinco meses. Nesse tempo, médicos, cientistas sociais, advogados e pessoas especializadas em ética foram ouvidas – aqui também foram incluídos profissionais a favor e contra a legalização. Transmitidos online, os encontros podiam ser acompanhados pela população. Terminado os debates e alcançada uma opinião geral, foi escrito um relatório de recomendações do minipúblico, entregue ao parlamento. Cerca de um ano depois, a Irlanda realizou um referendo sobre o assunto e a população votou pela queda da proibição. “Eu me lembro de uma mulher falando: ‘Eu não fui e nunca serei a favor do aborto. Continuarei repudiando caso seja a decisão de alguém próximo a mim. Porém, hoje entendo que a legalização é o melhor caminho para o país’”, conta Silvia. “É muito bonito de assistir a esses encontros, porque aparece o melhor das pessoas. Elas entendem a responsabilidade que estão assumindo de representar os outros. Nas deliberações, ela deve convencer quem não pensa do mesmo jeito que ela e isso exige que ela pense na forma de apresentar seus argumentos. Ser agressiva não leva a lugar nenhum, por isso que os encontros não têm discussões”, acrescenta. “É muito diferente do que vemos nas redes sociais e do cenário polarizado que estamos testemunhando agora”, afirma Arantxa Mendiharat, cientista social, estudante e ativista pelos processos deliberativos e gestora da Borra-dores Del Futuro, projeto cultural em Bilbao, na Espanha.

“É muito bonito de assistir a esses encontros, porque aparece o melhor das pessoas. Elas entendem a responsabilidade que estão assumindo de representar os outros”

Silvia Cervellini, cientista política
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(Kelly Boeni/Ilustração)

Por que funciona?

Os minipúblicos têm resultados atraentes porque são bem estruturados e respeitam uma metodologia bastante clara. Na primeira etapa, há uma busca por candidatos a participar, que devem se inscrever. Depois, é feito um sorteio que leva em consideração a equidade ou a proporcionalidade da população na região. Gênero é o único fator indiscutível, 50% do grupo deve ser formado por homens e os outros 50%, mulheres. “Podemos inserir controles de idade, classe social, raça, estudo, identidades de gênero e orientação sexual”, explica Silvia. Em seguida, num primeiro encontro, é feita uma oficina para explicar os procedimentos e deixar explícito que a voz de ninguém é mais importante que a do outro. “Deliberar é você ser igual entre diferentes. Vai haver divergências e, por isso, é preciso ouvir o outro”, fala Silvia. O começo do trabalho se dá com a etapa informativa, em que os participantes recebem material com conteúdo, além de ouvirem especialistas diversos falando sobre o tema. “A pessoa não precisa ser especialista. Ela vai trazer o mais importante, a experiência de moradora, de usuária”, conta Silva. A informação leva às trocas e, com mediação, se chega a um documento final com recomendações ou com a posição da assembleia. Isso é levado ao poder público ou instituição responsável. Muitas vezes, quem patrocina o minipúblico é um órgão do governo que busca direcionamento sobre uma questão, e aí é mais fácil ver a discussão se tornar realidade. “Em Oregon, nos Estados Unidos, a Healthy Democracy promove os minipúblicos a respeito de questões que serão votadas num referendo e a resolução do grupo é impressa e entregue junto com a cédula de votação, assim as pessoas têm embasamento para tomar suas decisões”, acrescenta a cofundadora do Delibera Brasil.

Segundo Silvia, essas diferenças fazem os participantes migrar do modo consumidor para o modo cidadão. “Na política, para ganhar uma eleição, você precisa de 50% dos votos mais um, então é improvável que, durante a campanha, você fale pra alguém que a necessidade dela não vai ser atendida. As falas não são muito explícitas nesse sentido, isso é proposital. Como quem concorre promete que, se ganhar, vai dar a você mais do que o outro que compete, você se vê na posição de cobrar aquilo. Isso é o modo consumidor, você priorizando a sua necessidade e votando em quem garante que vai dá-la a você”, explica a cientista política. Já o modo cidadão é aquele em que a pessoa pensa num coletivo, no impacto daquilo não só na família dela. Ela é convidada a debater com seus diferentes e iguais e toma para si sua parte na responsabilidade social e democrática.

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(Kelly Boeni/Ilustração)
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Qual o diferencial?

Dá pra dizer que está difícil encontrar alguém 100% satisfeito com a política atual. O afastamento dos poderes da população, o sistema complicado de entender, a falta de discussão de causas e o excesso do Fla-Flu torna a política pouco palatável. Mas não é algo que se possa abrir mão, afinal, são essas pessoas que vão decidir muitos aspectos de sua vida. Nesse sentido, o minipúblico se torna ainda mais atraente, porque permite que as pessoas consigam comunicar suas opiniões e preferências. “Há muitas questões relativas aos governos hoje, mas acho que uma das principais é que as pessoas não confiam nas decisões tomadas pelo governo e quando elas podem fazer parte do sistema, isso muda”, fala Arantxa. Segundo ela, a grande vitória da metodologia, porém, é a capacidade de criar espaços de discussão e opinião diversos. “Se você olhar como nos organizamos politicamente, estamos em bolhas, ouvindo nossos iguais, que pensam como nós. Nos poderes públicos, vence a maioria. Mas quando fazemos uma deliberação, criamos esse espaço que une pessoas diversas com informações e direcionamento para transformar aquilo numa decisão geral. Parece algo simples, mas não acontece”, completa a cientista política, que cita a proximidade do sistema com a democracia ateniense. Ela lembra, contudo, que os minipúblicos fazem parte do sistema democrático, portanto eles devem estar em contato com instituições públicas e privadas e suas recomendações devem seguir os caminhos tradicionais do sistema político. “Sem isso, pode acontecer abuso de poder. Os minipúblicos só dão certo no máximo de democracia possível”, ressalta.

O Delibera já tem outros casos concluídos e agora promove um programa de capacitação e mentoria de organizações para que elas possam promover as assembleias sozinhas. “Não queremos ser uma fábrica de minipúblicos, mas disseminar a prática para que todos possam usar. Pode ajudar em temáticas diferentes e questões de tamanhos diversos”, diz Silvia. Com o sucesso dos minipúblicos no mundo e no Brasil, a preocupação das organizações internacionais agora é garantir que esse sistema seja sustentável, cresça e tenha efeito contínuo na sociedade. De olho nisso, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico elabora um relatório anual sobre os avanços da metodologia no mundo. “A discussão atual é sobre como fazer isso ser parte permanente do sistema em vez de dissolver as assembleias após a discussão de um problema, como prolongar a participação dessas pessoas em questões da sociedade. Isso já acontece na Bélgica e no Canadá, então temos exemplos para nos inspirar. O ideal é que, enquanto a gente mantém essas estruturas, cria novas, mesmo que essas sejam passageiras, assim muita gente pode ter a experiência da deliberação, da assembleia cidadã e entende a importância delas”, alerta Arantxa.

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(Kelly Boeni/Ilustração)

“Se você olhar como nos organizamos politicamente, estamos em bolhas, ouvindo nossos iguais, que pensam como nós. Nos poderes públicos, vence a maioria. Mas quando fazemos uma deliberação, criamos esse espaço que une pessoas diversas com informações e direcionamento para transformar aquilo numa decisão geral. Parece algo simples, mas não acontece”

Arantxa Mendiharat, cientista social
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O rosto e as vozes

“É fundamental humanizar esse processo, para que todos vejam que há outras pessoas ali. Isso concretiza um processo que ainda é abstrato para muitos”, explica Silvia. Os participantes também têm ganhos cognitivos, pois entendem a importância da informação, aprender a buscar fatos e a importância disso antes de tomar uma decisão ou dar uma opinião. Além disso, ganha na convivência democrática, na compreensão da cidadania. Isso vira um instrumento para fazer política dali em diante, mesmo que seja no círculo pequeno e em ações que a pessoa já tinha”, acrescenta Silvia.

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(Kelly Boeni/Ilustração)

Segundo Arantxa, o processo de um minipúblico transforma os sorteados. “No começo, eles não têm nada a dizer, porque o sistema político atual nos faz acreditar que sem estudos ou responsabilidades específicas não podemos pensar e fazer políticas públicas. Nas assembleias, as pessoas descobrem que podem. E o método ensina um funcionamento social mais coletivo, todos falam e partilham suas opiniões”, diz.No Brasil, o Delibera pôde perceber algumas especificidades da população. As mulheres tendem a ser as mais participativas. Muitas vezes, para garantir a equidade de gênero, é preciso fazer uma segunda rodada de recrutamento de homens. “Por ser mais difícil que as mulheres participem da política convencional, elas se comprometem mais quando chegam no minipúblico, é a chance de fazer parte”, explica Silvia. “A gente recebe do jovem a perspectiva do amanhã e, da mulher, o cuidado com o outro. Arantxa destaca que o método também incentiva a participação feminina: “É algo com tempo contado, vai durar aqueles meses e ela pode se organizar para estar lá, mesmo que seja um período mais pesado. Na política tradicional, em que ela precisa abrir mão de algumas partes da vida dela, isso já fica mais difícil”. Além disso, em muitos lugares, as mulheres já assumiram o papel de coordenação das comunidades, organizam atividades e iniciativas de interesse de todos, mas não têm voz no grande cenário. Chegou a hora disso mudar.

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