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Deus ex machina

Primeiro humano reconhecido como ciborgue, Neil Harbisson "escuta cores", cria arte com suas percepções e se tornou ativista pelo direito das transespécies

por Nina Rahe Atualizado em 27 jul 2021, 11h01 - Publicado em 27 jul 2021 01h01
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(Clube Lambada/Ilustração)

ão nove horas da manhã em São Paulo e duas da tarde em Barcelona, de onde o britânico Neil Harbisson atende a videochamada. Mal a imagem se forma na tela do computador e ele já avisa que, antes de começar a conversa, gostaria de apresentar Pol Lombarte, artista que, desde maio, passou a ter acesso a seu cérebro. A invasão, um pouco inusitada, se dá pelo fato de que Neil, desde 2004, possui uma antena implantada na cabeça, por meio da qual consegue “ouvir as cores”: os tons são percebidos como notas e a saturação por meio do volume. Diagnosticado com acromatopsia, doença que compromete a visão em ambientes claros, Neil decidiu inserir um chip em si próprio durante o curso de Composição Musical, quando percebeu que a maioria dos sensores responsáveis pela ampliação dos sentidos estavam acoplados em máquinas. 

Agora, para quem se tornou a primeira pessoa reconhecida como ciborgue por um governo – título que conseguiu depois de muita batalha para provar, na renovação de seu passaporte britânico, que a antena que possui não era um aparato eletrônico, mas, sim, um órgão –, trabalhar em dupla tem sido um dos grandes prazeres. Em uma transação casada via NFT, tanto Pol comprou os direitos para enviar imagens ao cérebro do músico, como Neil adquiriu a possibilidade de alterar os batimentos cardíacos do artista, que possui um sensor externo ao corpo. 

Se há 17 anos houve espanto da família e dos amigos ao receber a notícia de que Neil implantaria uma antena, o músico, que está à frente da Fundação Ciborgue desde 2010, vê vários outros artistas interessados em usar a tecnologia para ganhar novos percepções do mundo, com órgãos capazes não só de transmitir a sonoridade das cores, como de perceber os abalos sísmicos ou mesmo a rotação da terra. Em seu mais novo projeto, ainda em fase de testes, Neil deve soldar ao redor do colo uma espécie de colar que levará 24 horas para dar a volta em seu corpo, alterando a cada ponto sua sensação térmica. “Um órgão para perceber a passagem do tempo e o objetivo é que meu cérebro se acostume ao ciclo de 24 horas”, explica. “É colocar em prática a teoria da relatividade.”

Não à toa, seus sonhos – agora recheados de cor – são frequentemente habitados por seres providos também de antenas. Uma realidade que ainda parece utópica em um mundo no qual a percepção de um aparato eletrônico na cabeça pode ser sinônimo de insultos e agressões. Se, para fugir deles, Neil muitas vezes evita certos lugares, muda de caminho ou oculta sua identidade, aqui ele responde em alto e bom som: “Podemos ter os corpos que quisermos.”

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(HEAPS / TOSHINORI SUZUKI/Divulgação)
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De onde vem seu interesse pela tecnologia?
A tecnologia nunca me atraiu, mas, em 2003, um dos alunos [do Dartington College of Arts] promoveu uma conversa na universidade sobre sensores. O bate-papo me interessou muito, porque era algo que nunca tinha ouvido falar e, quando decidi pesquisar mais sobre isso, me dei conta de que muitos deles estão sendo usados somente para máquinas e não para as pessoas. Daí meu interesse em criar um sistema para que eu pudesse perceber algo que não podia antes. Foi algo natural, meu objetivo nunca foi me converter em ciborgue, porque nem sabia o que isso queria dizer na época. 

Quando você passa a se identificar como ciborgue?
Foi 31 de outubro de 2003 o dia em que a tecnologia me inspirou pela primeira vez e quando entendi que ela poderia nos fazer sentir coisas que nós não podemos sentir naturalmente. Foi quando Adam Montandon comandou esse bate-papo sobre sensores que se usam em robôs, explicando que robôs podem sentir proximidade. Essa conversa me inspirou e, a partir dela, busquei durante meses a forma de criar algum sistema sensorial para mim. Como estava estudando música, me interessava que fosse algo sonoro e desde pequeno me chamava muita atenção a teoria de Isaac Newton, que criou uma escala musical a partir das cores ao dizer que cada cor tinha uma vibração e cada vibração equivalia a um som, ainda que na época ele não tivesse tecnologia suficiente para detectar as vibrações de cada cor. Em 2004, no entanto, já havia como detectá-las e, em março desse ano, eu já tinha o primeiro protótipo de antena. Criamos um sistema muito básico, com computador, webcam e fones de ouvido para escutar as vibrações das cores. Era um sensor e, quando comecei a ouvir, meu interesse logo deixou de ser apenas usá-lo como ferramenta para buscar uma forma de incorporá-lo ao meu corpo de forma orgânica. 

As ondas de Baby, música de Justin Bieber, convertidas em cores
As ondas de Baby, música de Justin Bieber, convertidas em cores (Neil Harbisson/Reprodução)

E de que forma você conseguiu convencer um médico a implantar esse sensor no seu corpo?
O Adam foi quem me ajudou a criar o primeiro sistema e, depois, busquei outras pessoas para torná-lo ainda menor e convertê-lo em um chip. Depois de ter o sensor convertido, o mais difícil mesmo foi encontrar um médico que pudesse implantar o sistema no meu corpo. Todos disseram não e também pontuaram que eu teria que apresentar o pedido em um comitê de bioética. No comitê, mais uma vez, a cirurgia foi negada, pois eles não viam o implante como necessário e, por isso, avaliaram como antiético. Tentei, então, encontrar alguém que fizesse anonimamente e encontrei um médico que disse que, sim, poderia fazer. Ele sabia que os comitês jamais aceitariam, mas disse que se em dez, quinze anos, começassem a aceitar esse tipo de cirurgia, poderíamos divulgar seu nome e publicar o procedimento, porque foi gravado. 

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(Neil Harbisson/Divulgação)

Ele não teve medo de que a gravação se tornasse pública?
Foi anônima porque poderiam retirar sua licença, já que não é legal fazer cirurgias novas que não tenham sido aprovadas pelos comitês de ética. Mas nós alugamos uma clínica, fizemos a cirurgia e pronto. Não o notei estressado, preocupado. Acho que há médicos mais tranquilos e outros nem tanto. Há uma variedade de profissionais e, com o passar dos anos, temos conhecido cada vez mais interessados em colaborar conosco nesses tipos de procedimento. Acho que há um paralelismo com o que se passava nos anos 1950 e 60 com as operações transgênero. Havia muitos médicos fazendo cirurgias transsexuais e talvez a gente esteja vendo o mesmo agora com as cirurgias transespécie. Muitos médicos estão dispostos, outros não, mas em algum momento um país começará a aceitar cirurgias ciborgues e será algo que se normalizará pouco a pouco. 

“Acho que há um paralelismo com o que se passava nos anos 1950 e 60 com as operações transgênero. Havia muitos médicos fazendo cirurgias transsexuais e talvez a gente esteja vendo o mesmo agora com as cirurgias transespécie. Muitos médicos estão dispostos, outros não, mas em algum momento um país começará a aceitar cirurgias ciborgues e será algo que se normalizará pouco a pouco”

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(Will Clapson/Divulgação)

Como foi a adaptação a esse novo órgão e de que forma ele é carregado?
Foram dois processos. Um para se adaptar aos novos inputs sensoriais e o outro para se adaptar a antena na cabeça. A recepção das vibrações no crânio foi algo muito novo e precisei me acostumar a esse eco eletrônico. A antena, por outro lado, é agora parte do meu esqueleto, porque o osso no decorrer dos meses foi crescendo e a absorvendo. Esse processo foi doloroso porque você começa a notar que o crânio vai se unindo outra vez. Doeu muito, “dor de antena”, acho que podemos chamar. O objetivo é que, no futuro, a energia do corpo possa carregar os novos órgãos sensoriais através do fluxo sanguíneo, mas ainda precisamos de eletricidade como parte da nossa “dieta”. A bateria costuma durar cinco dias e sempre recarrego antes de que ela acabe. Posso ficar sem wi-fi, mas raramente fico sem energia. 

Mozart – Rainha da Noite, convertida pelo sistema que transforma ondas em cor de Neil
Mozart – Rainha da Noite, convertida pelo sistema que transforma ondas em cor de Neil (Neil Harbisson/Reprodução)

Você já disse que parte da sociedade enxerga o ciborguismo como ameaça. Por que isso acontece?
As pessoas acreditam que se converter em algo que é menos humano é algo ruim, mas não vejo dessa forma. Estamos rodeados de espécies, animais, árvores, objetos, que não são humanas e que não são piores. Por que então se sentir menos humano poderia ser mau? Da minha parte, não me sinto 100% humano por ter acrescentado novos órgãos e sentidos que não são 100% humanos, mas isso não me torna uma pessoa má. Pelo contrário, faz com que eu me sinta mais conectado com outras espécies e à natureza porque posso perceber elementos naturais que não podia perceber antes. 

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(Neil Harbisson/Divulgação)

Por conta da antena, você chegou a enfrentar ataques. Há preconceito?
As reações sociais foram mudando no decorrer dos anos, mas seguem sendo diárias, de gente que zomba de mim porque estou com antena àquelas que me reconhecem e fazem perguntas. São pessoas a favor, que acham que é inspirador, e pessoas contra, que opinam sobre meu corpo, minha forma de perceber a realidade, o fato de não ser humano, de que minhas escolhas vão destruir a humanidade. Dizem que Deus não aceita, que estou bancando o ridículo, que é perigoso, tudo o que você pode imaginar. O mais difícil de me converter em um ciborgue sem dúvida tem sido a reação social porque tenho tido que interagir com desconhecidos todos os dias e escutar deles comentários extremos. Já fui inclusive atacado por pessoas que tentaram tirar minha antena e esse é um direito que não existe. Se alguém me ataca e quebra minha antena, o ato seria considerado dano à propriedade e não deveria ser assim, pois é uma lesão física. Estão me agredindo fisicamente, é parte do meu corpo e não minha propriedade. 

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Quais são os direitos que precisam ser conquistados?
Em 2004, quando precisei renovar meu passaporte britânico, não aceitaram por causa de uma norma que não permite aparecer nas fotos com elementos eletrônicos. Eu contestei dizendo que não era um elemento eletrônico, mas um novo órgão. Comecei uma batalha por cartas e precisei até mesmo da confirmação de um médico de que a antena não poderia ser retirada. Esse é um direito, de que se alguém sente ou inclui a tecnologia como parte de sua identidade, ela possa ser aceita como órgão. Outro direito que defendemos é a liberdade morfológica, a liberdade de decidir como queremos nosso corpo. Hoje em dia, ainda, se alguém quer implantar uma antena, terá problemas em encontrar um médico que realize o implante. Além disso, defendemos também o direito de decidir quem pode entrar em seu corpo. Não há nenhuma lei que me proteja no caso de alguém que, com a internet, decida entrar na minha cabeça e me mandar cores. Esse é um direito fundamental, juntamente com o direito básico de que somos todos iguais, a quantidade de sentidos ou órgãos que cada um tem não o faz superior nem inferior.

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(Lars Norgaard/Divulgação)

Como o seu interesse pelo ciborguismo se une à arte?
Eu venho da música, sou pianista, estudei Composição Musical no Reino Unido [no Dartington College of Arts] e tive uma disciplina de música experimental que foi onde comecei a usar tecnologia dentro da música. Eu não estava interessado em criar música eletrônica, como estavam fazendo os outros alunos, e tentei criar algo diferente, que fosse inovador para mim. O que me chamou atenção não foi a música eletrônica, senão um músico eletrônico. A música ciborgue é a música que se cria através da cibernética unida a um organismo. O que apresentei na universidade como trabalho de conclusão de curso foi música ciborgue, mas em vez de apresentar partituras com notas musicais, como faria Mozart, entreguei pinturas, já que cada cor é uma nota. E quando terminei o curso, resolvi seguir nessa percepção de criar músicas e concertos a partir das cores. São músicas de meias, de rostos. Quando me aproximo do rosto de alguém posso escutar as suas cores. Meu instrumento musical já não é mais um piano, mas as cores e com elas eu faço performances de música. Sigo sendo músico ainda que pinte. O que pinto é música e as pinturas que faço são músicas que eu posso escutar. 

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(HEAPS / TOSHINORI SUZUKI/Divulgação)

Como surge o termo “arte ciborgue”?
Em 2004, quando comecei, havia referências de artistas que incorporavam a tecnologia em seu corpo para fazer uma performance, bailarinas que dançavam com sensores ou algo que se instalava no corpo e depois era retirado. A proposta era a de usar o corpo para mover máquinas e, no meu caso, é o contrário, a ideia é me unir à tecnologia para modificar meu cérebro. É a tecnologia como input e a arte de modificar a percepção da realidade e criar a partir dessa modificação. Eu não chamo de body art porque meu objetivo não é o corpo, mas o cérebro, e no início eu não encontrava a palavra para definir o que estava fazendo porque nada era exatamente o que eu estava fazendo. Portanto, comecei a definir como “arte ciborgue”, uma arte que necessita da tecnologia unida a um organismo para existir. A definição é criar novos sentidos, novos órgãos sensoriais e mostrar sua percepção da realidade.

Muitas vezes ainda há uma separação na forma que encaramos a tecnologia e a natureza. De que forma a “arte ciborgue” pode ajudar a mudar essa percepção?
A tecnologia pode nos isolar da natureza como também pode nos unir a ela. Nós estamos rodeados de elementos que os humanos não podem perceber, e nos unir à tecnologia pode permitir o acesso a partes da natureza que nunca conheceríamos. Isso poderia nos reconectar de uma forma muito profunda e é essa união entre corpo e tecnologia que gosto de experimentar. Acho que um futuro necessário seria nós nos modificarmos em vez de modificarmos o planeta. O que nossa espécie está fazendo durante milhares de anos é modificar o planeta para que possamos nos adaptar a ele e isso não é certo. Não deveríamos acender luzes à noite, mas ter visão noturna. Não deveríamos gastar energia com calefação e ar condicionado,  mas deveríamos mudar a nossa temperatura. Não alterar nosso entorno, mas alternar a nós mesmos. Se tivermos sucesso em fazer isso, o planeta estará muito mais tranquilo e poderemos nos adaptar sem necessidade de destruí-lo. 

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(Will Clapson/Divulgação)

O que mudou desde que você se converteu em ciborgue? Há algum ponto negativo na sua nova rotina?
Quando vou dormir em hotéis, por exemplo, as camas possuem cabeceiras e as cabeceiras golpeiam a antena. Se não estou em casa, as cabeceiras me incomodam e normalmente eu giro para dormir com os pés no lugar da cabeça e a cabeça no lugar dos pés. Assim minha antena fica mais livre. Também passei a evitar caminhar por algumas ruas. Evito passar na saída dos colégios às cinco da tarde, quando as crianças e os adolescentes estão todos juntos. Também evito lugares com muita gente bêbada porque podem ser muito inconvenientes. A principal mudança foi nas relações sociais, porque há reações boas mas muitas ruins e tenho que suportá-las. 

Alguma vez já se arrependeu de ter se tornado um ciborgue?
Eu não me arrependo em nenhum momento de ter feito a cirurgia, mas algumas vezes escondo a antena com um gorro para evitar certas situações. Se vou ao banheiro público, por exemplo, escondo porque não quero que pensem que estou gravando. Criei alguns hábitos para evitar problemas e evitar a interação, mas são coisas que tenho que fazer simplesmente. Durante um período, tentei que a antena não fosse tão visível, mas foi pior, porque se as pessoas veem algo disfarçado, pensam que estou escondendo e eu não tenho que me esconder. Não temos que esconder nossos órgãos, nossas identidades e nem nos arrepender. Podemos ter os corpos que quisermos e não temos porque ocultá-los. Não, eu não me arrependo, em absoluto, e faria de novo. 

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