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N.I.N.A é a bruta, a braba e a forte

Acompanhamos a rapper Nina em uma sessão de fotos e conversamos sobre sua trajetória, o primeiro álbum e o machismo no cenário musical

por Beatriz Lourenço 12 jun 2022 22h27
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(Clube Lambada/Ilustração)

ara a MC e DJ N.I.N.A, lotar um show é mais satisfatório do que ser parada na rua para tirar fotos. Isso porque esse é o momento em que o artista apresenta seu trabalho e, quando o retorno do público é positivo, há a validação de que está no caminho certo. “Ver as pessoas cantando, coreografando e gritando minhas músicas é muito satisfatório”, diz à Elástica. Além disso, ingressos vendidos significam o aluguel pago sem atrasos no fim do mês. 

“Vivi nesse sufoco de tentar fazer dinheiro para pagar aluguel e botar a comida na mesa de casa até agora. A última vez que tive uma roupa de Natal ou Ano Novo foi em 2015, porque ganhei dos meus avós. Quando comecei a correr atrás de dinheiro, tudo isso era luxo”, afirma. 

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A rapper é um dos nomes em ascensão na cena nacional do grime e do drill, estilos que podem ser classificados como desdobramentos do trap e do rap. O primeiro surgiu na periferia de Londres no início dos anos 2000 e tem uma batida mais agressiva, com beats de 140 batidas por minuto. Já o segundo nasceu em Chicago, há cerca de dez anos, e tem os sons graves mais marcantes. 

“O drill fala muito sobre questões envolvendo o crime e o que estava sendo falado era só isso, mas a música não pode ser fechada em um nicho. Passei a cantar porque senti falta de mulheres artistas e também de um diálogo com o público feminino tratando de temas como autoestima e insegurança”, reflete. E são esses assuntos que permeiam seu primeiro álbum, Pele, lançado em maio deste ano. O trabalho conta seu íntimo e sua trajetória de vida – que não foi nada fácil. Com ele, N.I.N.A se destacou e hoje atinge mais de 417 mil ouvintes mensais no Spotify, que a tornou capa da playlist RADAR deste mês. A convite da plataforma, acompanhamos uma sessão de fotos com a cantora e contamos tudo o que sabemos sobre ela aqui. 

“Passei a cantar porque senti falta de mulheres artistas e também de um diálogo com o público feminino tratando de temas como autoestima e insegurança”

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(Marvin/Spotify/Divulgação)

De Anna à N.I.N.A

Quando chegou no galpão do bairro da Lapa, em São Paulo, com sua equipe, N.I.N.A ainda era Anna Ferreira, uma jovem que nasceu na Cidade Alta, Rio de Janeiro, e que tinha o sonho de ser professora de filosofia. Ao sentar na cadeira de maquiagem, ela conta que, depois de se decepcionar com a universidade, outro sonho tomou o lugar: o de virar artista. O que a fez mudar de opinião? Bom, quando chegou à Universidade Federal Fluminense (UFF) cheia de expectativas, se sentiu deslocada e tentou mudar para se encaixar no ambiente – que não era favorável para uma mulher preta e periférica por conta dos preconceitos sociais. 

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“Sempre fantasiei que lá seria um High School Musical misturado com Hannah Montana, onde haveria acesso a inúmeras possibilidades. No fim, bati de frente com esse ideal e acabei entrando num colapso de cobranças porque tinha que ser dez vezes melhor do que qualquer outra pessoa ali”, lembra. 

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Foi aí que largou tudo e encontrou um emprego na cessão de crédito para bancar a criação de seu disco. Nesse meio tempo, aprendeu a discotecar, estudou o compasso das músicas e como usar sua voz da forma correta. As letras vieram de forma muito fluida, como se tivessem urgência de irem para o papel. “Fiz ‘Contramão’ em cinco minutos quando estava no ônibus voltando do trabalho. Tinha um beat há mais de um mês e, no meio do engarrafamento, saiu a letra. Terminei a melodia no estúdio e tudo ficou pronto muito rápido”, revela. Todas as suas canções têm a ver com o que sente, ou como ela mesma diz, “com a sua verdade” – e isso se dá ao fato de ter começado a acessar seus sentimentos há pouco tempo atrás. 

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“Durante muito tempo fui mais fechada, tinha medo de falar o que sentia. Toda a minha família é composta por mulheres pretas e nós não tínhamos tempo para demonstrar afeto e conversar sobre nossas inseguranças já que estávamos sempre correndo para poder deixar tudo em pé”, conta. “Quando comecei a pifar e passei a fazer terapia, entendi que não há problema em dizer o que penso e sinto. A forma que encontrei de fazer isso é com a música.”

“Durante muito tempo fui mais fechada, tinha medo de falar o que sentia. Toda a minha família é composta por mulheres pretas e nós não tínhamos tempo para demonstrar afeto e conversar sobre nossas inseguranças já que estávamos sempre correndo para poder deixar tudo em pé”

Ao colocar unhas postiças, um casaco de couro e um batom vermelho brilhante, N.I.N.A dá as caras. “Anna é essa aqui sem maquiagem, sem lace e que anda de boa pela favela. A N.I.N.A é o lado da artista que está conseguindo se mostrar. As duas estão vivendo um sonho”, pontua. “Já me odiei muito e me comparei com outras pessoas, mas o maior trunfo da minha vida é entender quem eu sou e me aceitar. Quero fazer com que as mulheres pretas se identifiquem comigo e também se amem.”

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(Marvin/Spotify/Divulgação)

Primeira vez em um hotel com banheira

Durante nosso papo, N.I.N.A conta que, no dia anterior, havia sido a primeira vez que comeu comida mexicana e se hospedou em um hotel com banheira. “Não sei porquê nunca tinha experimentado, mas amei demais. Espero comer hoje de novo!”, considera, com um misto de animação e orgulho. Orgulho porque, para chegar onde está, enfrentou o machismo no meio musical, trabalhou mais de quinze horas por dia e sofreu para pagar as contas no fim do mês: “Em fevereiro deste ano foi a primeira vez em que consegui pagar meu aluguel tranquilamente”.

“Sinto que passei por um apagamento porque a cena do grime e do drill é majoritariamente masculina. Só quem é mulher sabe que temos que correr muito para fazermos nossas coisas e ainda somos questionadas se usamos nosso corpo para isso. Mas quando mostro minha arte, não restam dúvidas do quanto me dediquei para que ela desse certo”, completa. Abaixo, confira nosso papo completo com a artista!

“Só quem é mulher sabe que temos que correr muito para fazermos nossas coisas e ainda somos questionadas se usamos nosso corpo para isso. Mas quando mostro minha arte, não restam dúvidas do quanto me dediquei para que ela desse certo”

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(Marvin/Spotify/Divulgação)

Você já comentou que saiu de onde morava para cursar Filosofia, na UFF. Como foi essa escolha?
Desde pequena, quis ser professora. Quando fiz o ENEM, pensei em escolher uma disciplina que não tive acesso na escola e que seria importante para o currículo, que é filosofia. Gosto muito de conhecimento, teoria e de entender de onde as coisas vêm. Nesse sentido, encarei essa jornada como um grande questionamento. Minha ideia era mudar o sistema e compartilhar conhecimento. 

Mas, quando você entra para a faculdade e vem de onde eu venho, percebe que tudo é muito diferente do que foi idealizado. Sempre fantasiei que lá seria um High School Musical misturado com Hannah Montana, onde haveria acesso a inúmeras possibilidades. No fim, bati de frente com esse ideal e entrei num colapso de cobranças porque eu tinha que ser dez vezes melhor do que qualquer outra pessoa ali. Ao longo do curso, descobri que aquilo não era o que eu queria e aí comecei a colocar o plano de fazer música em prática. Ainda assim, a filosofia me ajudou a abrir a mente de diversas formas e perder o medo de me expressar.

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Quando você desistiu do curso, teve que reencontrar com um “eu antigo”. Como foi esse reencontro e como essas duas personalidades se refletem nas músicas?
Na faculdade, eu lidava com pessoas que tinham uma condição financeira bem acima da minha, aí tentava me encaixar para que essas pessoas me aceitassem. Nesse processo, acabei me perdendo. Quando voltei para a minha favela, na Cidade Alta, bati de frente com tudo aquilo que eu tentei ignorar quando estava longe. 

Eu sentia falta de ser eu mesma sem pessoas dizendo que grito muito, que sou escandalosa ou agressiva – era muito cansativo. Quando voltei para a favela e me reencontrei, foi bem difícil, tive atrito com muitas pessoas. Também sofri porque fui a primeira pessoa da minha família a entrar para a faculdade e, ao sair, também tive que lidar com as expectativas que todos depositaram em mim. Ao mesmo tempo, foi muito bom porque descobri que eu me amava e não tinha problema em gostar de quem eu era. A Anna é essa aqui sem maquiagem, sem lace e que anda de boa pela favela. A N.I.N.A é a pessoa que está hospedada num hotel que tem banheira e comendo comida mexicana pela primeira vez. As duas estão vivendo um sonho. Me odiei muito e me comparei com outras pessoas, mas o maior trunfo da minha vida é entender quem eu sou e me aceitar. Minha ideia é fazer com que as mulheres pretas se identifiquem comigo e se amem também.

“Me odiei muito e me comparei com outras pessoas, mas o maior trunfo da minha vida é entender quem eu sou e me aceitar. Minha ideia é fazer com que as mulheres pretas se identifiquem comigo e se amem também”

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(Marvin/Spotify/Fotografia)

Depois de sair da graduação, você começou a discotecar. Como foi a transição de DJ para rapper?
Comecei a discotecar porque ouvi estilos novos e me apaixonei. Nessa época, já fazia poesia marginal e tive a ideia de musicar minhas letras. Isso porque senti que não estava ouvindo sons que eu conseguisse me identificar. Durante esse processo, estudei mais sobre compasso, como entrar numa música, como encaixar uma letra e as possibilidades de flow e melodia. Até que, em 2019, passei a cantar – escolhia um beat no Youtube e ia escrevendo. Foi quando conheci o pessoal do Brasil Grime Show e me chamaram para participar de alguns projetos com eles. 

O que você queria ouvir que não estava sendo feito?
Que nem sempre tenho que ser forte e que não sofro só por amor. Existem várias situações que também importam e refletem no dia a dia. Não havia uma mulher preta de favela falando sobre como o crime interfere no que a gente sente e como ele constrói a pessoa que você é. Viver num contexto tão difícil assim faz de você alguém diferente do que a sua família idealiza e o que você espera ser. É muito ruim acordar sem saber como vai ser seu futuro. Também é desagradável ver as pessoas que cresceram contigo seguir caminhos que não eram para ser normalizados. Precisava que alguém falasse sobre como é viver entre o medo e o vislumbre dentro de tudo o que há ao seu redor quando você vem da favela. Aí, como não tinha quem falasse sobre isso, fui lá e fiz. 

“Nem sempre tenho que ser forte e não sofro só por amor. Existem várias situações que também importam. Não havia uma mulher preta de favela falando sobre como o crime interfere no que a gente sente e como ele constrói a pessoa que você é”

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Suas letras falam sobre sexo e empoderamento feminino. Mas Nina sempre foi assim?
Empoderamento vai muito além da autoafirmação. Ele é mais sobre autoamor, autoconhecimento e nos ver como pessoas que valem o investimento. Às vezes, pensamos que algo é luxo, mas na verdade é necessidade. Eu achava que o fato de comer bem ou de fazer um exercício era luxo e, na verdade, não é. A partir do momento em que entendi que todos precisamos de qualidade de vida e precisava fazer isso por mim, me senti mais forte. Até essa semana, havia tempos que não saía para comer em um restaurante. Quando você vem da favela, vê isso como “coisas de patricinha” porque não imagina que é um direito. Hoje, a música está começando a deixar que eu me cuide da maneira que preciso. A primeira vez que investi na terapia foi há quase um ano e foi uma virada de chave para entender que isso é um direito meu. 

Você abandonou seu emprego numa empresa de cessão de crédito. O que fez você pedir demissão e se jogar na música?
Quando eu discotecava, ainda fazia faculdade e tentava me manter com isso. Mas tranquei o curso e entendi que não podia viver só disso porque já não tinha mais acesso ao que o ele me proporcionava, como o bandejão. Eu comia lá todos os dias por R$ 0,70 – era muito mais barato do que fazer uma compra de mês no mercado. Até que, em 2020, precisei de dinheiro para fazer música e tocar a minha vida. Aí fui pra CLT, só que não consegui fazer arte porque trabalhava incessantemente – saía às 5h de casa e chegava depois das 23h. 

Demorei quatro meses para conseguir gravar a música “Contramão”. Nesse meio tempo, fui chamada para fazer uma live em São Paulo e pedi para me liberarem uma hora antes para não perder o voo, mas não deixaram. Foi aí que entendi que precisava confiar no meu talento, apostar no que eu fazia e pedi demissão. Saí me sentindo muito leve, mas depois me questionei muitas vezes se era isso mesmo que deveria ter feito. Ao longo desse período, fiz rifas, campanhas e sorteios para conseguir me manter. Só em fevereiro desse ano pude respirar e colher os frutos do meu trabalho com a música, foi o mês que consegui pagar meu aluguel sem sufoco. Levou um ano até eu começar a respirar e conseguir me manter direito. 

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Você é muito influenciada pelo funk, né? Por que você escolheu o grime e o drill em vez de seguir com o trap ou até o próprio funk?
Foi uma questão de identificação. O drill fala muito sobre questões envolvendo o crime e o que eu estava vendo por lá era só isso, mas música não pode ser fechada só em um nicho. Estava sentindo falta de mulheres cantoras e um diálogo entre o público feminino de modo que elas passassem a serem humanizadas, falando sobre autoestima, inseguranças etc. Além disso, é um estilo de música novo e é importante que a gente o ajude a crescer para termos mais diversidade musical no Brasil. Sobre o funk, ainda sou muito apaixonada – tenho um sonho de fazer um projeto envolvendo o ritmo. Ele influencia muito minha escrita! Sou consumidora assídua de MC Carol e Tati Quebra Barraco, que são minhas referências. Funk é vida, está presente todos os dias da minha vida. 

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(Marvin/Spotify/Divulgação)

Você já comentou que as pessoas não te enxergam na cena por você ser mulher. Como você analisa o machismo no meio musical?
O silenciamento e o apagamento são a pior sensação que tive nesse meio. As pessoas sabem quem eu sou, dividem palco e sessão de estúdio comigo e continuam fingindo que não me enxergam. A gente vive num mundo em que a internet move tudo e qualquer curtida e compartilhamento pode mudar a vida de alguém. Ainda assim, há quem não queira te dar qualquer tipo de suporte. 

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Esse apagamento veio porque a cena do grime e do drill é majoritariamente masculina, então é muito difícil validar seu trabalho sendo mulher. Ouvi comentários ruins, vi pessoas agindo de má fé e, agora que lancei o álbum, também senti resistência. Como mulheres, sabemos que temos que correr muito para fazermos nossas coisas e ainda somos questionadas se usamos nosso corpo para isso. Quando mostro meu trabalho, não restam dúvidas do quanto me dediquei para que ele desse certo. 

Seu primeiro álbum se chama Pele. Queria que você contasse um pouco como foi o processo de criação, qual é o significado do nome e um pouco mais sobre as letras.
Foi muito doloroso. Comecei a fazer terapia por causa da música “Nina”, que fala sobre todas minhas inseguranças. Ela surgiu logo que minha carreira começou a bombar e eu bati de frente com tudo o que estava vivendo. Ao mesmo tempo em que as pessoas me reconheciam, postavam meu som e me gravavam na rua, eu continuava morando numa kitnet de um quarto e banheiro passando perrengue para comer. 

Nesse processo do álbum, houve vários problemas, como divergências com pessoas que trabalhavam comigo. Desacreditei muito de mim e, principalmente, tirei leite de pedra para fazer dar certo porque muitas vezes dava calote no ônibus para ir para o estúdio. O álbum foi surgindo conforme fui me tornando outra pessoa, por isso digo que ele é uma troca de pele – comecei a me amar mais e me empoderar. Se antes ele me fazia chorar, hoje ele me faz ter orgulho. 

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