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O dia em que encontrei dois presidentes

Pedro Neschling conta, em primeira mão, sobre a tarde que passou ao lado de Lula e Dilma

por Pedro Neschling 15 abr 2022 11h34
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(arte/Redação)

lguns dias atrás, eu tomei café da manhã com o Lula e a Dilma. Dá até vontade de rir quando eu leio essa frase. Me lembra de quando eu era criancinha e minha mãe foi chamada no meu colégio porque, no primeiro dia de aula, contei numa roda que nas férias tinha ido a Cuba passear com o tio Fidel. A professora disse pra minha mãe que achava incrível um menino de cinco anos já ter conhecimento de política internacional, mas que estava preocupada por talvez eu estar fantasiando demais. Só que não era fantasia. Eu de fato tinha ido a Cuba. E até desrespeitei o Fidel por lá – eu não tinha noção do perigo – me recusando a ir para uma creche porque queria acompanhar minha mãe nas palestras do congresso sobre a dívida externa dos países latino-americanos que ela tinha sido convidada pelo próprio a participar. Mas isso é outra história. Eu quero falar do encontro com os ex-presidentes. 

Minha mãe é o ponto de união entre esses dois momentos bastante improváveis na vida de qualquer pessoa. Dona Lucélia Santos é de Santo André, ABC paulista, e quando adolescente morava em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos, onde Luis Inácio fazia política sindical nos anos 1970. Assistindo seus discursos da janela de casa, começou ali a relação entre os dois, que o próprio Lula definiu como “umbilical”. Mais adiante, já famosa em boa parte do mundo por seu trabalho como atriz, minha mãe acompanhou a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) e sempre militou ao lado de Lula em suas causas e campanhas. Quando eu era criança, foram inúmeras as vezes em que ele esteve em nossa casa para conversas com artistas, políticos e intelectuais. 

O cotidiano de um político da dimensão do Lula não deixa muito espaço para relações pessoais sem fins políticos objetivos. E, justamente por isso, desde que ele se elegeu presidente pela primeira vez em 2002, nunca mais minha mãe tinha estado com ele sem ser em eventos públicos. “Presidentes não têm amigos”, me disse ela enquanto a gente esperava autorização para subir no hall do hotel onde ele estava hospedado no Rio de Janeiro. Importante ressaltar que essa não era uma constatação amarga da parte dela, apenas consciência do preço que um cargo tão importante cobra na vida pessoal. O carinho entre os dois é daqueles verdadeiros que não existe tempo e distância que diminua.

Estávamos indo encontrar com Lula por um motivo prático. Depois de quase quatro décadas de militância, minha mãe decidiu pela primeira vez se candidatar a um cargo público. Vai disputar uma cadeira de deputada federal pelo Rio de Janeiro. E em meio a complexa escolha de por qual partido concorrer, que leva em conta diversas questões pragmáticas que divergem das memórias afetivas que evidentemente a levariam até o PT ou ao Partido Verde (PV), do qual ela foi fundadora junto com Fernando Gabeira, Carlos Minc, Alfredo Sirkis e outros históricos militantes ambientais, ela internamente precisava da benção de seu mais antigo e importante amigo do universo político para seguir com a empreitada. Foi o próprio Lula que pediu para conversarem pessoalmente quando soube do plano.

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(Pedro Neschling/Arquivo)

Onde eu entro? Bom, digamos que eu tenha tido certa influência nessa decisão da minha mãe de sair da esfera de apoiadora para entrar em campo. Estou convencido de que, aos 64 anos de idade, com a bagagem de vida que carrega e sobretudo a energia e caráter que essa mulher tem, ela pode realmente fazer diferença no Congresso.

Ainda no hall, fomos surpreendidos pela notícia de que Dilma também estaria no encontro. Dei uma travada por alguns instantes. Demorei um tempo em minha vida até compreender a dimensão da admiração que nutro pela presidenta. A dignidade com que Dilma enfrentou todo o asqueroso processo que culminou em seu impeachment – sim, foi golpe, parlamentar, mas golpe – me faz olhar para ela e enxergar a definição de honra. A altivez com que ela suportou a derradeira sabatina no Senado, mais uma sessão de tortura que ela encarou na vida, nunca me sai da cabeça. Portanto, precisei respirar fundo algumas vezes até retomar o eixo.  

“Demorei um tempo em minha vida até compreender a dimensão da admiração que nutro pela presidenta. A dignidade com que Dilma enfrentou todo o asqueroso processo que culminou em seu impeachment me faz olhar para ela e enxergar a definição de honra”

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Subimos para o local do encontro e estavam os dois de pé nos esperando. Como diria minha avó quando via um amigo famoso da minha mãe, “são daquele jeitinho mesmo que a gente vê na TV”. Enquanto minha mãe dava oi para Dilma, Lula me cumprimentou um pouco confuso e eu fiz questão de esclarecer logo:

“Sou o Pedro, Lula. Filho da Lucélia” 

“Não é possível. Assim cheio de cabelo branco?”

Sentamos à mesa enquanto ele me perguntava sobre a minha vida. Queria saber se eu tinha casado, se já era pai e me olhava incrédulo, como se de alguma forma fosse impossível aquela menina que era sua amiga há tanto tempo ter um filho quase quarentão. 

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Da minha parte, não vou fingir normalidade. Fiquei extasiado e um tanto tenso ao me ver ali sentado, com dois ex-presidentes e minha mãe, falando amenidades e relembrando velhas histórias e companheiros de militância, muitos dos quais já nem estão mais vivos.

Serviram o café da manhã e o papo enveredou finalmente para o assunto que havíamos ido tratar. Com toda atenção, Lula e Dilma escutaram as dúvidas que minha mãe trazia dentro de si e deram seus experientes e valiosos conselhos.  De repente, sem que eu percebesse, outros assuntos começaram a se misturar de forma orgânica e eu já nem estava mais achando tudo tão surreal enquanto servia um pouco mais de café para todos, pensava que a manga estava deliciosa, explicava para eles como funciona a minha surdez, olhava pra Dilma e sorria, perguntava quantas horas Lula dorme por noite (por volta de cinco, ele disse), olhava pra Dilma e sorria, invejava a disposição do Lula para todo dia, no máximo às seis e meia da manhã, estar fazendo ginástica, olhava pra Dilma e sorria – como é bom ver ela forte e feliz depois de tudo.

“Na hora de ir embora, nos levantamos e, antes de sair, tiramos fotos trocando abraços sinceros que me fizeram lembrar que política, como minha mãe sempre me ensinou e pratica, é lugar de troca e de afeto”

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(Pedro Neschling/Arquivo)
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Quando um assessor entrou na sala para alertar que já estava na hora de ir embora – naquela mesma manhã Lula ia para a Bahia cumprir uma agenda abarrotada de compromissos –, nos levantamos e, antes de sair, tiramos fotos trocando abraços sinceros que me fizeram lembrar que política, como minha mãe sempre me ensinou e pratica, é lugar de troca e de afeto. E não faz sentido se assim não for. Mesmo hoje em dia estando mais para a professora que acharia toda essa história fantasiosa demais do que pro garoto de cinco anos que encarava tudo isso com naturalidade, a magia me tomou e voltei para casa mais leve e cheio de esperança. Impressionante como o Lula tem esse dom.

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