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A psicodelia de Potyguara Bardo

A cantora lança a música "Atrasado" e reúne milhares de fãs em Mato Grosso do Sul. Conversamos sobre novo disco, parcerias e o mundo holístico

por Beatriz Lourenço 23 dez 2021 01h10

A drag queen Potyguara Bardo é a persona performática de José Aquilino – multiartista que canta, atua, dubla e compõe. Natural do Rio Grande do Norte, ela se inspirou em Rupaul’s Drag Race para mostrar a que veio ao mundo. Seu nome já diz muito do que é e acredita: Potyguara vem da etnia indígena Potiguara e Bardo vem do livro A Experiência Psicodélica, de Timothy Leary, que explica que o termo significa estágios da experiência psicodélica.

Em uma conversa com a Elástica, ela conta que sua trajetória para chegar aos palcos não foi fácil, pois teve que lidar com o conservadorismo e a repressão de seu jeito afeminado desde a infância. Ainda assim, escrevia textos na adolescência para extravasar seus sentimentos. “Depois que eu acabei o ensino médio e saí daquele sistema inicial de repressão, fui para a universidade e pude ter mais liberdade para ser quem eu era. Nesse período, me senti confortável o suficiente para mostrar os talentos que acredito que desenvolvi ao longo da vida”, conta.

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(Potyguara Bardo/Divulgação)

Seu primeiro álbum, Simulacre, lançado em 2018, ganhou destaque na cena musical pela pegada holística, diversidade de sons e pela divertida jornada do herói. Isso porque ele conta a história da personagem Potyguara, que faz um pedido em um restaurante e recebe, por engano, cogumelos mágicos. “Ele tem vários efeitos colaterais e as músicas mostram ela mergulhando cada vez mais numa busca pelo amor, começando pelo material e acabando no encontro com o amor universal ao ter o seu ego dissolvido num rio colorido”, diz. “É uma história de uma decepção amorosa que leva a uma transcendência espiritual.”

“Dentro de casa, eu fazia até cena de novela e dublava sozinha, dentro do meu próprio mundo. Quando fui crescendo, ouvi algumas vezes em tom pejorativo que eu era artista e associei isso com a repressão que sentia por ser afeminado”

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(André Patroni / Festival Campão Cultural/Divulgação)

Seu single “Oásis” fez tanto sucesso que venceu a categoria de “Música do Ano” no Prêmio Hangar de Música. Além disso, em 2021, Potyguara foi parar na lista de drag queens com mais ouvintes mensais na plataforma Spotify em todo o mundo. Desde o debut até agora, ela já lançou canções com parcerias como Gaby Amarantos, Mateus Carrilho e Luísa e os Alquimistas. O próximo passo de sua carreira é o novo álbum, intitulado Comédia Romântica, previsto para ser lançado em 2022.

O jornalismo em que a gente acredita depende de você; apoie a elásticaPotyguara foi uma das atrações do Festival Campão Cultural, no Mato Grosso do Sul, e nós acompanhamos o show, que foi um dos mais esperados da noite. A performance minimalista fez o público dançar do brega ao funk e se apaixonar pelo novo hit, “Atrasado”, cantado ao vivo pela primeira vez.

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Queria que você lembrasse comigo o começo da sua trajetória como artista. O que fez você se aproximar da arte?
Começou no berço! Desde cedo, me lembro de performar no espelho e de cantar. Dentro de casa, eu fazia até cena de novela e dublava sozinha, dentro do meu próprio mundo. Quando fui crescendo, ouvi algumas vezes em tom pejorativo que eu era artista e associei isso com a repressão que sentia por ser afeminado. Essa foi uma ideia que ficou atrelada em mim de alguma forma e por muitos anos evitei aflorar essa arte de uma forma externa. Uma forma de externalizar era escrevendo muitas coisas que ninguém lia.

Depois que acabei o ensino médio e saí daquele sistema inicial de repressão, fui para a universidade e pude ter mais liberdade para ser quem eu era. Nesse período, me senti confortável o suficiente para mostrar os talentos que eu acredito que desenvolvi ao longo da vida, principalmente observando grandes artistas que admiro tanto.

Quando conheci a arte drag, percebi que era perfeita para mim porque era uma plataforma em que eu era o autor, o ator, o roteirista, o diretor e a cantora daquela cena que ia acontecer. Eu tinha o total controle e não precisava depender de ninguém para que creditassem a minha performance. Foi assim que finalmente me dei conta de alguns comportamentos e adquiri mais poder para construir a minha vida da melhor forma possível.

“A drag é esse escape para tudo o que sempre quis fazer e nunca tive oportunidade. Eu componho as minhas músicas, penso como elas vão ser cantadas e qual é o arco da personagem. Ao mesmo tempo, sinto aquilo que estou falando porque vem da minha verdade, do meu dia a dia e das coisas que sinto”

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(Potyguara Bardo/Divulgação)

Você falou dessas inúmeras artes que vivenciou. Mas quando foi que você se entendeu como artista?
Eu sempre escrevi durante a adolescência, mas nunca acabava. Artista, de fato, foi depois que comecei a dublar, antes mesmo de fazer música. Vi as pessoas falarem que eu tinha algum talento para fazer o que estava fazendo e isso aumentou cada vez mais minha confiança. Mas me lembro de lutar um pouco para me aceitar enquanto artista.

Hoje em dia, a minha visão se ampliou um pouco mais sobre o que é um ato artístico. Acho que cada palavra, cada esquina que a gente dobra e cada escolha que a gente faz vêm de um lugar de expressão, seja consciente ou não, e isso pode ser visto como arte.

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(André Patroni / Festival Campão Cultural/Divulgação)

E você canta, performa, escreve… É multiartista! Como é conciliar tudo isso?
Isso vem muito naturalmente porque a drag é esse escape para tudo o que sempre quis fazer e nunca tive oportunidade. Eu, componho as minhas músicas, penso como elas vão ser cantadas e qual é o arco da personagem. Ao mesmo tempo, sinto aquilo que estou falando porque vem da minha verdade, do meu dia a dia e das coisas que sinto. É bem gratificante, de certa forma, ritualizar essas catarses que a arte permite. É quase uma terapia alternativa.

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(André Patroni / Festival Campão Cultural/Divulgação)

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O disco “Simulacre” tem um pouco de funk, reggae e house, como foi juntar todos esses elementos?
Justamente porque eu não tinha um background específico, pensei nas coisas que eu queria falar entre o sagrado e o profano e como cada música poderia servir melhor essa mensagem. É por isso que “Mamma Mia” tem um funk. “Lambada do Flop”, que é mais triste, eu quis brincar e colocar um ritmo mais animado justamente para quebrar a letra.

Na verdade, decidi tudo junto com o meu caos natural. Mas, com o tempo, tenho sentido que cada vez mais estou encontrando uma unidade musical. Os ritmos que vêm da minha terra estão tomando proporções maiores.

Como é o seu processo criativo?
Geralmente, há uma pedra fundadora. Ela pode ser um tema, uma frase cantada ou um sentimento. A partir daí, começo a cantarolar baseado nisso e ouço a gravação prestando atenção no que é mais marcante. Por fim, tento preencher com mais letras. É como uma pedra esmeralda que você esculpe em um processo que dura um tempão.

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(André Patroni / Festival Campão Cultural/Divulgação)

“Simulacre” conta a história de uma personagem central que passa por várias questões durante as músicas.
O disco conta a história de Potyguara, personagem que fez um pedido nesse restaurante “Simulacre” e, ao invés de receber champignons, recebeu um cogumelo fictício mágico, o Shimagic. Ele tem vários efeitos colaterais e o álbum mostra ela mergulhando cada vez mais nessa busca pelo amor, começando pelo material e acabando no encontro com o amor universal ao ter o seu ego dissolvido num rio colorido. É uma história de uma decepção amorosa que leva a uma transcendência espiritual.

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As suas letras e o seu visual remete a um mundo místico. “Você não existe” fala um pouco sobre isso. É um reflexo das suas próprias crenças?
Eu vivi uma adolescência muito reprimida no sentido de não poder ser eu mesmo por me sentir limitado pela sociedade enquanto uma pessoa LGBTQIA+ e indígena. Então, acabei perdendo o fogo e a vontade de continuar vivendo porque estava em negação. Quando finalmente tive experiências mais espiritualistas e passei a perceber a realidade enquanto uma ilusão, vi que a arte me permitia ter maior consciência para construir um presente que me agradasse mais.

Além disso, entendi que a arte vem de um lugar acima da minha persona, acima do meu ego, acima de Potyguara e acima das crenças que me foram apresentadas. A divindade vem de algo além e, para mim, ela vem desse brilho e dessa vontade de viver e experimentar a realidade. É quase como uma sensação de ter escolhido passar por isso e sentir felicidade por estar aqui, por mais que às vezes seja difícil.

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(André Patroni / Festival Campão Cultural/Divulgação)

Você já disse em entrevistas anteriores sobre seu período de depressão. Qual é a importância de falar sobre saúde mental?
É muito difícil falar sobre isso de forma generalizada, então falo sobre a minha experiência pessoal e tento compartilhar experiências que me fizeram ter mais vontade de viver. Eu acho importante repetir e continuar falando do poder que é perceber a ilusão da realidade não só para inspirar pessoas, mas para relembrar diariamente o porquê estou aqui. Isso me ajuda a continuar e ser mais consciente do meu papel, que é me dar amor e fazer arte.

“Entendi que a arte vem de um lugar acima da minha persona, acima do meu ego, acima de Potyguara e acima das crenças que me foram apresentadas. A divindade vem de algo além e, para mim, ela vem desse brilho e dessa vontade de viver e experimentar a realidade”

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(André Patroni / Festival Campão Cultural/Divulgação)

Em “Oásis” tem uma frase que diz “cê tem noção que consegue me afetar mais do que a situação da política brasileira?”. Como a situação da política brasileira te afeta neste momento em que vivemos?
Já estava difícil quando eu fiz a letra! A situação política atual é muito desgastante de lembrar e de falar porque qualquer coisa que se fala parece que é chover no molhado. Mas o que eu quero dizer é ‘Fora Bolsonaro’ e ‘vidas indígenas importam’.

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Você também diz que “mil e uma rejeições já precisei encarar”, quais foram as rejeições que você precisou encarar e como você superou?
Na vida, temos nossos desejos e nem sempre eles são supridos – seja no nível romântico ou seja no nível profissional, social, enfim. A forma que eu lido com isso é seguindo com isso e fazendo arte. Às vezes eu nem vou descobrir que uma rejeição foi por causa da minha etnia ou identidade de gênero. Eu procuro ser fiel a mim o tempo todo e é o que desejo para quem passa por isso.

Como o Rio Grande do Norte reagiu, influenciou e abraçou Potyguara Bardo?
O meu nome vem dos povos Potiguara que vivem não só no Rio Grande do Norte, mas por toda a orla do Nordeste por conta da invasão da colonização. Isso me influencia muito fortemente porque é um povo guerreiro e me inspira a continuar sendo quem eu sou. Esse povo e todos os outros povos indígenas do país seguem sofrendo com a tentativa da colonização de apagar suas culturas.

Além disso, a música e a cultura daqui me inspiraram desde cedo, tanto os artistas que são meus amigos quanto os que eu vi se apresentando nas praças públicas. A minha vontade é que cada vez mais eu beba desse lugar em que eu nasci.

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(André Patroni / Festival Campão Cultural/Divulgação)

Recentemente você fez uma parceria com Gaby Amarantos. Como ela aconteceu e o que você leva dessa experiência?
Eu sou fã da Gaby há muitos anos e ela é uma força na arte e na vida. Ela é um exemplo para a cultura brasileira e quando ela me chamou para o álbum, minha cabeça explodiu e meu coração se encheu de alegria. A música que cantamos juntas é muito linda e fala sobre o amor. O clipe ficou sensacional e muito potente. Só tenho a agradecer a essa parceria.

Do início da sua carreira até agora, quais foram os aprendizados que você leva para si?
Eu aprendi que quando se tem uma mensagem, o caminho fica mais claro na sua frente para que você o siga. Também me dei conta que a gentileza é sempre o melhor caminho e que a vida é bem difícil, mas deliciosa ao mesmo tempo.

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