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Reconectar-se com a cultura

A primeira edição do festival “Campão Cultural" reuniu milhares de pessoas que prestigiaram shows, danças, palestras e artes visuais no Mato Grosso do Sul

por Beatriz Lourenço 8 dez 2021 00h30
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(Clube Lambada/Ilustração)

as últimas duas semanas, a cidade de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, recebeu a primeira edição do Campão Cultural. O festival é o primeiro na capital a juntar música, dança, teatro, arte e até uma feira dos saberes voltada para propagar o conhecimento ancestral. O evento foi um marco artístico que movimentou mais de 10 bairros campo-grandenses, além dos distritos de Anhanduí e Rochedinho. Ao todo, participaram 150 atrações regionais e nacionais, como a cantora Duda Beat, a grafiteira RafaMon e os escritores indígenas Casé Angatu e Auritha Tabajara.

Segundo Soraia Ferreira, uma das responsáveis pela organização, a ideia inicial era que tudo acontecesse de forma online. Porém, a taxa de 65,74% de adultos e jovens com o esquema vacinal completo tornou a retomada do presencial uma possibilidade viável. “Queríamos ocupar a cidade porque nunca tivemos algo dessa natureza por aqui. Dividimos Campo Grande em sete regiões e levamos cultura para todas delas”, conta. “Criamos algo para que pessoas de todas as idades pudessem aproveitar, desde crianças até adultos. Programar ações nas periferias também foi algo muito especial para nós.”

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Os primeiros sete dias do Campão tiveram foco na gastronomia com aulas sobre a cozinha local; no patrimônio, com oficinas de identidade cultural e no teatro, com apresentações de grupos locais. Na última semana, a música e a arte urbana tomaram o centro das atenções. O grupo sul-mato-grossense Vozmecê foi o protagonista do dia 1º de dezembro, quarta-feira. A mistura do forró, baião e MPB deu o tom para músicas cheias de críticas sociais. A “Tio Sam”, por exemplo, fala sobre o poder dos Estados Unidos de propagar o ódio pelas nações e dominar a economia global.

“Criamos algo para que pessoas de todas as idades pudessem aproveitar, desde crianças até adultos. Programar ações nas periferias também foi algo muito especial para nós”

Soraia Ferreira, organizadora do Campão Cultural
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(Vaca Azul/Divulgação)

Já o rapper mineiro Djonga cantou na quinta-feira e a organização estima que 8 mil espectadores o acompanharam – foi um dos shows mais esperados de todo o line-up. No sábado, Duda Beat ganhou os corações da plateia com canções que estimulam a superação de amores que não deram certo. Tudo ficou mais divertido quando a rainha da sofrência pop chamou o fã Vitor Rizo para cantar junto a música “Nem um pouquinho” em uma performance encantadora.

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(André-Patroni/Divulgação)

No domingo, último dia de apresentações, foi a vez de Dexter assumir os holofotes. O show começou com a canção “Voz Ativa”, que tem na composição a luta contra a desigualdade racial. No telão de fundo, a imagem de Angela Davis relembra que quando a cultura preta se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela. Todos esses shows foram os primeiros dos artistas após quase dois anos sem colocar o pé na estrada. A volta emocionou tanto os artistas, que comentaram a saudade de trabalhar, quanto o público, que pôde finalmente sair de casa e celebrar a vida. “Estou com muita saudade de cantar, nem sabia mais como era estar aqui em cima”, diz Duda.

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(Eduardo Medeiros /Vaca Azul/Divulgação)

Fazer pensar

O festival foi promovido pela Fundação de Cultura do Mato Grosso do Sul, que é vinculada à Secretaria de Estado de Cidadania e Cultura (Secic) do governo estadual e tem subsecretarias que tratam de questões LGBTQIA+, raciais e da juventude. Por isso, a marca principal do Campão foi a diversidade, a cidadania e a cultura de rua. Mas, fazer isso em um local com traços majoritariamente conservadores não foi fácil. “Buscamos trazer questões que precisamos rever, discutir e refletir. A nossa intenção foi jogar luz a esses temas por meio da arte porque ela tem o poder de fazer os indivíduos pensarem”, diz Soraia.

De fato, esse foi um passeio que atraiu aqueles que vivem às margens da cultura dominante da capital que, finalmente, se viram representados pela escolha de artistas. A corrida de drags foi uma dessas ações icônicas e coroou a drag queen Halley Star como grande vencedora. Já com visual místico, inspirado nos duendes, a cantora do Rio Grande do Norte, Potyguara Bardo, reuniu um dos maiores públicos da temporada para cantar os hits de seu álbum “Simulacre” e uma versão muito pessoal de “Wicked Game”.

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Pelas ruas de Campo Grande, o duo de artistas audiovisuais formado por Ceci Soloaga e Ygor Marotta, conhecido como VJ Suave, passearam com seu Suaveciclo – uma performance que utiliza triciclos audiovisuais adaptados com projetor, computador, caixas de som e baterias. Eles são usados como suporte para que personagens ganham vida e percorram o espaço aberto, iluminando as paredes em grande escala. A frase “Mais amor”, um arco-íris, uma onça pintada e até o curupira estamparam as ruas do centro e relembraram a importância da fauna e da flora e, principalmente, do respeito ao próximo.

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(André Patroni/Divulgação)

Outra intervenção que subverteu a cena local foi a apresentação de passinho do trio Os Fabullosos. Esse é um estilo de dança desenvolvido por jovens das favelas cariocas e teve início nos bailes funk em meados dos anos 2000. Os passos são uma mistura de breaking, frevo, samba e capoeira e demandam uma grande coordenação nas pernas e nos pés.

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Saber ancestral

O Mato Grosso do Sul tem uma das maiores populações indígenas do país, estimada em 63 mil pessoas. São Guarani Kaiowá, Terena, Kadiwéu, Guató e Ofaié. “A comunidade indígena é muito importante para o estado e precisamos viabilizar cada vez mais esse protagonismo”, ressalta a organizadora.

Nesta edição, a artista indígena transvestigênere do Amazonas, Auá Mendes, representou as artes visuais com uma palestra que falou sobre a divisão de gênero na sociedade, a ​​colonização e o processo criativo de obras que representam os povos originários. “Eu levo no meu trabalho a essência da sabedoria ancestral e isso é a minha verdade. Minha arte grita com a sociedade que vivemos hoje porque estamos retomando esses espaços de fala que foram retirados por essa colonização que ainda se perpetua no momento atual”, declara.

Grande parte de suas obras partem de personagens com corpos múltiplos e isso é o que garante as narrativas das telas. “O meu processo criativo deriva da minha própria realidade e ela está relacionada à comunidade trans. Todos esses corpos são políticos e existem. Enquanto um corpo trans, eu reivindico esse espaço que a colonização diz que não é”, afirma.

“O meu processo criativo deriva da minha própria realidade e ela está relacionada à comunidade trans. Todos esses corpos são políticos e existem. Enquanto um corpo trans, eu reivindico esse espaço que a colonização diz que não é”

Auá Mendes, artista
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(Daniel Reino/Divulgação)
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O trem do Pantanal

Grande parte das atividades aconteceu na Esplanada Ferroviária, localizada na região central. A Estação de Ferro Noroeste Brasil foi inaugurada em 31 de dezembro de 1912 e teve uma enorme importância para o desenvolvimento socioeconômico do estado, já que dali partiam os trens com destino à Bolívia e Chile.

Tombada como patrimônio histórico em dezembro de 2009, a Esplanada tem uma arquitetura industrial de influência inglesa, com tijolos aparentes do lado de fora e rua de paralelepípedo. As casas da região, por sua vez, foram quase todas usadas pelos antigos ferroviários, apesar disso, não são todas iguais e com a mesma qualidade. As que estão mais perto da estação foram construídas para os funcionários do alto escalão, enquanto as da Rua dos Ferroviários eram de madeira, material mais suscetíveis ao tempo.

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(Eduardo Medeiros/Divulgação)

Hoje, o espaço contempla um centro cultural; o Arquivo Histórico de Campo Grande, uma biblioteca que preserva a documentação da cidade; o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul e a Feira Central, onde é possível encontrar desde comidas típicas até produtos de tecnologia. “Queríamos usar esse espaço porque ele foi essencial para Mato Grosso do Sul e era uma possibilidade das pessoas se reconectarem com a história”, explica Soraia.

O palco construído ali homenageou Zé Pretim, músico que consolidou uma identidade que misturava o blues e o caipira. Considerado o “Bluesman Pantaneiro”, José Geraldo Rodrigues, foi encontrado morto em sua casa no mês de setembro, deixando tristeza a toda população.

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(Marithê do Céu / FCC/Divulgação)

Cultura, a expressão da sociedade

Pensar a dinâmica da cidade e da cultura como expressão da sociedade é sempre uma atividade atual e necessária. Isso porque elas são um organismo vivo que abrigam as expressões e formas de pensar do ser humano e, quando se juntam, têm o poder de transformar não só o cenário cotidiano, mas as pessoas e as estruturas do pensar.

Ou seja, se vivemos no país que mais mata pessoas trans, travestis e pretas, se faz cada vez mais urgente mudar esse comportamento e, fazer isso a partir da arte pode ser um dos caminhos possíveis. “Essa é uma das maneiras de normalizar nossos corpos”, diz Auá.

A criação de festivais de rua também promove a humanização do território. Enquanto as cidades estão cheias de logotipos e anúncios que promovem a cultura do consumidor competindo por notoriedade, os artistas desviam a atenção dos passantes para outro mundo – repleto de cores e formas diferentes que instigam a criatividade. Dessa forma, ao invés de coisas materiais, são exaltadas pessoas reais que circulam pelas ruas. O que a cultura visual urbana sugere é a verdadeira reflexão, crítica e acréscimo do sujeito a um mundo controlado de outra maneira.

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