última etnia indígena a ter contato com o homem branco no sul do país quer recontar a sua história. Os Xetá, população do tronco linguístico tupi-guarani, foram alvo de extrema violência nos anos 1950. Sua população foi drasticamente reduzida pela ação das frentes de colonização que modernizaram a região para a agropecuária. O órgão indigenista oficial da época, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), distribuiu os sobreviventes em diferentes regiões do Paraná, enfraquecendo sua luta, sua cultura, e diminuindo ano a ano a esperança de reocuparem dignamente suas terras. A existência deles ainda foi ameaçada por um agravante: além do processo genocida e do descaso do Estado, a etnia foi dada como extinta, uma mentira replicada como verdade por muito tempo e que, até hoje, dificulta a conquista de um território legítimo.
Os Xetá ocuparam, até metade do século XX, parte do noroeste paranaense. Viviam na região que se estende por todo o Rio Ivaí até a sua foz, no Rio Paraná, extensão que abrange hoje municípios como Serra dos Dourados, Douradina, Cruzeiro do Oeste, Ivaté e Umuarama. Para quem cresceu envolto a este ambiente, já colonizado e urbanisticamente estabelecido, essa história teve sua narrativa atravessada pela falsa correlação de que o processo comum era mesmo a extinção dos povos originários para a posterior ocupação da população branca. Todo o retrospecto de violência sempre foi contado – e recontado – a partir do ponto de vista mais cruel da evolução: a naturalização do genocídio pelo qual passaram.
Nasci e morei em Umuarama até os meus 16 anos. Hoje, com 32, ainda tenho forte relação com a cidade, sendo um destino corriqueiro. E mesmo envolto a tantos elementos que me lembrem cotidianamente que a cidade é uma terra indígena, demorei a questionar onde essa população está. A cidade é mal resolvida com a questão – e isso se percebe logo pelo nome. O significado de Umuarama é: “lugar ensolarado, alto, de bom clima, para encontro de amigos”. Só que esse termo, que deveria ser uma homenagem, é um neologismo criado por um homem branco. Inclusive, o primeiro registro de que se tem conhecimento do uso do nome foi em uma colônia de férias de um colégio particular no estado de São Paulo. O que era para ser uma honra sequer representa a população Xetá.
“Nasci e morei em Umuarama até os meus 16 anos. Hoje, com 32, ainda tenho forte relação com a cidade, sendo um destino corriqueiro. E mesmo envolto a tantos elementos que me lembrem cotidianamente que a cidade é uma terra indígena, demorei a questionar onde essa população está. A cidade é mal resolvida com a questão – e isso se percebe logo pelo nome”
Andar pelas ruas de Umuarama é lembrar constantemente sobre a presença dessa população, mas reafirmar que ficaram em um lugar que não os permite avanço. Além do próprio nome, já citado, a cidade dedicou uma série de monumentos aos Xetá como lembrança ao passado colonizado. Alguns são pontos turísticos como o Parque Municipal dos Xetá (o Bosque do Índio), o Bosque Uirapuru e o Lago Aratimbó. A prefeitura ainda adotou como mascote o Umuaraminha, personagem indígena infantil caricato que ganhou status de símbolo da cidade para as mais diversas campanhas.
O que se aprendia na escola não fazia refletir. Lembro dos Xetá serem retratados como um povo antigo, sem relevância para a formação atual da sociedade. Sabíamos da origem do nome, da língua tupi-guarani com que muitos espaços eram batizados, visitávamos os monumentos que os reverenciam, mas era sempre de uma distância cultural tão grande que parecia que nunca dividimos o mesmo local. Jamais se falou em massacre, extermínio ou, sequer, na necessidade de uma reparação histórica. Mas não é em vão. Uma fonte da secretaria de educação de Umuarama concordou que a questão provoca grande polêmica porque os indígenas ainda procuram pela defesa da terra, razão pela qual a grade curricular não entra no mérito da discussão. Na visão dela, esse não é um debate que a escola estimula muito porque, para além da controvérsia dos fatos, “as crianças não entendem exatamente o que aconteceu”, justifica. Ela ainda resume que todas as pesquisas sobre o estudo dos indígenas vêm de páginas da internet.
Há um esforço, entretanto, do Governo do Paraná em resgatar a cultura dos Xetá e de outros povos originários do estado, uma tentativa de contornar o etnocídio que sempre esteve em curso. A Secretaria de Educação e do Esporte tem escolas mistas, que combinam ensinamentos da grade comum com a identidade, a língua, as tradições e os costumes das comunidades indígenas. Esses espaços promovem a participação efetiva de professores, pedagogos, diretores, caciques e lideranças indígenas. Entretanto, das 39 instituições existentes, apenas uma é dedicada aos Xetá, e ainda assim divide espaço com outras etnias do estado: os Kaingang e os Guarani.
A presença física dos indígenas era socialmente invisível. Os poucos que eram vistos pelos moradores em áreas urbanas encontravam-se em situação de vulnerabilidade. Também não era incomum a presença deles em fazendas da região solicitando o direito à propriedade, situação que era rapidamente condenada e contornada pelos políticos locais.
Quem procura pelo passado da cidade nos órgãos oficiais, encontra explicações como essa, do site da prefeitura: “A história de Umuarama se inicia na Inglaterra, com a ansiedade de um grupo de homens por desbravar e alcançar grandes realizações e concretizada pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, através de longos anos de lutas em meio às mais adversas condições”. O tom épico e heroico descrito na seção “fundação” sequer cita a presença indianista local. Os Xetá só aparecem – e de forma simplista – quando contam a saga dos imigrantes na ocupação da região. Consta: “Estudos apontaram se tratar de um grupo remanescente de índios Xetá, com cerca de 300 indivíduos. Com a devastação da floresta, o grupo se dispersou, restando apenas alguns indivíduos. Estudos identificaram seus hábitos e costumes na alimentação, vestuário, vasilhames, instrumentos, armas, arte e língua, entre outros fatores, e preservam um pouco da memória dos índios Xetá”. Reduziram a memória de uma comunidade toda à ação natural do tempo.
Mas a história é diferente e carrega brutalidade nas ações. De acordo com o historiador Lúcio Tadeu Mota, o Governo do Paraná transformou o território Xetá em “terras desocupadas” para que as Companhias de Colonização levassem o progresso para aquela parte do estado. Essas empresas foram responsáveis por abrir estradas, segmentar loteamentos e revender os terrenos para futuros colonos interessados no plantio do café e em pastagem.
Empresas como a Byington, a COBRIMCO, a BRAVIACO e a Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná (CMNP), citada nos canais da prefeitura de Umuarama, tiveram grande atuação na região entre os anos de 1940 e 1960. Tratando-se de uma área territorialmente extensa (114 mil hectares), ceder esses espaços era ainda uma forma de eliminar a ocupação de grileiros e também evitar o uso equivocado do solo, o que poderia causar prejuízos às futuras glebas. Foi a partir desses acordos de concessão que diversas cidades foram fundadas. Eram municípios projetados para servir de apoio à concretização do plano de colonização da região, mesmo que, para isso, fosse preciso não reconhecer a presença da sociedade Xetá no local.
Para operacionalizar essa estratégia, difundiu-se a máxima de que não havia indígenas naquela região do estado, algo que foi amplamente reproduzido pelo governo nas décadas seguintes. “O Paraná já possuía reservas indígenas, por isso, a política da época não permitia que fossem destinadas novas terras para uma etnia até então oficialmente desconhecida” explica Lúcio Tadeu Mota. A ideia era perpetuar e ampliar a imagem de que ali existia um grande “vazio demográfico” ou “sertão desabitado”. Apesar da tentativa de construir uma narrativa de local despovoado, o Estado já possuía registro da existência desses indígenas desde o século 19. O SPI, porém, só oficializou a presença deles quando a brutalidade começou.
Quando não puderam mais negar a existência, os colonizadores passaram a dizer que eram povos do Mato Grosso ou do Paraguai e, portanto, estariam ali de passagem. Ao discurso, somava-se a política do Estado e da União de reduzir, em mais de quatro vezes, a área já estabelecida dos Postos Indígenas. O SPI ainda praticou outra violência quando resolveu olhar para os Xetá: os separaram em várias regiões do estado, uma tentativa de impedir a continuidade de seu legado. Não houve esforço para garantir espaços identitários que preservassem sua história ou mesmo que os protegessem do massacre. Os sobreviventes passaram a morar em terras pertencentes a outras etnias, como as Kaingang e os Guarani. No relato dos Xetá, o que houve foi um extravio de sua gente.
“O Paraná já possuía reservas indígenas, por isso, a política da época não permitia que fossem destinadas novas terras para uma etnia até então oficialmente desconhecida”
Lúcio Tadeu Mota, historiador
Toda essa ação dizimou de diversas formas uma população de cerca de 250 Xetá – alguns estudos acreditam que esse número pode ser ainda maior, com até 800 indivíduos. Dentre as práticas genocidas estava o assassinato com armas de fogo, a expulsão de suas terras e também a captura de diversos indígenas levados em caminhões para destinos até hoje desconhecidos. Também há documentos que relatam mortes por envenenamento, pelas doenças adquiridas pelo contato com o homem branco e, até mesmo, casos de suicídio. Outra prática comum era o sequestro de crianças Xetá; as causas iam da escravização para trabalhos domésticos à tentativa de torná-los menos “selvagens”, branqueando sua cultura.
Lúcio Tadeu Mota chama a atenção para o fato dos Xetá serem uma etnia que resistiu: “eles tentaram fugir o máximo que puderam, mas a estratégia da invisibilidade deixou de ser eficiente e precisaram partir para o confronto”. Ele conta que muitos Xetá foram avistados por funcionários das companhias portando arcos e flechas, o que chegou a intimidá-los, muitos recusando-se a continuar os trabalhos de demarcação. “É importante ressaltar essas ações porque os Xetá precisam ser reconhecidos como sujeitos históricos que defenderam seu território e lutaram até onde puderam. Ainda hoje eles brigam pelo reconhecimento da terra e também pela manutenção de sua cultura”, pontua o historiador.