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Sementes de um futuro antirracista

Pedagoga e pesquisadora, Cintia Cardoso revela como a educação brasileira ainda é um celeiro de formação de preconceitos em nossa sociedade

por Artur Tavares 15 ago 2021 23h04
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(Clube Lambada/Ilustração)

ocê se lembra de como aprendeu a história brasileira na escola? Volte no tempo por um minuto. Como construímos o Brasil em que vivemos hoje? As caravelas do “descobrimento” português aportaram na costa da Baía de Todos os Santos e, então, Pero Vaz de Caminha e sua trupe descobriram que não estavam sozinhos nessas terras novas. Os indígenas apareceram – provavelmente armados até os dentes –, mas a bondade e o iluminismo do povo europeu os convenceram a colaborar, tudo isso em troca de meia dúzia de espelhos e outros cacarecos do velho mundo. Um salto de poucos anos e, de repente, o que aconteceu? Os indígenas foram escravizados, e os povos africanos começaram a desembarcar por aqui – igualmente privados de suas liberdades, é claro.

Aprender sobre a história brasileira é, literalmente, apagar tudo o que houve antes nessa parte da América do Sul e também em todo o continente africano. A literatura, as artes, a ciência, a política, tudo é contado sob a ótica dos colonizadores. A nós, é renegado todo conhecimento ancestral das centenas de etnias que constituem a nação, e tudo isso em prol de um saber branco.

Em 2003, o Congresso Nacional iniciou um processo de reparação histórica ao aprovar a lei 10.639, que passou a exigir o ensino da história africana e afro-brasileira na base curricular nacional. Poucos anos depois, um segundo projeto de lei, de número 11.645, estendeu a exigência aos povos originários indígenas.

Estamos em 2021, com nossas crianças impedidas de estudarem presencialmente devido a pandemia do coronavírus, vivendo sob um governo que tenta nos empurrar ideias absurdas como Escola Sem Partido e o homeschooling, dois dispositivos que contribuirão para minar debates sobre diversidade na formação de novas gerações. Como se isso já não fosse ruim o suficiente, a própria aplicação das leis 10.639 e 11.645 parece facultativa nos nossos ambientes de ensino.

Em um trabalho profundo que visa entender como a branquitude e as questões coloniais se apresentam na formação de crianças no ensino público brasileiro, a pedagoga Cintia Cardoso pesquisou a própria escola onde trabalha, na cidade de Florianópolis, a fim de entender como novas identidades se formam hoje.

Seu trabalho de mestrado, defendido na Universidade Federal do Paraná (UFPR), é contundente. Mostra uma escola composta por 90% de alunos negros vindos de famílias de baixa renda, mas que ainda se apoia em signos e símbolos brancos. As relações entre o corpo docente e as crianças muitas vezes são baseadas em racismo, e há uma clara preferência aos poucos alunos brancos. Não são poucas as expressões de violência que Cardoso relata em sua tese.

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Nessa conversa, falamos sobre afirmação, qualidade do ensino, a relação entre pais, filhos e professores, conservadorismo latente e possibilidades para gerarmos um futuro melhor para o Brasil através da educação. Confira:

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(Rafael Rosa e Laís Brevilheri/Ilustração)

Gostaria de começar entendendo sua jornada pessoal, aquilo que te levou a estudar branquitude dentro das escolas públicas brasileiras. Você é professora infantil e pedagoga, certo? Como surgiu a ideia de olhar para dentro das instituições de ensino?
A minha experiência é minha própria matriz. São 20 anos como professora de educação básica, e então tive uma oportunidade de repensar toda essa prática a partir da oportunidade de cursar o mestrado e também olhando a partir da promulgação da Lei Federal 10639/03, e como ela vai ser traduzida no contexto da educação infantil. O conceito de escrevivência, que é trazido pela Conceição Evaristo, dá conta de descrever a minha experiência de criança negra, mulher negra e professora negra. Tive a oportunidade, desde que me aproximei do Núcleo de Estudos Brasileiros da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e também da UFPR, de repensar essa minha experiência aproximando das produções da universidade sobre as relações raciais na infância. No campo da infância, a criança negra geralmente é posta na centralidade para compreender como o racismo se manifesta desde a infância. Só que não dá conta. Tudo que foi produzido no campo das relações raciais na infância foi primordial para colocar o racismo como pauta do dia, para pensar em política de formação de professores, mas há uma lacuna. Minha aproximação aos estudos da branquitude é a partir do estado da arte de tudo que foi produzido no campo dos estudos raciais na infância, ampliando de maneira mais relacional a compreensão dessas interações a fim de pensar qual o lugar ocupa a professora branca e a criança branca em cada uma delas.

Com a extrema direita em pauta atualmente, tendemos a olhar para o Sul do Brasil como um lugar “mais” supremacista branco do que o resto do Brasil, embora todo o país registre casos agudos de racismo. Imagino que seu estudo tem um peso ainda maior por ter sido realizado em Santa Catarina.
Florianópolis, assim como outras cidades do Brasil, ainda se denomina como um pedacinho da Europa, invisibilizando a presença de indígenas e negros. Embora sejamos uma parcela pequena, de 15% da população, somos uma minoria efetiva. Existem movimentos negros e coletivos indígenas. Pensar nesse estado branco e problematizar a branquitude é se insurgir, e quem se insurge paga o preço. No entanto, temos que pensar até que momento é válido tensionar o sistema se não trouxer dados, evidências. A pesquisa é um pouco disso. O que é a teoria senão a materialidade do cotidiano do ser humano? Pensamos a teoria através das nossas vivências. E foi isso que fiz, olhar para o próprio espaço da educação infantil e pensar de que modo a branquitude na sociedade e no próprio sistema educacional impactam as crianças desde a infância, o quanto a hegemonia branca não é problematizada dentro dos espaços da educação.

Rodrigo não definiu sua cor de pele, mas não teve dificuldades em dizer que eu era preta. Nesta simples passagem, podemos indicar o fenômeno característico das relações raciais brasileiras, o privilégio que as pessoas brancas possuem de racializar os outros, mas não se pensar em termos raciais.
Rodrigo não definiu sua cor de pele, mas não teve dificuldades em dizer que eu era preta. Nesta simples passagem, podemos indicar o fenômeno característico das relações raciais brasileiras, o privilégio que as pessoas brancas possuem de racializar os outros, mas não se pensar em termos raciais. (Cintia Cardoso/Reprodução)

Sua pesquisa foi feita em uma escola com maioria de alunos negros, e ainda assim a branquitude está latente.
Mesmo fazendo essa pesquisa em uma comunidade com 90% da população negra, com culturas negras muito fortes, como escola de samba, blocos carnavalescos, presença forte de religiões de matrizes africanas – são mais de 20 terreiros nas proximidades –, percebo que o sistema hegemônico se sobrepõe. Sempre digo que avançamos muito, é inegável, as cotas raciais estão aí para provar, o investimento em literatura negra e indígena, artefatos dessas culturas para compor a materialidade do espaço educativo, mas não basta a boneca negra, o livro com a representatividade negra, se não tocarmos na problemática da hegemonia branca dentro dos espaços de educação. Esse espaço embranquecido decide o que coloca à disposição das crianças. Se você pensa no espaço das escolas, que conteúdos elas disponibilizam para as crianças, os alunos? São escolhas pautada numa única matriz. A invisibilidade da produção científica das populações negras e indígenas permanece. Quando se aborda, é pelo lado recreativo, lúdico e de modo superficial, como o samba, a feijoada. Isso faz parte, mas não é só isso. Há uma produção científica em todas as áreas do conhecimento.


“Não basta a boneca negra, o livro com a representatividade negra, se não tocarmos na problemática da hegemonia branca dentro dos espaços de educação”

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Duas bonecas negras e uma boneca branca dentro de uma caixa de papelão.

Imagino que você tenha tido sua formação escolar antes da implementação das leis 10.639 e 11.645, que versam sobre a inclusão da história dos povos originários no ensino brasileiro. Que diferenças você observa no currículo e na representatividade do tempo em que você foi aluna e agora que é pedagoga?
Precisamos considerar que temos um sistema de educação falho, que necessita de reformas urgentes. Um dos motivos para eu decidir ser professora foi voltar para aquele lugar que tanto me violentou. Trago algumas marcas negativas relacionadas ao racismo ao longo da trajetória de estudante. Temos muitas mudanças, mas temos muito para avançar, as leis ainda não são vistas como uma política nas escolas. No entanto, temos que pensar que não se trata de problematizar sujeitos, porque os problemas estão no sistema. Os sujeitos reproduzem o sistema.

Há uma distância entre lei promulgada e lei efetivada. O investimento na formação de professores voltada para a reeducação racial. Tudo isso está relacionado ao processo histórico reatualizado. Logo após a abolição, o Brasil não implementou nenhuma política que fizesse que repensássemos os modos como as diversas identidades se relacionariam de maneira horizontal. Temos um déficit nas formas de nos relacionarmos. E, considerando o período conservador que vivemos, na verdade observamos um retrocesso muito grande.

Tem avanços? Tem, isso não se pode negar, principalmente na inclusão de literaturas para além da matriz europeia, da narrativa de história única contada pelos ditos vencedores. Temos programas de formação de professores. Mas ainda é muito pouco, tendo em vista o quanto estamos atrasados no enfrentamento do racismo institucional. Precisamos dar passos muito largos, mas para isso temos que ir além de responsabilizar somente os espaços de educação. Temos um sistema muito complexo, o racismo enraizado na sociedade. Por isso a mudança no sistema de ensino é urgente. É preciso atentar para as formas práticas do processo em que o próprio sistema de ensino é o aparelho utilizado no reforço das desigualdades raciais. Há um conjunto de problemas a serem enfrentados.

É necessário construir uma formação para consciência crítica que modifique o sistema, incluindo pautas importantes no currículo como o voto, para se pensar em uma mudança efetiva.

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No livro Memórias da Plantação, a portuguesa Grada Kilomba faz uma provocação ao se lembrar de quando era criança e tinha que estudar a época das navegações e da expansão colonial, uma mulher negra olhando para o colonialismo sem que houvesse retratação histórica ou mudança de narrativa em favor do não-branco. Na sua opinião, ações afirmativas e leis como a 10.639 e a 11.645 se tornam insuficientes, já que ainda não mudamos os capítulos mais fundamentais dos saberes sobre a formação da sociedade brasileira?
Não acredito que sejam insuficientes, mas acho que a falta de mudança do sistema hegemônico branco impede que se avance. É como Angela Davis fala, o racismo vai se atualizando. É isso que percebemos quando as cotas raciais foram aprovadas, a reação dos empáticos, avessos a uma universidade plural. Numa explícita demonstração de defesa e manutenção dos privilégios.

O não cumprimento das leis 10639 e 11645 ilustra as maneiras como o racismo se reatualiza e as estratégias para impedir que uma educação para a pluralidade se efetive. Quando vemos xingamentos nas paredes das universidades, as agressões racistas, currículos que não disponibilizam para todos os estudantes conhecerem a própria história, tudo isso é parte desse projeto colonial ainda em curso.

A inclusão da história, cultura africana, afro-brasileira e indígena nos currículos não é só para a população negra. Nós não podemos contar a história do Brasil sem contar a história da África, e o racismo é tão bem sedimentado que mesmo os mais progressistas contribuem para reforçar esse sistema, quando ainda tem uma visão muito superficial do racismo. Racismo é uma estrutura de poder para além das relações interpessoais. Quando falamos de educação das relações étnico-raciais, isso não é apenas para um público, para as crianças negras. É para todas as crianças, estudantes. É direito da criança branca também saber da história que a constituiu.

Olivia demonstra uma percepção segura quanto à cor da sua pele, seu pertencimento racial, gostar de ser quem é, no entanto, essa percepção de si se constrói também pela negação do outro, o escuro. Nesse caso, a brancura é seu referencial. A aceitação dos escuros como o pai passa por critérios de merecimento.
Olivia demonstra uma percepção segura quanto à cor da sua pele, seu pertencimento racial, gostar de ser quem é, no entanto, essa percepção de si se constrói também pela negação do outro, o escuro. Nesse caso, a brancura é seu referencial. A aceitação dos escuros como o pai passa por critérios de merecimento. (Cintia Cardoso/Reprodução)

E aí voltamos para o ponto que você aborda, sobre o ensino ficar restrito ao campo lúdico, enquanto não toca em pontos que alterariam as estruturas socioeconômicas.
Exatamente. Nós temos um sistema de ensino extremamente colonial, inclusive a própria academia, que é do século 19 na forma como se estrutura. As disciplinas, os cursos e as grades curriculares pouco se modificaram para atenderem os sujeitos da diversidade e romper com a narrativa colonial. É urgente reconhecer que as instituições ao não se problematizarem reforçam e reproduzem o racismo. Escola é lugar da transformação, da utopia, que têm uma responsabilidade imensa na sociedade, romper com a tradição colonial para avançarmos. O Brasil tem um apego ao Brasil colônia.

Em sua tese de mestrado, você faz um recorte bastante interessante de olhar para as subjetividades que cercam o cotidiano nas escolas públicas brasileiras, como o tom de pele das bonecas, as representações de crianças em espaços comuns como os pátios dos colégios e nos banheiros, e a comunicação entre as professoras e as crianças. Além de a branquitude estar posta como norma no corpo docente, o que mais explica essas práticas de embranquecimento cotidiano nos adultos que trabalham no nosso ensino?
Trabalhei com um conceito de Paridade Racial, que hoje amplio para a Paridade Racial Branca, que entendo que ser a gênese da questão. A autora Maria Aparecida Bento, uma das referências nos estudos da branquitude, fala desse amor narcísico, de se ver projetado no outro e de se fechar nos pares. Essa é uma das expressões da branquitude, uma maneira de manter esse grupo hegemônico protegido daqueles que são vistos como malfeitores. É uma herança do Brasil escravocrata reatualizada. Porque não podemos continuar justificando o racismo de hoje pelo Brasil colônia. Somos outras pessoas, herdeiras dessa história, mas com ferramentas para construir uma história diferente. Acredito que esse amor a si mesmo, esse amor narcísico, é o que faz as pessoas não conseguirem se abrir para a diversidade. Esse inconsciente fechado na brancura impossibilita que as pessoas consigam se abrir para dialogar e se ver. Porque o racismo desumaniza, e não apenas o sujeito da violência, como também quem está violentando. Frantz Fanon fala sobre como quem está violentando também está desumanizado. Colocando o racismo como pauta e o branco na centralidade, é um avanço para todos. Porque o branco vai ter a oportunidade de se olhar, de ver quem ele é como sujeito dessa violência, e, mais importante ainda, de enfrentar os seus pares, que é algo que pouco se discute. O racismo está nos lugares mais íntimos, como nas piadas no seio familiar. Virou slogan “não basta não ser racista, tem que ser antirracista”. Mas, ser antirracista é se olhar no espelho. É ação prática, desconstrução. Não é algo fácil para aqueles que obtém privilégios nessa estrutura. Até que ponto as pessoas brancas estão dispostas a fazer esse exercício? O poder está concentrado com a branquitude. Então, eles têm plenas condições políticas de fazer ações antirracistas na prática.

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“Acredito que esse amor a si mesmo, esse amor narcísico, é o que faz as pessoas não conseguirem se abrir para a diversidade. Esse inconsciente fechado na brancura impossibilita que as pessoas consigam se abrir para dialogar e se ver. Porque o racismo desumaniza, e não apenas o sujeito da violência, como também quem está violentando”

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(Cintia Cardoso/Arquivo)

Você retrata cenas muito fortes, como a menina negra rejeitada na hora que as professoras penteiam os cabelos das crianças, a relação entre fenótipo e limpeza individual. Isso é muito impactante, e me parece que o branco blinda o próprio inconsciente para não perceber o que está fazendo. Enquanto a sociedade considere os professores como guardiões das crianças, é muito chocante presenciar essas violências sem que haja possibilidade de defesa da infância.
É muito chocante e mostra o quanto esse sistema vai se reforçando cotidianamente para os brancos desde a infância. É colocar as crianças em um aprisionamento de uma identidade branca, única, fechada aos pares. Quanto isso é perigoso? Precisamos problematizar que lugar a criança branca ocupa, mas também como ela se constitui enquanto sujeito branco. Elas apreendem um modo de ser silenciosamente pelas formas com que pessoas fora de seu grupo racial são tratadas, e assim a branquitude se perpetua, impondo um jeito de ser e estar no mundo como um sujeito branco. As imagens tem um significado, como ilustrei na pesquisa, as crianças brancas se veem representado nas paredes hegemonicamente o que permite a elas construir uma autoestima supervalorizada, é um elogio reforçado cotidianamente que lhes dão a certeza que dentre as demais crianças, são as escolhidas para serem representadas. É um conjunto de vantagens como ter sua história contada, o que reafirma a existência do seu grupo racial. Então, veja, é algo fechado aos pares, apenas a um único grupo racial. Isso se dá a partir do que a Jurema Werneck chamou de privilégio de aniquilamento. Você aniquila outro grupo racial para obter privilégios. Precisamos perceber como esse sistema captura as crianças brancas para dar continuidade à lógica de ser branco.

Como vimos anteriormente, o menino branco não se traduziu em termos raciais. Brincando, indicou uma noção meramente cromática, não diferente da reação de muitos adultos brancos. Entretanto, o segundo, Cristiano, não teve nenhuma dificuldade de classificá-lo em termos raciais. Porque Cristiano vem de uma família inter-racial, na qual os membros são definidos a partir da noção de cor/raça.<br />Cristiano, quando perguntado sob sua cor, não teve dúvidas: sou branco. Pois ao que tudo indica, a pessoa de referência para sua identidade é a mãe que ele classifica como branca. A mãe e ele são considerados os brancos da família.
Como vimos anteriormente, o menino branco não se traduziu em termos raciais. Brincando, indicou uma noção meramente cromática, não diferente da reação de muitos adultos brancos. Entretanto, o segundo, Cristiano, não teve nenhuma dificuldade de classificá-lo em termos raciais. Porque Cristiano vem de uma família inter-racial, na qual os membros são definidos a partir da noção de cor/raça.
Cristiano, quando perguntado sob sua cor, não teve dúvidas: sou branco. Pois ao que tudo indica, a pessoa de referência para sua identidade é a mãe que ele classifica como branca. A mãe e ele são considerados os brancos da família. (Cintia Cardoso/Reprodução)

Seu trabalho fala sobre uma sociologia infantil, de como as crianças têm autonomia do pensar desde seus primeiros anos. Ao mesmo tempo, a criança é muito frágil na absorção de exemplos. A criança consegue perceber e questionar essas atitudes do corpo docente, ou a falta de referencial prejudica essa compreensão?
Em 2004, uma pesquisa da autora Fabiana Oliveira com crianças no berçário mostra que crianças negras levam mais tempo para terem suas fraldas trocadas [higienizadas] do que crianças brancas. Existe um adultocentrismo que deslegitima a capacidade das crianças de apreensão do mundo. Essa criança vai percebendo quem são as merecedoras de atenção, quando todos os outros são trocados e ela não é trocada. Percebe quando todos os outros são elogiados e tocados, e ela não recebe afetos. É a partir da percepção, sim. Ao serem preteridas, elas vão compreendendo quem são os merecedores de afeto e de cuidado, e quem está fora desse grupo seleto.

Aí, chegamos em outra questão, a do auto ódio. Ao mesmo tempo em que a escola produz identidades supervalorizadas, ela produz identidades de auto ódio. Essa criança não se vê representada em lugar nenhum. Como ela vai se constituir positivamente? Como vai se reconhecer pertencente a um grupo de maneira positiva, se tudo relacionado a este grupo é apresentado de forma negativa. Ela vai perseguir aquilo que se apresenta como bom, belo, digno de afeto. E quem tem isso? As crianças brancas. Então, se ser gente é ser branco, é isso que as crianças negras vão perseguir.

As crianças ajudam a construir e entender a história, as Ciências Sociais pouco investem em pesquisas com crianças pequenas, esses estudos ainda ocupam um lugar às margens. O que dificulta que se problematize a primeiríssima infância, as crianças pequenas ainda são vistas por um olhar adulto que as desconsidera como sujeitos pensantes, que têm a todo momento apreensões sobre o mundo.

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(Rafael Rosa/Ilustração)

Em um contexto em que a educação no ambiente escolar é apenas uma parcela da formação das crianças, como fica a criança que recebe um tipo de aprendizado em casa, e então se deparada com ações afirmativas no ambiente escolar?
Pensando nas famílias negras e brancas, não é incomum que famílias negras não se reconheçam como negras. E temos que pensar o porquê disso. As pesquisas estão aí mostrando como é violento se constituir negro nesse país. Construir uma identidade positiva por meio das duas instituições escola e família não acontece com todos, essa formação positiva nas famílias negras se dá por espaços outros e não somente as instituições. Por outro lado, famílias brancas pouco refletem sobre algumas questões como o racismo, não se veem como parte dessa estrutura porque é algo que está dado, não precisam se preocupar se seus filhos brancos aprenderão sobre seu grupo racial, como abordei na pesquisa, há uma Pedagogia da Branquitude consolidada. As famílias brancas pouco discutem sobre racismo e quando o assunto é abordado por meio da escola, questionam o porquê.

Instituição de ensino e família são instituições distintas que se completam. Por isso a importância que tal temática seja abordada desde a educação infantil. As instituições de ensino são lugares privilegiados para o encontro / confronto das diferenças. Oportunidade para as crianças, adolescentes, jovens se constituírem enquanto sujeitos abertos para lidarem com as diferenças étnico-racial, orientação sexual, enfim para a diversidade de sujeitos presentes na sociedade.

Existe conflito entre as duas instituições? Sim, existem, e acredito que seja importante a existência deles, pois a escola pode se afirmar no seu papel de ensinar pautado na produção de conhecimentos, são responsabilidades compartilhadas. E, muitas vezes, quando estamos dialogando com aquela criança, também chegamos até a família.

Nesse contexto, como ficam as crianças brancas? Na sua pesquisa você mostra um garoto de religiosidade neopentecostal fiscalizando o comportamento de uma colega, afirmando que aquilo não é de Deus. Como se dá essa relação de pais e filhos brancos confrontados com essas outras narrativas?
É muito comum que a cultura afro-brasileira esteja ligada à religião. Existe um equívoco muito grande, e as famílias reproduzem isso. Qual é nosso papel? As instituições em seu caráter laico abordam essas questões sob o prisma da diversidade cultural. Chamar essas famílias para conversa e apresentar outra narrativa. Embora não vejamos na prática, o estado é laico. Temos que dialogar com essa família de modo que elas entendam que a instituição de educação não é uma extensão da casa delas. Ali temos um papel educativo. Situações das famílias questionarem as instituições quando as culturas africana e afro-brasileira são apresentadas, que faz apologia a determinada religião, que é do mal, que é isso ou aquilo, é uma das facetas do racismo. Nosso sistema educacional é tão falho que abolimos completamente a discussão sobre religião pelo prisma da diversidade cultural. Precisamos discutir religião dentro do espaço educacional. Não fazendo apologia, mas entendendo que é parte da nossa cultura, que as pessoas praticam religiões. As crianças são muito inventivas e trazem essas vivências para dentro das instituições, visto que é parte da própria constituição de si e dos espaços que estão inseridas.

Acredito que existe um ponto de conflito, mas está muito ligado ao racismo e aversão a qualquer coisa ligada às culturas africanas, afro-brasileiras, esses momentos devem ser tomados como uma oportunidade de problematizar tais questões com a comunidade escolar.

A partir da fala de meninos e meninas brancas e brancos percebo que a questão racial, está posta e o quanto é rico poder conversar sobre o tema. As crianças elaboram, debatem discordam, negociam. Emily ao se declarar amarela demonstra os limites entre fantasia e realidade vivenciados pelas crianças e que, acima de tudo, lidam com naturalidade com a questão racial.
A partir da fala de meninos e meninas brancas e brancos percebo que a questão racial, está posta e o quanto é rico poder conversar sobre o tema. As crianças elaboram, debatem discordam, negociam. Emily ao se declarar amarela demonstra os limites entre fantasia e realidade vivenciados pelas crianças e que, acima de tudo, lidam com naturalidade com a questão racial. (Cintia Cardoso/Reprodução)

No seu trabalho, você cita também situações práticas postas às crianças, por exemplo a leitura de Cecília Meirelles e outros autores brancos, ou então um trabalho que falava sobre mulheres para além de suas belezas em que a única negra era Cleópatra, e que mesmo assim a rainha egípcia era representada através de uma estátua branca. Como alcançar maior representatividade no cotidiano de ensino e não exaltar os não-brancos apenas em datas comemorativas como o Dia do Índio e o Dia da Consciência Negra?
Temos que pensar em todos os centros do conhecimento, e fazer com que eles se cruzem. A Europa é parte do que nos constitui, assim como os indígenas e africanos. Nós temos uma produção vasta em todas as áreas do conhecimento para isso, seja na arte, na tecnologia etc. O que precisamos é romper com o eurocentrismo. Isso não significa que você vai descartar toda a produção europeia, mas equiparar tudo que é disponibilizado para as crianças. A literatura contribui muito para trazer representatividade na educação infantil, para que as crianças possam se ver em outros lugares. Tudo aquilo que foi produzido no campo da ciência por pessoas negras precisa estar na visibilidade das crianças para que elas construam outra visão sobre o sujeito negro e a população negra, e isso não apenas para as crianças negras, como as brancas também. Porque, senão, elas vão crescendo acreditando que o possuidor da inteligência é o sujeito branco, e não conseguem ver nos negros pessoas inteligentes e capazes.

A Chimamanda Ngozi Adichie fala dos riscos da história única. Você pode começar contando a história a partir da flecha do indígena ou pelo descobrimento, e essa história será completamente diferente. Então, precisamos romper com essa história única que contaram, e isso passa por um processo de formação de professores, porque eles foram constituídos na educação eurocêntrica. Como se forma isso? Aproximando as instituições de educação infantil com os mestres afro-brasileiros, com os mestres indígenas, com os quilombolas, todos aqueles capazes de dar formação para professores dentro do campo da experiência e da vivência deles. Mas, ainda esbarramos em um sistema extremamente hierárquico que diz que conhecimento e sabedoria são coisas diferentes, e que só tem conhecimento quem possui diploma. Precisamos romper barreiras, mas temos um legado imenso para isso.

Veja o exemplo dos quilombos, o que eles significam, e de que maneira aprendemos isso nas escolas? Que o negro foi escravizado, foi submisso. Por que não aprendemos sobre a Revolução Haitiana? Porque o negro está em um lugar de emancipação. Então, não é contado. Precisamos romper com essa história única.


“O que precisamos é romper com o eurocentrismo. Isso não significa que você vai descartar toda a produção europeia, mas equiparar tudo que é disponibilizado para as crianças. A literatura contribui muito para trazer representatividade na educação infantil, para que as crianças podem se ver em outros lugares. Tudo aquilo que foi produzido no campo da ciência por pessoas negras precisa estar na visibilidade das crianças para que elas construam outra visão sobre o sujeito negro e a população negra, e isso não apenas para as crianças negras, como as brancas também”

Sempre que o tema é educação, falamos na formação de uma nova geração de cidadãos. Mas, em um país que ainda sofre tanto com questões raciais, falta também um acompanhamento psicopedagógico para os pais, que são os adultos que podem contribuir na luta antirracista hoje?
Não sei se é um acompanhamento psíquico, e sim uma falta de investimento em políticas públicas. E, pensar nas questões raciais e do machismo. O sistema capitalista é movido por isso. Essa ruptura vem dos sujeitos civis e dos movimentos sociais, que empreendem enfrentamentos ao sistema. Porque, quando falamos de racismo, estamos observando um sistema muito amplo, que envolve capital, economia, todas as áreas da sociedade.

A curva de aprendizado das crianças é maior que a dos adultos, porque são nos primeiros anos que elas absorvem as noções mais básicas do pensar. Nesse sentido, é mais fácil quebrar nas crianças brancas as noções de “eu sou mais bonita”, “eu sou mais desejada”, “eu sou mais inteligente”, “eu estou sendo preparada para uma vida bem-sucedida” do que fazer um adulto branco entender seu racismo?
Na educação infantil, falamos de experiências educativo pedagógicas. Diferenciamos a criança do aluno. Acredito que mesmo aquelas crianças que tiveram a possibilidade de uma educação positiva para diversidade podem ser cooptadas pelo sistema. Então, não tem como garantir que um adulto não possa se desconstruir. Eu acredito no ser humano, e acredito que o ser humano é capaz de se rever. Obviamente, ninguém nasce transformado do dia para a noite. Não são coisas que se conflitam, ou uma coisa, ou outra. Acho que podemos ofertar experiências positivas para as crianças, e podemos pensar no adulto que pode se reconstruir.

Thiago leva alguns minutos para responder e a seu modo define que é branco porque é sua vida.
Thiago leva alguns minutos para responder e a seu modo define que é branco porque é sua vida. (Cintia Cardoso/Reprodução)

A branquitude e a negação do racismo acontecem principalmente no campo inconsciente das ideias. Como foi apresentar seu trabalho na escola em que você realizou a pesquisa? Quais foram as reações do corpo docente? Houve mudanças significativas no comportamento e no plano pedagógico?
Eu tive a devolutiva da pesquisa para a comunidade educativa a partir do próprio território, de apresentá-lo, porque nem sempre o familiar é visto. O olhar está tão acostumado, desbotado, que não se vê o que está ao redor. Apresentei um mini vídeo com as culturas negras que estão presentes na comunidade, mostrei o muro que separa o espaço físico da instituição também pode ser tomado de maneira metafórica para infelizmente impedir que esses conhecimentos estejam dentro do espaço da educação.

É difícil apresentar uma pesquisa no campo crítico em que os sujeitos têm que se olhar. Os dados e as evidências estavam ali. E mais, todas as pessoas que participaram da pesquisa autorizaram e contribuíram para que a pesquisa existisse. Mesmo contrastando tudo que estava posto, é o que o cotidiano apresentou.

O corpo docente do Núcleo de Educação Infantil está problematizando o próprio espaço, as práticas a partir de formações em serviço. Um ano depois, quando já estava afastada para o doutorado, voltei para fazer duas formações sobre branquitude. E, acredito que os movimentos vêm acontecendo para promover mudanças no espaço. A pesquisa contribuiu, sim, para dar visibilidade àquilo que está tão naturalizado, e muitas vezes não é percebido.

A pesquisa chegou a alcançar a Secretaria de Educação da cidade e, portanto, outras escolas públicas?
Sim. Eu trabalho na Prefeitura Municipal de Florianópolis, então dou muitas formações para as instituições e na própria prefeitura. Nós temos esse esforço de fazer esse diálogo, de fornecer possibilidades para as pessoas se repensarem. Mas isso é só uma parte. Além disso, não depende da formação, e sim do sujeito. Como esse sujeito olha para a sociedade? Como ele se vê na luta antirracista? Sabemos que não é um movimento fácil. A Edith Piza diz que, quando o branco vê sua branquitude, é similar a uma batida na porta de vidro. Basta saber que caminho as pessoas vão decidir seguir depois que batem na porta de vidro. É outra dimensão, que não temos como dar conta.

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(Rafael Rosa e Laís Brevilheri/Ilustração)

Seu trabalho é focado em instituições de ensino públicas, onde, estatisticamente, a presença de crianças não-brancas costuma ser maior. A perpetuação da branquitude como norma é ainda mais aguda nas instituições particulares de ensino? E, portanto, a quebra do pensamento colonial ainda é um horizonte muito distante na educação das classes média e alta brasileiras?
Com certeza. Acredito que seja a própria materialização do que defini como paridade racial branca. Elas são fechadas aos pares, sem qualquer abertura. E também há um não cumprimento da legislação educacional. E, estou falando da lei maior, porque as leis 10.639 e 11.645, que obrigam o ensino das culturas africana, afro-brasileira e indígena, são dois artigos da LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Então, não se descumprem apenas as duas leis, mas também a LDB. Então, o que entendo sobre paridade racial é a materialização nos espaços de ensino privados. E há uma legislação que corrobora, porque não há fiscalização. Futuramente, precisamos pensar em um diálogo com o próprio Ministério Público, uma relação não-punitivista, em que essas instituições também se responsabilizem pela educação.

Maurício, menino que porta uma guia de santo – sinal de proximidade com religiões de matrizes africanas, apresenta outra maneira de se autodeclarar: branco-escuro. Essa categoria trazida por uma criança é de uma compreensão formidável. Joyce Lopes (2016) abordou a questão “O/a “branco/a fora do lugar”, um/a “branco/a particular” em um dos capítulos, a pesquisa foi realizada com adultos o que me levou a beber dessa fonte para refletir sobre Maurício. Embora eu não tenha aprofundado e merecesse uma análise minuciosa para a questão do menino se autodeclarar branco-escuro, a princípio minhas considerações partem da proximidade e convívio com pessoas negras e com a religião de matriz africana.<br />Minha hipótese é que Maurício não nega seu pertencimento de menino branco, mas faz uma demarcação de uma possível identidade antirracista. Ao pensar sobre a questão de ser branco, Maurício se circunscreve em uma identificação com a cultura negra que é parte, também, de sua identidade. Declarar-se branco-negro pode ser positivo e está condicionado à própria constituição da identidade de Maurício e as construções sobre si e o outro que fará ao longo da vida.
Maurício, menino que porta uma guia de santo – sinal de proximidade com religiões de matrizes africanas, apresenta outra maneira de se autodeclarar: branco-escuro. Essa categoria trazida por uma criança é de uma compreensão formidável. Joyce Lopes (2016) abordou a questão “O/a “branco/a fora do lugar”, um/a “branco/a particular” em um dos capítulos, a pesquisa foi realizada com adultos o que me levou a beber dessa fonte para refletir sobre Maurício. Embora eu não tenha aprofundado e merecesse uma análise minuciosa para a questão do menino se autodeclarar branco-escuro, a princípio minhas considerações partem da proximidade e convívio com pessoas negras e com a religião de matriz africana.
Minha hipótese é que Maurício não nega seu pertencimento de menino branco, mas faz uma demarcação de uma possível identidade antirracista. Ao pensar sobre a questão de ser branco, Maurício se circunscreve em uma identificação com a cultura negra que é parte, também, de sua identidade. Declarar-se branco-negro pode ser positivo e está condicionado à própria constituição da identidade de Maurício e as construções sobre si e o outro que fará ao longo da vida. (Cintia Cardoso/Reprodução)

Quando se debate o homeschooling, o problema fica ainda maior, porque não há controle pedagógico nenhum. Você joga fora a LDB e permite que a educação seja dada em casa, no templo religioso, ou onde quer que seja. Da maneira que o governo quer passar o homeschooling, haveria um retrocesso nas políticas de diversidade?
Sim. Tem algo que as pessoas não problematizam, que é desresponsabilizar totalmente o estado. Educação é um direito básico. Quando as pessoas saem em defesa do homeschooling, estão tirando totalmente a responsabilidade do estado com a educação do país. Se tenciona ainda mais as questões raciais, o machismo, a LGBTfobia, porque as crianças não têm a oportunidade de interagir com a diversidade. Escola não é só lugar de conteúdo, é muito mais do que isso. É lugar de relações sociais, de problematização, de pensamento crítico. Além disso, as crianças não se constituem num vazio social, torno de si mesmas, mas em relação com o outro diferente de si. Educação é um direito humano minimamente respeitável. É um descaminho que faremos, que vai nos custar caro no presente/futuro.

Você acredita que a lei passa?
[Risos] Nós estamos em um momento de esperança, tudo é muito incerto. As forças conservadoras estão aí, e não podemos duvidar do que elas são capazes. Há uma resistência da própria educação, mas as cenas dos próximos capítulos ainda são incertas. No entanto, a diversidade não tem volta e a luta por direitos é constante..


“Educação é um direito básico. Quando as pessoas caem em defesa do homeschooling, estão tirando totalmente a responsabilidade do estado com a educação do país. Se tenciona ainda mais as questões raciais, o machismo, a LGBTfobia, porque as crianças não têm a oportunidade de interagir com a diversidade. Escola não é só lugar de conteúdo, é muito mais do que isso. É lugar de relações sociais, de problematização, de pensamento crítico”

É um projeto de poder muito destrutivo, passado para os cidadãos através de mentiras como a Escola Sem Partido, o debate sobre ideologia de gênero, quando na verdade quem está no poder tenta forçar o seu modo de pensar para a sociedade. Então, a culpa recai sempre sobre a educação.
É uma disputa de narrativas. Eles se apropriam de elementos, inclusive a própria mídia, para disseminar essas ideias. Escola Sem Partido, ideologia de gênero, são coisas sem fundamento que estão presentes também nas universidades, porque boa parte dos ditos letrados contribuíram para esse cenário que vivemos hoje. Mas, quando isso é colocado para a população, ela não entende que é uma política contra si própria. Por isso a importância do campo da educação de estar sempre posicionando o seu lugar de importância na vida do sujeito, para a sociedade. O espaço da educação infantil, também é um espaço de política emancipatória, de educação transgressora. É um espaço que possibilita o direito das crianças, mas também o direito das mulheres de terem emancipação, de irem para o mercado de trabalho.

Dentro dos espaços da brancura, já ouvi inúmeras vezes o discurso de que cotas raciais apenas agravam o problema do racismo. Na sua opinião, deveríamos ter cotas raciais tanto para alunos na rede privada de ensino desde o ingresso das crianças nas escolas, e também para professores e professoras nas redes pública e privada?
Primeiro que parece que o racismo começou com as cotas raciais, né? [Risos] O racismo não começou com as cotas raciais! Existe uma lei de reserva de cotas para o serviço público e privado. A prefeitura de Florianópolis implementou essa política. E, se formos pensar nessas políticas, são medidas emergenciais. Há muita crítica sobre melhorar o sistema de ensino, que ele seja igualitário para todos, e então eu sempre digo: já são mais de 500 anos de atraso. Não tem o que esperar. É a medida que for possível, e depois vamos reformando. Então, acredito que sim. No entanto, já existem escolas particulares que têm cotas. Mas, o sistema é tão discriminatório, tão racista, que ele trata de expurgar esses alunos. É difícil você se manter em um espaço desses se não sabe o que vai comer amanhã enquanto dialoga com amigos que vieram de viagens internacionais. Não existe dentro do sistema maneiras para que as crianças se mantenham nesses espaços. Existem inúmeros relatos de crianças que adoecem nesses espaços, que os pais tiram porque não aguentam o racismo silencioso. Esses espaços não fazem nada para que sejam de fato inclusivos.

Me impressiona quando ouço que não deve haver cotas raciais, e sim sociais. Mas, no Brasil é praticamente a mesma coisa.
As pessoas têm que entender que, no Brasil, o debate social é racial. As pessoas isolam o debate racial como se fosse algo à parte. A luta do movimento negro por cotas não foi só pensando nos sujeitos negros, indígenas, porque junto delas vieram as cotas sociais, que também beneficiam alunos brancos e pobres de escola pública. Quando se olha para isso, não é de maneira honesta. O projeto de sociedade que as populações negra e indígena têm é inclusivo. Ninguém quer revanche. Em nosso projeto cabem todos, não fica ninguém para trás. No entanto, o racismo se apropria dos discursos e inverte a causa. Diz que as cotas reforçam o racismo. O ideal é que tivéssemos ensino de qualidade para todos, mas não temos. Além das pessoas negras serem a maioria dos pobres desse país, ainda enfrentam o racismo. A vida dos pobres brancos também é difícil, no entanto, eles não passam pela questão racial. Em uma entrevista de emprego, um branco e um negro, nós sabemos quem vai ficar com a vaga.


O projeto de sociedade que as populações negra e indígena têm é inclusivo. Ninguém quer revanche. Em nosso projeto cabem todos, não fica ninguém para trás. No entanto, o racismo se apropria dos discursos e inverte a causa. Diz que as cotas reforçam o racismo.

O próprio racista que produz esses discursos se apoia no sistema da branquitude para reproduzir essas ideologias. As cotas raciais nada têm a ver com capacidade. As pesquisas já comprovaram isso. Não há diferença entre rendimento de cotistas e não cotistas. É uma reparação histórica, e sobre representação. É isso que as pessoas brancas não querem entender. Existiu uma história que deixou um legado de privilégios para uns, e nada para outros. Precisamos reparar essa história, senão vamos reproduzir até quando? Até quando esse Brasil colonial? A mesma narrativa, os mesmos excluídos. Precisamos evoluir enquanto sociedade.

Inara parte de outro referencial ao considerar sua cor “A cor de pele” considerada a cor universal, a branca. Tal conceito se constrói nas práticas sociais e está fortemente arraigado nas práticas cotidianas escolares e, principalmente, nas experiências das crianças na educação infantil. A expressão “cor de pele” é muito presente nas atividades de pinturas da educação infantil e representa sempre o branco que são os que tem a cor de pele sustentada como a ideal e a cor referencial. A brancura vai sendo reforçada e Inara é uma criança, no seu imaginário tem a cor de pele, ou seja, sua cor branca é a cor universal.
Inara parte de outro referencial ao considerar sua cor “A cor de pele” considerada a cor universal, a branca. Tal conceito se constrói nas práticas sociais e está fortemente arraigado nas práticas cotidianas escolares e, principalmente, nas experiências das crianças na educação infantil. A expressão “cor de pele” é muito presente nas atividades de pinturas da educação infantil e representa sempre o branco que são os que tem a cor de pele sustentada como a ideal e a cor referencial. A brancura vai sendo reforçada e Inara é uma criança, no seu imaginário tem a cor de pele, ou seja, sua cor branca é a cor universal. (Cintia Cardoso/Reprodução)

Seu trabalho de doutorado, ainda em andamento, expandiria a questão da branquitude na educação infantil olhando para crianças que vão de 0 a 2 anos de idade. Pode explicar um pouco sobre o tema? Ainda segue assim, já que não há um contato presencial com as crianças?
Seria uma pesquisa etnográfica, mas acredito que não será mais assim devido à pandemia. Então, vou mais a fundo em pensar a própria produção do conhecimento. O quanto o conhecimento de matriz europeia serviu para invisibilizar as diversas infâncias, sobretudo a infância das crianças negras. O outro, na produção do conhecimento europeu, é sempre o negro, o racializado. O grupo hegemônico nunca é colocado como aqueles privilegiados. Vou me aprofundar na produção do conhecimento, que orienta as práticas pedagógicas, a pedagogia, uma ciência praxiológica. Mas, acredito que a questão prática vai ficar de fora, por questão de tempo. A minha ideia é ir desde o berçário, nas manifestações da primeiríssima infância, e passar pelas famílias também. Precisamos trazer para nossas pesquisas as famílias, porque elas nos ajudam a pensar e entender as contradições. Então, fazer essa comparação entre a educação que há na família, e o quanto o espaço de educação consegue abrir brechas para que as crianças se constituam para o respeito a diversidade desde o berçário.

Nesse sentido, como a branquitude se expressa em um momento onde a fala infantil ainda está se desenvolvendo?
Em uma sociedade que valoriza a fala, nós desvalorizamos outras formas de interação. De fato, a fala não é a principal forma de comunicação dos bebês que se manifestarem a partir das múltiplas linguagens. Meus trabalhos são influenciados por Stuart Hall, que diz que os significados não estão apenas nas nossas cabeças. Eles produzem ideias. Ou seja, um bebê é constantemente exposto a estímulos. Ele vê sua família, vê os brancos na televisão. Quem está todos os dias nas figuras fixadas nas paredes? Pessoas brancas. Isso é parte da sua constituição enquanto sujeito. Então, tem sim uma intervenção no modo que as crianças vão se construindo desde a tenra idade. Há uma educação pelas imagens. O que precisamos entender é que o fato de a fala não ser a principal forma de interação dos bebês não significa que essa apreensão do mundo não se dê por meio dos outros sentidos permeados pela imersão cultural.

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