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O retorno à história

Os indígenas Xetá, no Paraná, lutam para conquistar a demarcação de sua terra e, para isso, precisam provar que não estão extintos

por William Saab Atualizado em 31 ago 2021, 15h31 - Publicado em 30 ago 2021 00h31
A

última etnia indígena a ter contato com o homem branco no sul do país quer recontar a sua história. Os Xetá, população do tronco linguístico tupi-guarani, foram alvo de extrema violência nos anos 1950. Sua população foi drasticamente reduzida pela ação das frentes de colonização que modernizaram a região para a agropecuária. O órgão indigenista oficial da época, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), distribuiu os sobreviventes em diferentes regiões do Paraná, enfraquecendo sua luta, sua cultura, e diminuindo ano a ano a esperança de reocuparem dignamente suas terras. A existência deles ainda foi ameaçada por um agravante: além do processo genocida e do descaso do Estado, a etnia foi dada como extinta, uma mentira replicada como verdade por muito tempo e que, até hoje, dificulta a conquista de um território legítimo.

Os Xetá ocuparam, até metade do século XX, parte do noroeste paranaense. Viviam na região que se estende por todo o Rio Ivaí até a sua foz, no Rio Paraná, extensão que abrange hoje municípios como Serra dos Dourados, Douradina, Cruzeiro do Oeste, Ivaté e Umuarama. Para quem cresceu envolto a este ambiente, já colonizado e urbanisticamente estabelecido, essa história teve sua narrativa atravessada pela falsa correlação de que o processo comum era mesmo a extinção dos povos originários para a posterior ocupação da população branca. Todo o retrospecto de violência sempre foi contado – e recontado – a partir do ponto de vista mais cruel da evolução: a naturalização do genocídio pelo qual passaram.

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Nasci e morei em Umuarama até os meus 16 anos. Hoje, com 32, ainda tenho forte relação com a cidade, sendo um destino corriqueiro. E mesmo envolto a tantos elementos que me lembrem cotidianamente que a cidade é uma terra indígena, demorei a questionar onde essa população está. A cidade é mal resolvida com a questão – e isso se percebe logo pelo nome. O significado de Umuarama é: “lugar ensolarado, alto, de bom clima, para encontro de amigos”. Só que esse termo, que deveria ser uma homenagem, é um neologismo criado por um homem branco. Inclusive, o primeiro registro de que se tem conhecimento do uso do nome foi em uma colônia de férias de um colégio particular no estado de São Paulo. O que era para ser uma honra sequer representa a população Xetá.


“Nasci e morei em Umuarama até os meus 16 anos. Hoje, com 32, ainda tenho forte relação com a cidade, sendo um destino corriqueiro. E mesmo envolto a tantos elementos que me lembrem cotidianamente que a cidade é uma terra indígena, demorei a questionar onde essa população está. A cidade é mal resolvida com a questão – e isso se percebe logo pelo nome”

Andar pelas ruas de Umuarama é lembrar constantemente sobre a presença dessa população, mas reafirmar que ficaram em um lugar que não os permite avanço. Além do próprio nome, já citado, a cidade dedicou uma série de monumentos aos Xetá como lembrança ao passado colonizado. Alguns são pontos turísticos como o Parque Municipal dos Xetá (o Bosque do Índio), o Bosque Uirapuru e o Lago Aratimbó. A prefeitura ainda adotou como mascote o Umuaraminha, personagem indígena infantil caricato que ganhou status de símbolo da cidade para as mais diversas campanhas.

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O que se aprendia na escola não fazia refletir. Lembro dos Xetá serem retratados como um povo antigo, sem relevância para a formação atual da sociedade. Sabíamos da origem do nome, da língua tupi-guarani com que muitos espaços eram batizados, visitávamos os monumentos que os reverenciam, mas era sempre de uma distância cultural tão grande que parecia que nunca dividimos o mesmo local. Jamais se falou em massacre, extermínio ou, sequer, na necessidade de uma reparação histórica. Mas não é em vão. Uma fonte da secretaria de educação de Umuarama concordou que a questão provoca grande polêmica porque os indígenas ainda procuram pela defesa da terra, razão pela qual a grade curricular não entra no mérito da discussão. Na visão dela, esse não é um debate que a escola estimula muito porque, para além da controvérsia dos fatos, “as crianças não entendem exatamente o que aconteceu”, justifica. Ela ainda resume que todas as pesquisas sobre o estudo dos indígenas vêm de páginas da internet.

Há um esforço, entretanto, do Governo do Paraná em resgatar a cultura dos Xetá e de outros povos originários do estado, uma tentativa de contornar o etnocídio que sempre esteve em curso. A Secretaria de Educação e do Esporte tem escolas mistas, que combinam ensinamentos da grade comum com a identidade, a língua, as tradições e os costumes das comunidades indígenas. Esses espaços promovem a participação efetiva de professores, pedagogos, diretores, caciques e lideranças indígenas. Entretanto, das 39 instituições existentes, apenas uma é dedicada aos Xetá, e ainda assim divide espaço com outras etnias do estado: os Kaingang e os Guarani.

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A presença física dos indígenas era socialmente invisível. Os poucos que eram vistos pelos moradores em áreas urbanas encontravam-se em situação de vulnerabilidade. Também não era incomum a presença deles em fazendas da região solicitando o direito à propriedade, situação que era rapidamente condenada e contornada pelos políticos locais.

Quem procura pelo passado da cidade nos órgãos oficiais, encontra explicações como essa, do site da prefeitura: “A história de Umuarama se inicia na Inglaterra, com a ansiedade de um grupo de homens por desbravar e alcançar grandes realizações e concretizada pela Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, através de longos anos de lutas em meio às mais adversas condições”. O tom épico e heroico descrito na seção “fundação” sequer cita a presença indianista local. Os Xetá só aparecem – e de forma simplista – quando contam a saga dos imigrantes na ocupação da região. Consta: “Estudos apontaram se tratar de um grupo remanescente de índios Xetá, com cerca de 300 indivíduos. Com a devastação da floresta, o grupo se dispersou, restando apenas alguns indivíduos. Estudos identificaram seus hábitos e costumes na alimentação, vestuário, vasilhames, instrumentos, armas, arte e língua, entre outros fatores, e preservam um pouco da memória dos índios Xetá”. Reduziram a memória de uma comunidade toda à ação natural do tempo.

Mas a história é diferente e carrega brutalidade nas ações. De acordo com o historiador Lúcio Tadeu Mota, o Governo do Paraná transformou o território Xetá em “terras desocupadas” para que as Companhias de Colonização levassem o progresso para aquela parte do estado. Essas empresas foram responsáveis por abrir estradas, segmentar loteamentos e revender os terrenos para futuros colonos interessados no plantio do café e em pastagem.

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Família de Xetá com a equipe da 2º expedição científicas e de contato, novembro de 1955
Família de Xetá com a equipe da 2º expedição científicas e de contato, novembro de 1955 (Governo do Estado do Paraná, Secretaria da Comunicação Social e da Cultura e Museu Paranaense/Arquivo)

Empresas como a Byington, a COBRIMCO, a BRAVIACO e a Companhia Melhoramentos do Norte do Paraná (CMNP), citada nos canais da prefeitura de Umuarama, tiveram grande atuação na região entre os anos de 1940 e 1960. Tratando-se de uma área territorialmente extensa (114 mil hectares), ceder esses espaços era ainda uma forma de eliminar a ocupação de grileiros e também evitar o uso equivocado do solo, o que poderia causar prejuízos às futuras glebas. Foi a partir desses acordos de concessão que diversas cidades foram fundadas. Eram municípios projetados para servir de apoio à concretização do plano de colonização da região, mesmo que, para isso, fosse preciso não reconhecer a presença da sociedade Xetá no local.

Para operacionalizar essa estratégia, difundiu-se a máxima de que não havia indígenas naquela região do estado, algo que foi amplamente reproduzido pelo governo nas décadas seguintes. “O Paraná já possuía reservas indígenas, por isso, a política da época não permitia que fossem destinadas novas terras para uma etnia até então oficialmente desconhecida” explica Lúcio Tadeu Mota. A ideia era perpetuar e ampliar a imagem de que ali existia um grande “vazio demográfico” ou “sertão desabitado”. Apesar da tentativa de construir uma narrativa de local despovoado, o Estado já possuía registro da existência desses indígenas desde o século 19. O SPI, porém, só oficializou a presença deles quando a brutalidade começou.

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Quando não puderam mais negar a existência, os colonizadores passaram a dizer que eram povos do Mato Grosso ou do Paraguai e, portanto, estariam ali de passagem. Ao discurso, somava-se a política do Estado e da União de reduzir, em mais de quatro vezes, a área já estabelecida dos Postos Indígenas. O SPI ainda praticou outra violência quando resolveu olhar para os Xetá: os separaram em várias regiões do estado, uma tentativa de impedir a continuidade de seu legado. Não houve esforço para garantir espaços identitários que preservassem sua história ou mesmo que os protegessem do massacre. Os sobreviventes passaram a morar em terras pertencentes a outras etnias, como as Kaingang e os Guarani. No relato dos Xetá, o que houve foi um extravio de sua gente.

Grupo familiar em acampamento próximo a Fazenda Santa Rosa. 2º expedição científica e de contato, novembro de 1955
Grupo familiar em acampamento próximo a Fazenda Santa Rosa. 2º expedição científica e de contato, novembro de 1955 (Governo do Estado do Paraná, Secretaria da Comunicação Social e da Cultura e Museu Paranaense/Arquivo)

“O Paraná já possuía reservas indígenas, por isso, a política da época não permitia que fossem destinadas novas terras para uma etnia até então oficialmente desconhecida”

Lúcio Tadeu Mota, historiador

Toda essa ação dizimou de diversas formas uma população de cerca de 250 Xetá – alguns estudos acreditam que esse número pode ser ainda maior, com até 800 indivíduos. Dentre as práticas genocidas estava o assassinato com armas de fogo, a expulsão de suas terras e também a captura de diversos indígenas levados em caminhões para destinos até hoje desconhecidos. Também há documentos que relatam mortes por envenenamento, pelas doenças adquiridas pelo contato com o homem branco e, até mesmo, casos de suicídio. Outra prática comum era o sequestro de crianças Xetá; as causas iam da escravização para trabalhos domésticos à tentativa de torná-los menos “selvagens”, branqueando sua cultura.

Lúcio Tadeu Mota chama a atenção para o fato dos Xetá serem uma etnia que resistiu: “eles tentaram fugir o máximo que puderam, mas a estratégia da invisibilidade deixou de ser eficiente e precisaram partir para o confronto”. Ele conta que muitos Xetá foram avistados por funcionários das companhias portando arcos e flechas, o que chegou a intimidá-los, muitos recusando-se a continuar os trabalhos de demarcação. “É importante ressaltar essas ações porque os Xetá precisam ser reconhecidos como sujeitos históricos que defenderam seu território e lutaram até onde puderam. Ainda hoje eles brigam pelo reconhecimento da terra e também pela manutenção de sua cultura”, pontua o historiador.

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Os Xetá estão vivos

A história do Brasil não deixa dúvidas que a colonização europeia operou com a expulsão e a invasão das terras. A antropóloga do Museu Paranaense (MUPA), instituição que preserva parte da história dos Xetá, Josieli Spenassatto, explica que a visão dos brancos foi xenófoba, pois sempre viram os nativos como estrangeiros: “Atrela-se a esse pensamento o fervor desenvolvimentista capitalista, que domina a terra e a explora comercialmente. É uma ideia naturalizada, que busca um ‘melhoramento necessário’, lucrando o máximo que puder”, reforça. Para os colonizadores, os indígenas não sabem dar o real valor à terra porque não exploram seus minérios e sua madeira.

Ainda de acordo com Josieli, é preciso ver os Xetá como um povo vivo, mas sem negar que passaram por um processo de genocídio. Ela contextualiza: “Foram atos que geraram mortandade em massa. Poucos resistiram, mas, hoje, sabe-se que foram vários os sobreviventes que se reagruparam com novas famílias de diferentes laços sanguíneos. Eles lembram do tempo do mato, possuem consciência étnica, por isso estão vivos e cientes de seus direitos enquanto etnia”, defende a antropóloga do MUPA.

Kaiuá, 1º menino capturado em 1952 por agrimensores que faziam medição das terras na Serra dos Dourados
Kaiuá, 1º menino capturado em 1952 por agrimensores que faziam medição das terras na Serra dos Dourados (Governo do Estado do Paraná, Secretaria da Comunicação Social e da Cultura e Museu Paranaense/Arquivo)

Essa realidade fica evidente quando se analisa como a imprensa retratou a luta dos Xetá ao longo das décadas. O antropólogo Gian Carlo Leite pesquisou esse recorte e concluiu que os jornais da época atuaram como parte do projeto de colonização. “Em muitas publicações, os indígenas sequer aparecem como sujeitos de sua história. Isso ajudou a concretizar a maior mentira que já inventaram sobre eles: a de que são um povo exterminado. Essa imagem, inclusive, foi propagada para além do universo jornalístico. A luta deles é para subverter essa realidade, muito porque houve um intervalo grande nas décadas de 70 e 80 sem pesquisas a respeito da etnia. ‘Como estudar o que já está extinto?’ era uma questão que permeou a academia”, explica.

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Leite conta que os jornais relataram a violência sofrida pelos indígenas, mas sempre com reforço de que foram completamente dizimados. “Houve denúncia sobre o genocídio, mas falta uma parte importante para a história ficar completa: o ponto de vista dos Xetá. Havia pessoas vivas enquanto as novas gerações estavam condenadas”, descreve. A partir dos anos 90, essa realidade começou a mudar com novas pesquisas e reportagens sobre a sociedade Xetá.

“Foram atos que geraram mortandade em massa. Poucos resistiram, mas, hoje, sabe-se que foram vários os sobreviventes que se reagruparam com novas famílias de diferentes laços sanguíneos. Eles lembram do tempo do mato, possuem consciência étnica, por isso estão vivos e cientes de seus direitos enquanto etnia”

Josieli Spenassatto, antropóloga
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O desafio da reconquista

A Constituição Federal assegura no artigo 231 a criação de Terras Indígenas: territórios legalizados destinados aos nativos para desenvolvimento de sua cultura e uso das riquezas de determinada região. Em 1998, a batalha pelo reconhecimento da terra ganhou o apoio da antropóloga Carmen Lúcia da Silva, que compôs o grupo técnico da FUNAI responsável por identificar e demarcar um território onde o povo Xetá pudesse se reconstruir física e culturalmente. Mas esse era só o começo de uma batalha que, em 23 anos, pouco evoluiu.

Em 2010, devido à demora na publicação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), consequência da paralisação do processo da FUNAI, o Ministério Público Federal entrou com uma Ação Civil Pública para retomada dos trabalhos. O RCID teve sua publicação realizada somente em 2014. Desde então, é alvo de contestações e campanhas contrárias por parte de políticos e produtores rurais que usam sua influência para contrariar o direito da sociedade Xetá.

Os irmãos Xetá Ã e Kaiuá em registro da 2º expedição científica e de contato, novembro de 1955
Os irmãos Xetá Ã e Kaiuá em registro da 2º expedição científica e de contato, novembro de 1955 (Governo do Estado do Paraná, Secretaria da Comunicação Social e da Cultura e Museu Paranaense/Arquivo)

Para deslegitimar a conquista deste território Xetá, alguns atores têm atuado fortemente para o insucesso desse processo. O sociólogo Rafael Pacheco Marinho conta que produtores rurais da região alegam que, com a homologação, milhares de famílias seriam desalojadas, implicando em desemprego para inúmeros trabalhadores. Atualmente, essas terras pertencem a bancos, usinas, juízes, grandes e pequenos fazendeiros e, de acordo com Marinho, o que se verifica nesses locais são plantações de cana-de-açúcar, fazendas de gado, áreas de reflorestamento de pínus e lavouras, em sua maioria, mecanizadas.

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Outro argumento usado pelos que são contrários aos direitos dos indígenas é de que os Xetá são “impuros”, o que os descaracterizariam. Marinho explica que essa aculturação junto a outras etnias foi a forma que encontraram de se manterem vivos. “Essa acusação de que foram exterminados é parte de uma dinâmica perversa, porque eles não têm hoje espaço para se reorganizarem enquanto Xetá. É um acordo entre entes públicos e privados que viola os direitos políticos”, pontua Marinho. Ele defende que, enquanto não se reconhecer uma terra como forma de reparação justa pelo extermínio, o Estado se manterá como parte da desintegração social desses indígenas que dura desde os anos 50. Atualmente, o reconhecimento e homologação da terra dos Xetá encontra-se no TRF4 de Porto Alegre, instituição, de acordo com o sociólogo, conhecida por suas posições anti-indígenas.

“Essa acusação de que foram exterminados é parte de uma dinâmica perversa, porque eles não têm hoje espaço para se reorganizarem enquanto Xetá. É um acordo entre entes públicos e privados que viola os direitos políticos”

Rafael Pacheco Marinho, sociólogo

Marinho participou da criação do relatório da Comissão da Verdade que contou a história dos Xetá. Esse relato documental permite a eles direitos de transição, que é quando o estado reconhece o passado brutal enfrentado por alguma sociedade e garante, com isso, medidas políticas e sociais para reparação de seu legado. Com a cópia desse documento, ele foi até à Terra Indígena de São Jerônimo da Serra, no norte do Paraná, para uma pesquisa de aprofundamento, que originaria em sua dissertação de mestrado.

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Rafael defende que a homologação da terra dos Xetá precisa acontecer, uma vez que o Estado já reconheceu diversas vezes que teve participação na remoção forçada e na morte dos integrantes da etnia. “O Brasil admite uma série de desaparecidos na sua história e agora percebe-se que esse processo acontecia também com povos indígenas. Ficou estabelecido que houve instituições para retirar indígenas daquela terra para ser distribuída pelo estado para atores específico”, conta. Para ele, isso torna a história dos Xetá muito singular. Nos arquivos da FUNAI, a Terra Indígena Herarekã Xetá, em Ivaté, noroeste do Paraná, encontra-se delimitada, que é o termo legal correto para esta fase do processo demarcatório, o que não significa que pode ser ocupada pelos indígenas.

Indígena Xetá(Mã) e equipe das expedições científicas. 2º expedição científica e de contato, novembro de 1955
Indígena Xetá(Mã) e equipe das expedições científicas. 2º expedição científica e de contato, novembro de 1955 (Governo do Estado do Paraná, Secretaria da Comunicação Social e da Cultura e Museu Paranaense/Arquivo)

O sociólogo explica que o prefixo “re” acompanha as palavras que mais fazem parte do vocabulário dos Xetá quando o assunto é a homologação. Retornar à terra, reunir os parentes – inclusive os desaparecidos -, reinstituir e reativar seu modo de vida. De acordo com Marinho, as lideranças Xetá do estado todo integram equipes multidisciplinares coordenadas por antropólogos desde os anos 80, razão pela qual vêm se articulando politicamente para o esperado retorno. A missão para serem reconhecidos passa por algumas atividades que são: conhecer, narrar e retificar a história que a sociedade conhece de forma equivocada; se envolver na luta jurídica, tendo mais voz dentro das instâncias legais e, por fim, manter vivos os elos perdidos nas últimas sete décadas de uma sociedade que não se configura mais como do tempo do mato.

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Além deste desafio, novos processos de instâncias superiores também podem tornar mais distante o desejo dos Xetá. A tese do marco temporal, ação que corre no Supremo Tribunal Federal (STF) e na Câmara dos Deputados (PL 490/2007), defende que populações indígenas só podem reivindicar terras que ocuparam até outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal. Com este argumento, os Xetá não teriam direito a qualquer hectare, visto que foram expulsos de seu território original nos anos 50. Ministros e deputados ainda não votaram pela aprovação da tese.

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Os Xetá hoje

A etnia Xetá se divide principalmente em duas reservas indígenas reconhecidas pelo Estado: São Jerônimo da Serra, no norte do Paraná, e também a aldeia urbana Kakané Porã, em Curitiba. Nessas terras, dividem o espaço com outras etnias, não possuindo terra própria para reprodução física e cultural. A FUNAI sequer possui registro oficial do número exato de brasileiros que formam a população Xetá.

Albert Pietro Paraná Costa é uma jovem liderança Xetá em Kakané Porã, a primeira aldeia urbana do sul do país. Com 25 anos, foi eleito vice-cacique do espaço, que é liderado por um indígena Kaingang. Ele é neto de Tuca e Belarmina, dois personagens notáveis de seu povo, ambos já falecidos. Ele entende que a luta de seus avós precisa continuar. “Meu avô sempre esteve no movimento e repassou esses valores para os meus tios e outros descendentes”, recorda o vice-cacique.

Os irmãos Claudemir e Dival, filhos de Tikuein, em exposição sobre os Xetá no MUPA
Os irmãos Claudemir e Dival, filhos de Tikuein, em exposição sobre os Xetá no MUPA (Governo do Estado do Paraná, Secretaria da Comunicação Social e da Cultura e Museu Paranaense/Arquivo)

A Kakané Porã é um território de 42 mil m² localizado no bairro Campo de Santana, extremo sul da capital paranaense. Apesar de ser um espaço de comunhão entre as três etnias (Xetá, Kaingang e Guarani), diferente de São Jerônimo, não existe nenhum documento que comprove que a terra pertence legalmente aos indígenas. Esse foi um dos motivos que despertou o interesse de Albert pela política. Em um encontro com os primos de São Jerônimo realizado em 2019, percebeu que o povo de todo o estado precisaria trabalhar para avançar nas conquistas. E sua liderança já pode ser percebida no mesmo ano.

Albert e outros líderes de etnias diversas se encontraram em Brasília, em 2019, e acamparam em frente ao Ministério da Saúde. Composto em sua maioria por jovens, passaram 23 dias pressionando o órgão federal para que verbas da saúde destinadas à população indígena não fossem cortadas. “Já não é suficiente e ainda queriam nos tirar mais. Conseguimos sair de lá com um documento assinado que assegurasse nossos direitos”, recorda. Além da política, o levante com indígenas do Rio de Janeiro e Ceará, por exemplo, foi uma forma de comunhão: nas noites, celebravam sua cultura com rodas de agradecimento.

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Sobre a questão da terra demarcada aos Xetá, ele reconhece a necessidade dessa conquista e também compreende as questões que dividem os Xetá sobre a real localização. Os mais jovens, que cresceram em um ambiente urbano, não cogitam retornar, embora achem justa essa reparação por parte do estado. Ele, inclusive, manifesta interesse em conhecer o local de origem de seus antepassados. Entretanto, mantém receio dessa visita. “Gostaria de ir com uma autorização legal da prefeitura ou do Ministério Público. Temos medo de sofrer algum tipo de violência pela população local”, alerta.

Adriano da Silva também é outra liderança jovem que procura levar adiante a luta de gerações anteriores. Morador da Terra Indígena São Jerônimo, é neto de Tikuein, um dos pioneiros na luta dos Xetá, então conhece de perto as dificuldades que sua etnia enfrentou ao longo das décadas. Graduado em história pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), ele quer usar o conhecimento adquirido para ajudar na retomada da terra de seus descendentes que saíram da mata têm direito.

A Terra Indígena São Jerônimo da Serra é uma propriedade demarcada e regularizada desde 1991. Originalmente essa propriedade tinha 33 mil hectares, mas sofreu diversas reduções, a maior delas no chamado Acordo Lupion, de 1949, que reduziu a área para menos de 15% do original, restando apenas 4.840 hectares aos indígenas. A demarcação atual reduziu ainda mais o território, que hoje está em 1.339 hectares, ou seja, menos de 5% do território original.

Os irmãos Claudemir e Dival, filhos de Tikuein, em exposição sobre os Xetá no MUPA
Os irmãos Claudemir e Dival, filhos de Tikuein, em exposição sobre os Xetá no MUPA (Governo do Estado do Paraná, Secretaria da Comunicação Social e da Cultura e Museu Paranaense/Arquivo)

“O que fizeram conosco foi uma maldade”, indigna-se Adriano. “O SPI agiu de forma a dizer para o Estado que não havia mais Xetá, por isso, separou nossa gente em todo o Paraná para que não nos agrupássemos e nem tivéssemos contato com nossas famílias”, recorda. De acordo com ele, a família de Tuka, cujos descendentes estão hoje em Kanaré Porã, foi deixada na reserva de Mangueirinha, no sul do estado, Rondon, outro dos primeiros Xetá, em Marrecas, na região central, e a família de Adriano, em Pinhalzinho, também no centro sul. As crianças sequestradas que sobreviveram constituíram famílias com outras etnias ou com não-indígenas.

Quando a pandemia do novo Coronavírus permitir, as lideranças de São Jerônimo querem conversar com as de Curitiba para articular estratégias sobre a futura terra da aldeia. “Vamos sentar com os cabeças para decidir o rumo a ser tomado”, adianta.

“O SPI agiu de forma a dizer para o Estado que não havia mais Xetá, por isso, separou nossa gente em todo o Paraná para que não nos agrupássemos e nem tivéssemos contato com nossas famílias”

Adriano da Silva, liderança Xetá
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A ditadura nunca acabou

“Como um povo documentado não tem terra?”. O questionamento é da professora de antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Edilene Coffaci de Lima. Pesquisadora da história dos Xetá, ela enxerga como paradoxal a decisão do sistema judiciário de não reconhecer o direito à propriedade aos indígenas, uma vez que chegam perto de mil os registros oficiais sobre a presença deles nas terras do noroeste do Paraná. São arquivos que datam das primeiras expedições realizadas ainda na década de 50 pelos pesquisadores da UFPR, José Loureiro Fernandes e Vladimir Kozák

Edilene escreveu o texto da Comissão Estadual da Verdade que narra a história da etnia. Acompanha os fatos compreendidos entre o segundo governo Vargas até os dias de hoje. Nesse período, o descaso foi percebido em todos os governos.

Em 1961, o presidente Jânio Quadros chegou a demarcar um pedaço de terra que seria destinado aos Xetá, mas a região foi alagada na época da construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, já no período da ditadura militar. De acordo com a professora, o tratamento dos militares foi crucial para consumar a ideia de extinção dos Xetá, uma vez que nenhuma iniciativa em favor dos indígenas foi feita no período.

Os anos seguintes também não apresentaram mudanças. O governo de Dilma Rousseff (PT) foi o que menos demarcou terras indígenas desde a redemocratização do país. Com o governo Bolsonaro (sem partido), a situação é ainda pior. No primeiro dia de mandato, ele propôs alterar a função de demarcar terras indígenas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, historicamente contrário às causas indígenas. Câmara e Senado rejeitaram a proposta. O presidente também já deixou claro que, no que depender dele, “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”, como repetiu em diversas ocasiões.

“Entende-se democracia como um governo contrário a ditaduras, mas o que os indígenas têm nos dito é que a democracia é mais que isso. É o reconhecimento da existência e da cessação da violência; se isso não acontece, a nossa definição fica em cheque, pois mantêm-se as mesmas práticas de usurpação de vida”, conclui Edilene.

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A porta-voz da ONG Survivor, que atua junto aos povos indígenas no direito à terra, Priscilla Schwarzenholz, acredita que a retórica anti-indígena do atual governo traz graves consequências. “Um exemplo disso é o drástico aumento das invasões às terras indígenas em todo o Brasil desde que ele tomou posse. Os invasores ilegais – madeireiros, garimpeiros, grileiros e outros – se sentem encorajados por esse discurso e acreditam que possam invadir e explorar impunemente”, pontua Priscilla.

“Entende-se democracia como um governo contrário a ditaduras, mas o que os indígenas têm nos dito é que a democracia é mais que isso. É o reconhecimento da existência e da cessação da violência; se isso não acontece, a nossa definição fica em cheque, pois mantêm-se as mesmas práticas de usurpação de vida”

Edilene Coffaci de Lima, antropóloga

Ela acredita que o ensino básico brasileiro precisa passar por um processo de descolonização e ser contado a partir de uma perspectiva e vozes indígenas. “Não reconhecer o processo de genocídio ainda em curso contra os povos indígenas do país inviabiliza-se a luta pelo direito fundamental à terra”, acredita a porta-voz.

Para Dival da Silva Xetá, filho de Tukein e atual líder em São Jerônimo, retomar à terra no noroeste paranaense é mais do que o direito à propriedade, é uma possibilidade de resgatar a cultura e o idioma. “No passado, pensava-se que não existíamos, mas estamos aqui. Somos mais de 300 pessoas; 31 famílias somente em São Jerônimo, sem contar em outras reservas. Queremos reunir todo mundo. Tenho essa esperança”, pontua. Para ele, que carrega no nome a história de sua gente, o ideal é que a sociedade tomasse mais conhecimento sobre o legado Xetá: “O povo não acabou. Estamos vivos!”.

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