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Renan Quinalha está em busca da memória LGBTI+
O autor e advogado faz um mergulho na história do movimento LGBTI+ em sua nova obra e reflete sobre a luta contínua pela cidadania dessa comunidade
Desde a adolescência, Renan Quinalha esteve conectado com a militância. A primeira vez que participou de uma parada LGBTQIA+ foi em 2000. Ainda estava no Ensino Médio e foi para Avenida Paulista fazer campanha contra a ALCA (Área de Livre-Comércio das Américas) e a guerra no Iraque promovida pelo então presidente estadunidense George W. Bush. Anos mais tarde voltaria, mas dessa vez como um integrante da comunidade e sério pesquisador sobre a história do movimento LGBTQIA+ no Brasil e no mundo.
Um assunto em particular mexia com a sensibilidade do advogado e professor de direito: a memória e os restos não mexidos da ditadura militar brasileira. O envolvimento era tanto que Renan se envolveu nos trabalhos da Comissão da Verdade, instaurada no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2012. Um dos seus interesses era rastrear as marcas da violência de Estado e o autoritarismo na história e política brasileira.
Com o tempo, os campos pessoal e acadêmico foram se aproximando a partir de outro tema: a diversidade sexual. Ao longo da caminhada, Renan vivia outro processo enquanto se descobria um homem gay. Em vez de apenas viver e explorar um mundo de liberdades afetivas e sexuais, ele se pôs a fazer uma das tarefas a qual mais tem se dedicado: estudar.
Não demorou muito até ele tirar do armário uma nova matéria para explorar, uma que reconstituísse a história do movimento LGBTQIA+ no mundo. Fruto dessa empreitada, ele publicou no mês de agosto a obra Movimento LGBTI+: uma breve história do século XIX aos nossos dias (Grupo Autêntica, 2022). Entender as lutas de gerações anteriores era a maneira própria de descobrir novas facetas do preconceito e violência que se arrastam até a atualidade, mas também um modo de se conectar consigo mesmo.
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“Na medida em que lia questões teóricas sobre sexualidade, percebi que a política era central na existência de pessoas LGBT+, sempre foi. E a política já era muito central na minha vida, mas em outra perspectiva: não como uma pessoa gay que eu ainda não me entendia, mas como militante que estava engajado em várias causas, querendo a transformações no país, pensando e estudando sobre isso. Pelo fato de ser militante, eu quis entender o que aconteceu do ponto de vista do ativismo [na história LGBTI+].”
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O advogado cruzou continentes durante a missão “arqueológica”. Passou pela Alemanha, Estados Unidos, e na América do Sul, foi para Argentina, em busca de locais determinantes para a reconstituição dessa memória. Mas havia um grande desafio posto: olhar a história LGBTQIA+ significava encarar uma história partida em estilhaços, composta por “ausências, lacunas e silenciamentos”. Isso porque diante da violência imposta a essas pessoas, ser invisível aos olhos da sociedade era uma maneira de sobreviver.
“Na medida em que lia questões teóricas sobre sexualidade, percebi que a política era central na existência de pessoas LGBT+, sempre foi. Pelo fato de ser militante, eu quis entender o que aconteceu do ponto de vista do ativismo [na história LGBTI+]”
Dos diversos pontos de partida possíveis, ele decidiu analisar a história do “ativismo organizado” e coletivo, “priorizando a dimensão político-organizativa” da comunidade LGBTQIA+ e não as experiências individuais, ou os encontros clandestinos, que se desenrolavam em casas ou locais secretos. Buscou, por fim, identificar os marcos fundamentais que permitiram a politização do movimento, quanto o início da obtenção de direitos desse grupo, num diálogo frontal entre passado e presente. “Eu queria que esse livro ajudasse num processo de educação política para pessoas LGBTI+ a compreender o momento que a gente está vivendo, e não só uma história como aquele objeto do passado.”
A obra demonstra que a aquisição de reconhecimento da existência de pessoas LGBTQIA+ é um processo recente. Nos EUA, por exemplo, até 1969, todos os estados tinham leis que criminalizavam pessoas que tinham relações com outras do mesmo sexo. Ainda em 2003, alguns estados dispunham de legislações discriminatórias. Do outro lado do mundo, mais uma mostra: na última semana, veio o anúncio da descriminalização do sexo entre homens em Cingapura.
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“Eu queria que esse livro ajudasse num processo de educação política para pessoas LGBTI+ a compreender o momento que a gente está vivendo, e não só uma história como aquele objeto do passado”
No Brasil, direitos básicos estão, lentamente, sendo alcançados, especialmente em batalhas no Judiciário. Foi em 2011 que o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu a união homoafetiva. Em 2015, a mesma corte deu parecer favorável à adoção por casais homoafetivos. A doação de sangue por homens que fazem sexo com outros homens foi permitida apenas em 2020. Entre outras conquistas em datas recentes. O estigma e o preconceito, entretanto, persistem como doenças da atualidade.
Renan compreendeu que ao abordar a história do movimento, não faria sentido falar em ondas, mas, sim, ciclos de acontecimentos, já que eles parecem ocorrer sem um compromisso cronológico.
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“Nos ciclos, não há sucessão. Não é como uma onda, é algo que começa em um ponto e se expande, para que uma outra, então, possa surgir. Os ciclos podem se cruzar. Eu dou o exemplo do HIV/Aids, que se desloca também [com o tempo]. Não dá para falar que o HIV/Aids é da segunda onda do movimento LGBT no Brasil, nos anos 1980 e 90. Continua sendo um tema atual. A parada LGBT do ano passado em São Paulo foi sobre isso. Atualmente, nós estamos discutindo a Varíola dos Macacos, então o aprendizado sobre estigmatização desta população ainda está no centro do debate. Não foi superado no passado.”
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“Falar de HIV/Aids continua sendo um tema atual na comunidade LGBT. Atualmente, estamos discutindo a Varíola dos Macacos, então o aprendizado sobre estigmatização desta população ainda está no centro do debate, não foi superado”
Protoativismo em Berlim e Nova York
Na Alemanha, até meados do século XX, as relações sexuais entre homens eram passíveis de prisão. Entre as mulheres, o autor afirma que não havia dispositivos legais que criminalizassem essas relações, visto que a sexualidade feminina sequer era reconhecida fora do casamento e de seu aspecto de subserviência ao marido. Para gays, lésbicas e travestis, as formas de resistência brotavam em forma de “subcultura underground”.
Duas figuras, no entanto, foram precursores para construção de um debate que defendia a homossexualidade como algo inerente à natureza humana. O jurista Karl Heinrich Ulrichs publicou doze ensaios para tratar da discussão. No seu ponto de vista, a homossexualidade era como um “terceiro sexo”, algo natural e, que dessa forma, deveria estar livre de perseguição. Contudo, foi perseguido, afastado do serviço público e morreu no ostracismo.
Outro personagem importante, contemporâneo a Ulrichs, foi o médico Magnus Hirschfeld, que publicou a tese Safo e Sócrates ou como explicar o amor de homens e mulheres por pessoas do seu mesmo sexo?, onde defende que o comportamento humano, os desejos, navegam nas formas masculinas e femininas e fogem da regra da binaridade, embora esse seja um formato às sociedades.
Sob influência das ideias do médico, nasceu a Liga Mundial pela Reforma Sexual, em 1928, que reivindicava “iguais privilégios e obrigações entre homens e mulheres no que diz respeito a suas vidas sexuais, mas também política e economicamente”. Os esforços, entretanto, foram derrubados com a ascensão do nazismo.
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“O melhor jeito de lidar com o preconceito parecia ser o embate, a denúncia e a não conformidade. Desse modo, houve um deslocamento no estilo de ativismo, com o orgulho funcionando como vetor ideológico principal de um modo eroticamente subversivo de ser contra uma ordem social e sexual conservadora”
Já nos EUA, um evento ficou conhecido como o desencadeador de lutas que ocorreram pelo mundo e é a origem do dia internacional do orgulho LGBTI+. Nesse dia, em 1969, o conhecido confronto entre a polícia e pessoas LGBTQIA+, no bar Stonewall, em Nova York, marcou o momento de um grupo que chegou em seu limite, após anos de violência, discriminação, prisões, ameaças e subornos exigidos pelos agentes da polícia.
Segundo o autor, o episódio inaugurou não apenas uma séria de passeatas, mas também um novo paradigma sobre novas formas de ser LGBQIA+ dentro de uma sociedade heteronormativa.
“Depois dessa revolta histórica, o melhor jeito de lidar com o preconceito parecia ser o embate, a denúncia e a não conformidade. Desse modo, houve um deslocamento no estilo de ativismo, com o orgulho funcionando como vetor ideológico principal de um modo eroticamente subversivo de ser contra uma ordem social e sexual conservadora.”
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O bolsonarismo e o retrocesso
Mais um importante capítulo da obra olha para os fenômenos atuais da realidade brasileira, particularmente aqueles que advém do pleito de 2018, com a escolha de Jair Bolsonaro para presidência. Fato que instituiu um tempo de medo e de retrocessos, diante da bandeira de um conservadorismo moral latente.
Para Renan, um dos fatores mais danosos desse momento foi a impossibilidade da construção de diálogos com este governo para “fazer avançar a cidadania da população LGBTI+”. Há, entretanto, a esperança de dias melhores que devem ser alcançados através da ocupação de espaços de poder por pessoas LGBTQIA+ que estejam comprometidas com a pauta dos direitos humanos.
“Acho que esse governo serviu para o movimento ter uma visão mais crítica sobre a democracia e os limites dela também, justamente para mostrar que não há possibilidade de ter cidadania LGBTI+ em contextos autoritários”
“No governo Bolsonaro, houve um processo de paralisia, de desmobilização e de muita tragédia. Ao mesmo tempo que o movimento LGBTI+ foi se mostrando capaz de se organizar, não só a sua sobrevivência, mas de ocupar espaços, por exemplo, no Supremo Tribunal Federal, e conseguir que direitos fossem reconhecidos e fazer debates públicos na sociedade. Tem muitos avanços que foram colocados. Acho que esse governo serviu para o movimento ter uma visão mais crítica sobre a democracia e os limites dela também, justamente para mostrar que não há possibilidade de ter cidadania LGBTI+ em contextos autoritários.”
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