Festival Psica, Ilha do Combu, Mercado Ver-o-peso e mais impressões de quase quatro dias na capital do Pará
por Alexandre Makhlouf
23 dez 2022
12h54
“Você não tá entendendo. Não existe um festival igual ao Psica” foram as primeiras palavras que ouvi sairem da boca de Carol Figueiredo, publicitária, criadora de conteúdo e uma das minhas companhias das 90 horas que passei em Belém do Pará. Era um final de tarde de quinta-feira, o calor úmido-nível-sauna embaçava as lentes dos meus óculos recém-saídos da recepção gelada do hotel e, mesmo depois de quase quatro horas de vôo para chegar na cidade, a animação era grande.
Isso porque, no dia seguinte, começaria a 10ª edição do Psica, o maior festival independente de música periférica da Amazônia. Esse ano, a estrutura estava maior do que nunca: quatro palcos e mais de 40 apresentações de artistas que celebram as sonoridades afroamazônicas passariam pelo Espaço Náutico Marine Club, no bairro do Guamá, coração da maior periferia de Belém.
Antes de dar início aos trabalhos musicais, no entanto, era hora de conhecer a gastronomia. Jantamos e almoçamos, no dia seguinte, no mesmo restaurante. O destino foi o Ver-O-Açaí (nome que remete ao Mercado Ver-o-peso, uma das maiores atrações de Belém), restaurante de comida típica paraense que fica no Bairro do Umarizal, onde, de acordo com nosso guia, cobra-se o metro quadrado mais caro da capital.
De fato, come-se muito bem no Ver-O-Açaí. As tábuas de degustação, que trazem dourada, filhote e pirarucu empanados acompanhados de arroz de tucupi, feijão de Santarém, farinha de mandioca e açaí – o açaí local, não a versão sorvete sudestina – alimentam com tranquilidade de 4 a 5 pessoas. E são deliciosas.
O ambiente é recheado (até demais) com decorações típicas presas no teto, quadros que se acumulam nas paredes e muita cor. No andar de cima, algumas salas com menos mesas são opções mais silenciosas para quem procura privacidade ou para grupos maiores – nosso caso, já que estávamos em um grupo de 8 jornalistas e criadores de conteúdo. Barriga cheia e energia renovada, hora de se preparar para o primeiro dia completo de programação.
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Dia 1: tradição, Liniker e asas de fogo
No primeiro dia de Psica, a abertura do festival não poderia ter sido diferente: a organização preparou uma série de homenagens à cultura local, com manifestações como a Festa do Mastro e a Marujada, que desfilaram pela frente dos palcos e abençoaram as festanças que ali rolariam.
O line-up do primeiro dia já prometia muito. Duas estrelas locais – o Baile do Mestre Curijó e a banda Layse e os Sinceros – comandaram os palcos Rio Voador e Guera, respectivamente, fazendo o público que se aglomerava dançar os ritmos do norte. A headliner do dia era Liniker, primeira mulher trans brasileira a ganhar um Grammy Latino, e o que fez o melhor show dela que este editor já assistiu. Sorridente, tranquila e com a potência vocal de sempre, ela reforçou o quanto era especial estar em Belém, como a energia das pessoas ali era diferente (e é mesmo) e comandou as mais de 10 mil pessoas que se espremiam para vê-la de perto.
Vale lembrar que o primeiro dia de Psica foi gratuito, o que para muitos pode ser sinônimo de muvuca, filas e problemas com a experiência do festival. Nenhuma dessas preocupações se concretizou: tudo funcionava muito bem, da feira criativa – onde marcas locais e barraquinhas que serviam de pizza e kebab a tacacá e maniçoba – aos bares, banheiros e outros serviços.
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Outro adendo, aqui, é o tamanho do absurdo de um festival que movimenta uma das maiores capitais do norte e tem dez anos de tradição não ter um patrocinador sequer. Sim, o Psica acontece graças aos criadores, Gerson e Jeft Dias, e apoio da prefeitura e do governo do Estado. Enquanto assistimos a ativações de marca sobre salvar a Amazônia e a importância da diversidade em festivais do sudeste, nem um centavo desse mesmo mercado chega onde deveria chegar. Irônico, não?
Para fechar a sexta-feira, o SuperPop subiu a um palco só dele, onde todas as noites, para encerrar a festa, entraria uma festa de aparelhagem diferente. No sábado, seria a vez do Príncipe Negro e, no domingo, do fenômeno Surreal Crocodilo. Difícil escolher a favorita, ainda que a primeira atração, talvez por ser a primeira noite, tenha levado a melhor para mim. Fato é que as aparelhagens como um todo são das manifestações culturais mais ricas que temos. A energia é incomparável, a qualidade dos DJs – que trocam de música a cada 40 segundos e tornam impossível parar de dançar, que mistura versões brega de diversas músicas gringas famosas a sucessos locais –, idem. “Quando você vê esses festivais de eletrônico que temos no sudeste, não imagina que na periferia de Belém também tem uma cena de música eletrônica, que é muito mais autêntica, muito mais brasileira”, conta o jornalista Jairo Malta.
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E, no caso do SuperPop, ainda teve o DJ Águia descendo de tirolesa com asas feitas de fogos de artifício. Se isso não é o suficiente para comprovar o poder das aparelhagens, acho que nada mais será.
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Dia 2: Gaby Amarantos rainha
O segundo capítulo desse diário de bordo já começava com um desafio. Acordar antes das 10h da manhã para conhecer a Ilha do Combu. A ressaca, o calor e os mais de 20 mil passos dados no dia anterior (um misto de andar entre palcos, subir escadas para a área de imprensa e pular nos shows do Psica) foram, sem dúvidas, obstáculos. Mas valeu a pena superá-los para aproveitar um pedacinho de Amazônia que fica a menos de 30 minutos da Estação Hidroviária de Belém.
O passeio teve apenas um destino: o restaurante Boa na Ilha, que fica no Rio Guamá. Feito sobre palafitas, o ambiente surpreendeu a todos: rústico, com uma playlist extremamente contemporânea tocando – Potyguara Bardo, Gloria Groove, Duda Beat e mais – e cheio de gente bonita. Enquanto esperávamos dois tambaquis recheados inteiros ficarem prontos, pudemos descer um lance de escada e tomar banho de rio. Enquanto jet-skis, lanchas e barcos de pescadores passavam, as águas paraenses faziam o trabalho de refrescar, curar a bebedeira e preparar o corpo para mais um dia agitado.
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De volta à terra firme, o destaque do segundo dia de Psica foi, sem dúvida, para Gaby Amarantos. Com seu novo álbum Tecnoshow, mesmo nome da banda em que a cantora se apresentava antes de tornar-se celebridade, ela mostrou que jogar em casa faz, sim, diferença. Gaby tem uma energia absurda e uma enxurrada de hits que, em terras belenenses, são sinônimos de multidão cantando e pulando.
“Isso aqui é o Rock in Rio amazônico”, comentou Spartakus, criador de conteúdo e ex-VJ da MTV. “Mas sabe o que eu senti de diferente? Nos festivais do sudeste, a galera vai pra dar close, tem aquela energia de carão. Aqui, tá todo mundo lindo, arrumado, montado, mas é outra vibe. As pessoas estão aqui só pra curtir”, ele continua.
De fato, é isso que acontece. Além do show de Gaby Amarantos, que estava ali injustamente no meio do line-up, o segundo dia de Psica ainda teve Urias, que serviu um bom show, com balé afinada e, para surpresa até da própria, uma plateia que sabia todas as suas músicas. O headliner do dia, Baco Exu do Blues, agradou bem menos o público. Ele é um dos grandes nomes do rap atual, é verdade, e suas composições são de alta qualidade. Mas, no quesito performance, a noite foi de suas backing vocals. Baco até reclamou com o público. “Eu esperava mais de vocês, Belém”. A resposta? No tweet abaixo.
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Quando **** falou “Belém, esperava mais de vocês” eu quis subir e falar “a gente também meu amor”
Dia 3: Viviane Batidão, BK e um encerramento com chave de ouro
O último dia de programação era um domingo especial: além do encerramento dos 10 anos de Psica, era também o dia da final da Copa do Mundo do Catar. No período da manhã, os planos eram conhecer o tão falado Mercado Ver-o-peso – que, depois de algumas horas, se provou ser realmente tudo aquilo que as pessoas falam. A oferta de sucos, castanhas, frutas, bombons, licores, peças de artesanato – os vasos de cerâmica marajoara são simplesmente maravilhosos – e outros itens tradicionais do Pará é imensa. E, claro, lá também é um excelente lugar para comer.
O almoço foi à beira rio no Box do Leão, com ventiladores para driblar o bafo quente e um menu de pratos feitos que, apesar de se dizerem individuais, são facilmente compartilháveis. A opção aqui é peixe frito – dourada ou filhote – acompanhado por arroz, feijão, fritas, macarrão, farofa, vinagrete e salada. Quer camarão também? Sem problemas, é só pedir.
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Nossa próxima parada foi ali pertinho, na Estação das Docas. O complexo turístico destoa bastante do Ver-o-peso: enquanto o primeiro é bem popular, frequentado por pessoas de diversas cores e classes sociais, o segundo é mais elitizado, com mais infraestrutura e mais branco. A música nas Docas é mais baixa, tudo que você consumir sairá mais caro e, sinceramente, as pessoas pareciam se divertir menos do que no Ver-o-peso. De qualquer maneira, para uma passada rápida, um souvenir mais arrumadinho e um novo check na sua lista de lugares para conhecer, vale a pena passar por lá.
Barriga cheia e energia renovada (isso, ainda bem, é algo recorrente em Belém), hora de falar sobre o último dia do Psica – de longe, o mais animado, especial e potente de todo o festival. A atração principal do dia era Daniela Mercury. Rainha do Axé, mais de 40 anos de carreira, 13 álbuns lançados e um dos primeiros shows de Baiana, o último disco, mais política e dedicado a homenagear as mulheres da Bahia. O domingo ainda teria Luedji Luna, que encantou o público com sua já conhecida firmeza leve para cantar e falar de amor, de sentimentos e de respeito à mulher negra.
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Mas quem roubou a noite foi a mulher que antecedeu Daniela nos palcos. Viviane Batidão é praticamente uma aparelhagem ambulante. A cantora e compositora é uma das músicas do tecnomelody e performou um show digno de artista pop em festival internacional. Com fogo, papéis picados, bailarinos-quase-acrobatas e muita, mas muita energia, Viviane fez, sem dúvida, o melhor show do festival. Essa não é apenas a opinião de quem escreve: a multidão, que se esmagava contra a grade e cantava todas as músicas da cantora – tanto as autorais quanto as versões tecnobrega de hits gringo, uma das coisas –, comprovou a minha percepção.
“O Psica traz diversidade, respeito, palcos incríveis, organização. É uma honra comemorar os 10 anos desse festival” disse Viviane emocionada já no fim da apresentação. Vale aqui mais um ponto alto: ela foi a única artista que chamou o intérprete de Libras – presente em todos os maiores shows – para o meio do palco. Dançou com ele, respondeu o “eu te amo” que ele disse também em Libras e arrematou: “diversidade é isso aqui, gente!”. Viviane, caso esteja lendo isso, saiba que você ganhou mais um fã para sua legião.
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Terminar esse relato, esse diário de viagem, tem o mesmo gosto de terminar uma viagem para Belém: é uma delícia e é uma pena quando chega ao fim. Poder conhecer um festival que celebra a cultura amazônica e tem maioria de público e de line-up não-branco é um frescor para quem, em São Paulo, assiste festivais mensais com uma sequência de artistas 90% igual. As datas para a edição 2023 do Psica já estão no ar: 16 e 17 de dezembro. A recomendação aqui é uma só: vá. E vá por mais de 90 horas, porque além do que rola nos palcos, o Pará tem muito, mas muito mais a oferecer.
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* O jornalista viajou a convite do Psica Produções, da Secretaria de Turismo do Pará e do Visit Pará