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Céu fala de amor cafona, vontade de sair do Brasil e vida aos 40

Cantora revisita seu passado musical ao lançar “Um gosto de sol”, com versões permeadas de afeto de Milton Nascimento, Grupo Revelação e Fiona Apple

por Henrique Santiago Atualizado em 15 nov 2021, 17h50 - Publicado em 15 nov 2021 09h31
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(Clube Lambada/Ilustração)

éu voltou no tempo para gravar seu novo álbum, “Um gosto de sol”, com releituras de ídolos musicais que vão do bossa-novista João Gilberto à sedimentadora do pop sofisticado oitentista Sade. Talvez relembrar o passado de afetos seja para ela a melhor forma de encarar o Brasil bolsonarista de 2021.

Seu sexto trabalho de estúdio, cuja primeira faixa foi “Chega mais”, clássico de Rita Lee, não carrega nenhum vestígio de saudosismo, muito pelo contrário. “Eu demorei alguns discos autorais para contar quem eu era como compositora, do rolê que eu tenho, sou paulistana e multicultural, da cidade que tem essa pluralidade”, diz em entrevista à Elástica.

Para gravar “Um gosto de sol”, Céu juntou um time improvável de músicos: o guitarrista Andreas Kisser, do Sepultura, responsável pelo violão de sete cordas de todas as faixas, o baixista Lucas Martins e o baterista e parceiro musical e de vida Pupillo, também produtor do álbum. Colaboraram também Emicida, Russo Passapusso, do BaianaSystem, e DJ Nyack.

Acostumada a viver fora da zona de conforto, Céu encontrou na música o seu refúgio para lidar com a pandemia, o governo Bolsonaro e a sensação de luto eterno causada pela covid-19. “Em um momento de crise mundial, de violência, de luto, cada um recorre ao seu porto seguro, a um canto, a uma pequena coisa no seu micromundo”, declara.

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Além de cavucar sua formação musical, a artista olha para o futuro – com certo desânimo. A volta aos palcos depois de um ano e meio oferece alento, claro, mas a vida fora dele traz um enorme ponto de interrogação quando o assunto é Brasil. “Eu já pensei em passar um tempo fora, pelos meus filhos”, revela.

Por ora, é melhor se debruçar sobre os afetos, sentimento que engendra “Um gosto de sol” e perpassa ao longo de toda a entrevista. Faça como uma das músicas, chega mais e confira abaixo, na íntegra, o bate-papo com a Céu.

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(Cássia Tabatini/Divulgação)

O seu novo álbum, “Um gosto de sol”, surgiu da memória e do afeto, enquanto o antecessor, Apká!, veio na contramão ao falar de contrastes nas relações humanas. O que você sentiu ao revisitar esse baú de memórias musicais?
Eu senti um gosto de sol assim, um gosto que não estava tendo de forma alguma. É um gosto de sol no sentido de uma quentura mesmo, porque a música sempre foi o lugar mais seguro para mim, esse lugar onde me sinto acesa por dentro. Em um momento de crise mundial, de violência, de luto, cada um recorre ao seu porto seguro, a um canto, a uma pequena coisa no seu micromundo. Nem todo mundo pôde ter esse privilégio de se resguardar, mas foi uma situação que botou uma lupa dentro das nossas vidas mais íntimas. E o lugar que eu recorri foi a música, aos meus ídolos, eu saí um pouco do lugar de compor para voltar a ser quem eu sou. Essas pedras preciosas que são esses artistas, eu recorri a eles para me aquecer. Foi isso que eu senti.

As faixas selecionadas para Um gosto de sol foram lançadas entre os anos 1950 e 1990, com exceção de Deixa acontecer, que é de 2001. A sua formação musical está em constante reformulação?
Sim, totalmente. Eu me sinto uma mutante no sentido de estar aqui para aprender. Ainda não cheguei em canto nenhum. Todo dia eu estou ouvindo alguma coisa que eu aprendo e também ao mesmo recorro a coisas que eu vivenciei para tentar trazer para agora, para o evoluir. É isso, né, a espécie humana é um bicho bem esquisito (risos). Eu acho que essa revisão em todos os aspectos tem que ser feita o tempo todo. Se eu começar a achar que eu cheguei em algum canto, que eu estou me bastando, é melhor eu ficar quieta (risos). Eu estou aqui sempre aprendendo, ouvindo coisas até novas de gerações hiper novas, estou super aprendendo também.

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(Érico Toscano/Divulgação)

Esse trabalho se trata de um projeto muito pessoal, ao passo que também permite que o ouvinte crie uma identificação ao ouvir essas músicas. Quando eu ouvi ‘Deixa acontecer’, voltei para os meus 10 anos…
Foi nos anos 1990, quando eu tinha 10 anos, que o pagode começou a bombar. Esse período de 10 a 20 anos é muito formador, sabe? Primeiro que a gente vai trazendo esses sons que a gente escuta, que a vida está tocando, e a gente vai assimilando. E tem também as nossas próprias escolhas que vêm de casa, mas começam a atravessar pelas nossas escolhas pessoais. O pagode é uma das camadas que eu nunca tinha trazido, mas que também fez parte da minha história, do meu rolê, da minha diversão, de eu cantar, estar com amigos. Eu queria trazer essa camada minha que ninguém conhecia.

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Em que ponto a Céu, que caminha com tanta naturalidade por Alcione, Grupo Revelação e Jimi Hendrix, pode surpreender os fãs já acostumados com sua diversidade musical?
É um negócio meio esquisito. Eu também fico meio pasma com o jeito que eu transito nas coisas, mas no final das contas, quando eu vejo esse disco pronto, sinto que eu estou falando de elo, sabe? De elo, de pontes através da música, que é uma coisa que eu me dedico, sou devota e cuido, sempre veio na frente na minha carreira. Em um país que maltrata a arte, e a música, onde você é acusado de ser ‘comedora de Lei Rouanet’ e essas coisas todas, onde a música é praticamente criminalizada… Eu quis botar um pouco no lugar que esses ídolos, esses gigantes que são os pilares da nossa música, merecem. Isso aqui é o PIB, o Produto Interno Bruto do Brasil, é a arte, é a música. E também do mundo, fazer relação com os grandes do mundo.

“Eu também fico meio pasma com o jeito que eu transito nas coisas, mas no final das contas, quando eu vejo esse disco pronto, sinto que eu estou falando de elo, sabe? De elo, de pontes através da música, que é uma coisa que eu me dedico, sou devota e cuido, sempre veio na frente na minha carreira. Em um país que maltrata a arte, e a música, onde você é acusado de ser ‘comedora de Lei Rouanet’ e essas coisas todas, onde a música é praticamente criminalizada…”

Eu demorei alguns discos autorais para contar quem eu era como compositora, do rolê que eu tenho, sou paulistana e multicultural, da cidade que tem essa pluralidade. Mas eu tento contar essa história, caminhar, mostrar minhas referências para depois me jogar no papel de intérprete, que era meu plano inicial quando eu comecei na música, e tentar fazer isso com naturalidade. Misturar a Marrom com a Rita Lee, por exemplo, que no final das contas têm a mesma mensagem feminista, num período em que não se podia dizer que era feminismo. As mulheres ainda tinham medo desse termo, imagina os homens. Elas já estavam fazendo isso, é a mesma raiz. É muito importante as novas gerações saberem e a gente pode tentar fazer essa costura, tipo uma colcha de retalhos mesmo.

Em que momentos da vida você indicaria esse álbum para as pessoas?
Eu não vou saber te responder isso, porque essa é uma das coisas que acho mágicas. Cada um toma para si de um jeito a música, vai para um canto, para um momento. Eu fiz o álbum e sinto um pouco que o álbum não é mais meu, sabe? Ele passa a ser seu, em qual momento da vida você vai escutar e como vai bater em você. Eu controlo tudo que eu posso até o momento de lançar, depois eu deixo, não tenho mais como controlar, não tenho mais nada mais assim.

Deixa acontecer naturalmente…
(Risos) É por aí.

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(Cássia Tabatini/Divulgação)

No texto do álbum para a imprensa, você diz que é uma pessoa teimosa, em referência ao samba de mesmo nome gravado por Antonio Carlos e Jocáfi. Você foi teimosa em algum momento durante o processo de concepção de Um gosto de sol?
Nossa, eu fui muito teimosa, muito. Eu sou muito teimosa, chata, tinhosa. Mas foi muito interessante ter pela primeira vez uma curadoria, gente opinando, porque geralmente quando você faz um trabalho autoral ele está na sua cabeça, no seu desejo, você pega e faz o negócio e arca com seu B.O. [risos]. E é legal quando você tem pessoas te ajudando porque você sai um pouco de si próprio, e as pessoas estão te vendo de fora. Isso agrega muito e às vezes contraria o seu próprio pensar.

Na minha teimosia, em vários momentos eu fui chata e falei: ‘não, mas isso aqui’, ‘não, e isso aqui…’, e mudava de ideia. Foi bem legal, eu gostei. Eu queria uma canção do Antonio Carlos e Jocáfi porque eu gosto muito deles, gosto desses sambas da Bahia que têm essa coisa dolente, esse traquejo que só a Bahia é capaz de fazer. Eu queria trazer um pouco o “B” deles. Eu até tinha pensado em [cantarola o nome da música] Você Abusou. Quando fomos para “Teimosa”, acho que vestiu, sabe?

Da mesma forma, Céu, você carinhosamente afirma ser uma pessoa cafona. De que forma a cafonice se manifesta nas suas relações interpessoais e até com você mesma, já que esse disco se trata de afeto?
Eu sou muito cafona e acho que o amor é cafona, entendeu? Difícil você não ser cafona na esfera amorosa porque é isso. Tem uma coisa piegas, e acho que isso foi mais um lugar que eu também quis trazer cantando “Feelings”, por exemplo, que é uma canção muito cafona (risos) que vai para a fossa do amor, do sentir que é da condição humana, é muito forte. Eu sou aquela pessoa que fica cantando no karaokê, me acabando (risos). Eu gosto disso tudo e acho que era uma coisa legal para eu contar sobre a minha personalidade. Em vários momentos na minha música eu deixei a minha cafonice bem clara, mas podem ter ruídos por conta de como o arranjo acaba indo ou até da minha própria construção, não sei. Tipo, “Caravana” [Sereia Bloom] é um disco que explorou bastante a minha cafonice: [declama trechos da música “Retrovisor”] ‘Pois não pense que isso vai ficar assim / Meu batom vermelho vai me enfeitar’. Isso tudo é da ordem da cafonice e eu sou dessa escola e é importante ver isso.

“Eu sou muito teimosa, chata, tinhosa. Mas foi muito interessante ter pela primeira vez uma curadoria, gente opinando, porque geralmente quando você faz um trabalho autoral ele está na sua cabeça, no seu desejo, você pega e faz o negócio e arca com seu B.O. [risos]”

A cafonice a que você se refere tem uma relação com o que hoje chamam na internet de pessoas “emocionadas”…
[Risos] Olha, eu não conhecia esse novo termo. Eu sou demais. Pode dizer que eu sou a própria emocionada.

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Você diz que Rita Lee, de quem gravou “Chega mais”, é a cara de uma São Paulo que deu certo. Mas você também tem uma identificação muito forte com essa cidade. Quero saber o que te mais te envaidece e o que te esmorece quando pensa em São Paulo?
[Pensa uns segundos] Bom, o que me esmorece é que São Paulo é difícil, é uma cidade agressiva, de disparidades muito grandes. Isso tem a ver com Brasil, mas São Paulo é a elite do sudeste, acho difícil. É onde eu fui nascida e criada, isso me assombra. O jeito, o pensamento, a origem das coisas, vai para um Brasil mais profundo. Tem um lugar de São Paulo que eu acho bem difícil, que tem que ser revisto a duras penas. O paulistano não quer que a água bata na bunda, quer continuar no seu conforto, especialmente a elite, enquanto embaixo tem um monte de gente ferrada. Isso destrói a São Paulo que eu também amo.

E a São Paulo que eu amo é outra. É receptiva, é múltipla, parece que são mil cidades dentro de uma cidade, isso me encanta. Ela tem uma coisa que só São Paulo poderia fazer: uma Rita Lee Mutante. Tem algo muito estranho nessa cidade, que o Caetano [Veloso] sempre falou muito sobre isso. Tem uma coisa ampla bela e feia ao mesmo tempo, bem aquarianona louca [risos]. A Rita abriu a porta para todas nós, para mim, para as mulheres da minha geração, para as meninas que estão maravilhosas, destruindo e fazendo acontecer.

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(Érico Toscano/Divulgação)

O clipe de “Chega mais” foi gravado em São Paulo. Quais foram as locações?
Foi muito legal gravar esse clipe. Já que você está me dando essa oportunidade de falar, quero mandar um beijo para a Aline Lata, minha diretora. Sou apaixonada por ela, ela é maravilhosa. Ela já tinha feito “Coreto”, no Apká!, e logo que eu comecei a fazer o disco liguei para ela pensando “vamos fazer!”. A Aline tem uma linhagem bem cinematográfica, a gente ensaiou, mas ao mesmo tempo ela dá muito espaço para o que vai acontecer em cena. E aí entrou o [Ricardo] Januário, que é um fantástico coreógrafo e dançarino, um menino brilhante. A gente se divertiu muito no ensaio, parecíamos amigos de anos, quanto no dia da gravação. A gente foi primeiro para o túnel da Lapa, perto do Mercadão, e depois a gente deu tanto rolê, foi para o centro, para a Barra Funda, para muito canto em uma madrugada.

Você chegou aos 40 anos no ano passado em um cenário completamente adverso: início de pandemia, o medo de uma doença pouco conhecida, e incertezas que provaram ser as piores possíveis em um país com mais de 600 mil mortes por covid-19. Rolou alguma reflexão sobre a sua vida como brasileira, artista e mãe de duas crianças?
Sim, muito! Eu passei por tudo que todo mundo passou, por uma autorreflexão, uma preocupação muito intensa com o coletivo em um nível maior do que já tinha. Um desejo de transformação, e um caminhar para uma nova aurora, não à toa eu abro o disco com “Ao romper da aurora”. É um desejo de ir em busca de um mundo mais sustentável, justo e igualitário. Sou mães de duas crianças, eu vejo meus filhos com outra cabeça. Penso que a minha geração é muito suja, sabe? Jogou lixo pra caramba, poluiu pra caramba, criminalizou muitas coisas. Houve muitos momentos tristes, difíceis e de revisão o tempo todo. Eu e meu companheiro, a gente fala muito disso. A gente olha para as possibilidades e estamos em busca, tentando aprender, especialmente quando tem duas crianças. Isso vem no centro do peito, vem forte.

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Nesse contexto de pandemia, o cumprimento da quarentena com as mesmas pessoas, o uso de máscaras e a falta de contato com o mundo lá fora te fizeram descobrir um comportamento que te desagrada no ser humano?
Nossa, na verdade, eu estou bem incrédula com a espécie humana. Eu prefiro deixar as palavras para os todos os livros do Ailton Krenak [escritor indígena de “A vida não é útil”], porque ali está tudo bem explicado. A gente não coabita o planeta, a gente veio para tirar foto do planeta, para sugar esse organismo vivo e depois que tiver bem sugado começa a aplaudir os bilionários que estão fazendo viagens espaciais em outros planetas. Eu estou muito desgostosa com o ser humano de um modo geral, não tiro meu corpo disso. Sou adepta de filosofias espirituais que acreditam em outras vidas, para mim ficou sempre claro que não estamos aqui para passear. Estamos aqui para fazer algo que não está legal. Todo dia é dia de buscar, rever, em qualquer micro ação minha eu tento botar um olhar e uma intenção para caminhar para uma evolução. As redes sociais vieram para atrapalhar isso por conta do ser humano ser muito pequeno, vaidoso, egoístico.

E temos muito para aprender, a gente cria ferramentas que não dá conta. O rico está mais rico, o pobre está mais pobre, as minorias estão sendo mortas. Essas divisões não podem mais existir, por isso é o momento de todo mundo se colocar no seu pertencimento, no seu lugar, e entender que temos que quebrar essas caixas e unir, senão a empatia não virá real. O ser humano precisa de se colocar de fato no lugar do outro, sair da sua vaidade e seu conforto próprios e botar a mão na massa. Muitas coisas me causaram desconforto e seguem causando. Eu estou todo dia no canabidiol (risos), para me deixar a coluna dorsal ereta, continuar cuidando dos meus filhos, fazendo a minha meditação e tentando me encontrar.

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(Cássia Tabatini/Divulgação)

“Sou mãe de duas crianças, eu vejo meus filhos com outra cabeça. Penso que a minha geração é muito suja, sabe? Jogou lixo pra caramba, poluiu pra caramba, criminalizou muitas coisas. Houve muitos momentos tristes, difíceis e de revisão o tempo todo. Eu e meu companheiro, a gente fala muito disso. A gente olha para as possibilidades e estamos em busca, tentando aprender, especialmente quando tem duas crianças. Isso vem no centro do peito, vem forte.”

Em algum momento você descobriu algum comportamento que te irrita, que te tira do eixo, algo assim?
Eu sou cheio das minhas coisinhas, estou me sentindo mais velha [risos], apesar de me sentir uma criança também. É muito engraçado. Tem coisas que eu não curto mudar, mexer. Eu preciso às vezes de silêncio, não conseguiria viver em um lugar muito barulhento. Tenho muita, muita, muita vontade de sair de São Paulo. Eu como muito cedo, faço essas coisas de veinha [risos]. São Paulo é super barulhenta, se fosse sempre discreta seria muito maravilhoso. São Paulo é noisy, sirene. Eu acho que é isso também que o mundo está falando: tá puxado!

Durante a gravação do álbum, Céu, você chegou a pensar que é possível viver em um país melhor? E o que a sua arte pode fazer com que o afeto seja despertado para o breve futuro?
Essa minha teimosia sempre me deixou muito com o pé no Brasil também, sabe. Eu tive muitas possibilidades de estar lá fora, tenho uma carreira bem estabelecida lá fora. Não vou mentir: eu penso muito em sair, sim. Me irrita muito a questão de escolas particulares de elite em São Paulo serem tão “embolhadas”, a educação ser tão cara e para poucos. Meus filhos vão a escolas que só têm um tipo de gente. Isso, para mim, é a morte, me incomoda profundamente. Você vai para uma escola pública e tem tantas pessoas precisando de uma vaga. Eu já pensei em passar um tempo fora, pelos meus filhos. Fico aqui nessa reflexão diária, ao mesmo tempo eu amo o Brasil e acredito que não existe lugar mais potente que o nosso. O problema é que temos governantes realmente bizarros. É um necrogoverno que destrói a Amazônia, os indígenas, que é misógino, homofóbico e destruidor. Temos muitos problemas e tento usar a música como a minha arma, mesmo não fazendo música panfletária. Se você for ver, desde o meu primeiro eu estou falando [cantarola “Bobagem”] ‘Minha beleza não é efêmera / Como o que eu vejo em bancas por aí’. Eu sempre tentei falar de elo, amor e estou aqui por todos esses anos. O futuro só Deus sabe.

Esse pensamento de deixar o Brasil ainda passa pela sua cabeça?
Passa o desejo de tentar, pelos meus filhos. Mas a Europa, aquele lugar que é o velho mundo, tem um modelo de vida ultrapassado. São muitas questões, sabe? Por enquanto, eu vou seguindo. Eu amo muito o povo brasileiro, amo muito a cultura brasileira, amo muito isso aqui.

Você disse que nasceu dentro da elite e era estranho para você. Como você pensa e repensa seus privilégios?
Eu penso e repenso desde que nasci, isso é engraçado. A parte da elite é bem do lado da minha mãe [a artista plástica Carolina Whitaker]. Eu gostava de ficar na cozinha o tempo todo. Meu avô era um cara que tinha uma relação com a arte no Brasil, era ligado a Di Cavalcanti e Tarsila [do Amaral], aos modernistas. Era apaixonado pelo [Dorival] Caymmi. É uma família bem quatrocentona, com muita história de poder no Brasil, vinculada à revista O Cruzeiro. Do lado do meu pai já é outro rolê: são imigrantes que vieram para o Brasil tentar uma vida melhor, que começaram de baixo e seguiram. Eu cheguei em um momento em que a elite da família da minha mãe estava em declínio.

Aquela briga terrível de herança, coisas bem violentas, tios tretando com outros tios, briga por dinheiro. Eu fui aquela criança muito assustada e segui um rumo muito meu. Quis sair de uma escola e fui para outra com viés muito mais humanista, mas ainda assim de elite. Com 12 anos, muito novinha, eu pegava dois ônibus, atravessa a cidade para ir a um lugar que não era da cultura da minha família. Eu penso o tempo todo o lugar de onde eu vim e o real pertencimento espiritual. Sou eu que estou ali no grupo de mães falando da falta de diversidade racial dentro de uma escola. O que eu posso eu tento questionar e aprender e transformar. Não é fácil.

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(Cássia Tabatini/Divulgação)

Aqui em São Paulo tem uma rua chamada José Maria Whitaker [advogado, banqueiro e ministro da Fazenda nos anos 1900]. Ele tem relação com sua família?
Ele é meu bisavó [risos]. Eu não o conheci, tive relação com meu avô Firmino. Meu bisavô teve 13 filhos. Bem coelho mesmo (risos).

E quais são as suas expectativas para 2022 marcado com a promessa de volta definitiva aos palcos, pandemia e eleições?
Difícil, viu? Eu ainda não consigo ver um cenário muito positivo, posto que temos esse tipo de gente se elegendo. E esse tipo de polarização e o ânimo extremamente acalorado instituído no país, que é um país indignado, e também vive um obscurantismo, o que é fake news e o que não é fake news. Essa loucura onde a gente está, a ignorância mesmo. Eu fico bem preocupada, não vou mentir para você que estou com uma super expectativa para o ano que vem, não, mesmo. Eu estou aqui só batendo meu tamborzinho, entendeu? É onde eu, mais uma vez, me retiro.

É a música, a minha força, os meus micro gestos para tentar fazer algum tipo de transformação. Você vê um Moro falando daquele jeito, um pulha como o Jair Bolsonaro. Enfim, vai ser muito difícil o ano que vem. Sigamos, páginas dos próximos capítulos. Mas temos que trazer à tona pessoas brilhantes que estão fazendo transformações reais, como um Krenak da vida, um Emicida, uma Joice Berth, por quem sou apaixonada. O Brasil tem que estudar, mesmo contra toda a vontade do mundo dos governantes, quem pode tem que estudar muito, se informar, passar pra frente. Tem que fazer sua parte, ter empatia e pôr a mão na massa.

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