O festival Doce Maravilha fez sua primeira edição levando um line-up bombástico para a Marina da Glória, no Rio de Janeiro, no último final de semana. Mesmo com ótimos shows, uma chuva contínua anunciada desde o início da semana transformou o segundo dia de evento em um desafio digno de reality show, com direito a obstáculos e prova de resistência.
A escalação musical foi o ponto alto, que garantiu ingressos esgotados para os dois dias de evento. E não era por menos. Entre as apresentações marcadas, o headliner Caetano Veloso tocando o emblemático álbum “Transa”, Gilberto Gil e BaianaSystem dividindo palco e emoção; Margareth Menezes com Luedji Luna, numa ode às mulheres negras e à Bahia.
O primeiro dia correu bem, apesar de alguns problemas estruturais, como a falta de bebidas, papel nos banheiros ainda de tarde e dos volumes baixos dos vocais no palco principal. Não que chegasse a comprometer completamente os shows que rolaram ali quase com exclusividade.
A união de Gilberto Gil e BaianaSystem, que só tinha acontecido em Salvador e foi mais do que especial e mesclou dois repertórios de alma baiana. Ver a ministra da cultura Margareth Menezes com a deusa Luedji Luna, numa ode às mulheres negras foi uma das maiores emoções do dia.
O show potente de Emicida, que teve participação vocal de Maria Rita em meio às projeções mapeadas, trouxe uma energia linda e acolhedora pro festival. A dupla Rodrigo Amarante e Adriana Calcanhotto fizeram uma escalada que elevou o show e fez todo mundo cantar de olhinhos fechados. Fechando a noite, um banho de nostalgia com o histórico Furacão 2000, num palco/paredão lindo com acesso 360º para o público.
O domingo prometia uma sequência de mais sucesso ainda, não fosse a chuva só que deu trégua depois das 2h30 da manhã, com o evento já encerrado. Sair de casa em meio à tempestade para chegar num lugar aberto e gramado já era o anúncio do desafio que se formaria.
João Gomes recebeu Vanessa da Mata num clima de encontro de amigos. A voz grave e gentil que domina o piseiro se fez vulnerável para entoar os versos em inglês de “Boa Sorte”, apoiado pela convidada de palco. “Ai, ai, ai” caiu como um acalanto irônico em meio à chuva que seguia sem trégua.
A partir daí, tudo começou a se complicar. A água que caía se transformou em lama no chão e o vento do mar soprou para fora uma primeira leva do público. Resistiu quem botou fé em ver – a maioria pela primeira vez – o show de “Transa”, que completou 50 anos.
A Orquestra Imperial, que fez um show incrível em homenagem à Rita Lee, dominou o palco com repertório e qualidade de som que fizeram jus à nossa diva do rock. Enquanto o grupo finalizava a performance, uma multidão se reunia em frente ao palco principal à espera de Caetano. Mas com um anúncio direto e seco, a ilusão se quebrou. Uma voz sem rosto anunciou que o show de Marcelo D2 seria o próximo a acontecer. Foi uma debandada geral.
Com atraso e em meio à uma chuva torrencial, D2 apresentou seu aclamado álbum de 2003, “À Procura da Batida Perfeita”, ainda que com um PA queimado e falhas de som por conta da água ininterrupta. Cantando em casa e acompanhado pelo público molhado, D2 foi guerreiro. Seguiu um show poderoso, cheio de convidados especiais, ainda que com a água golpeando diretamente seu rosto.
“O palco que o Caetano teria que subir não tem a menor condição de se apresentar. O som pifou, está dando choque, o D2 parou no meio. Agora, o festival pediu que a gente mudasse de palco. Mas para isso vai demorar muito. Eu falei que achava que deveria cancelar, mas o festival insiste em trocar de palco. Essa é a situação. O Caetano está chegando e vai analisar”, disse Paula Lavigne ao GShow.
No outro palco, Liniker e Péricles faziam uma apresentação histórica, com bandas unidas e sucessos de cada artista intercalados. Duas vozes e bandas incríveis que precisam se unir novamente. A chuva já não afastava quem tinha optado por ficar até o fim, ainda que sem a menor ideia do que iria acontecer (ou não acontecer).
Somente às 22h45 um anúncio foi feito via redes sociais para informar que Caetano Veloso se apresentaria no palco lateral – que estava de costas para o fluxo de água e vento. O artista entrou em cena à 1h da manhã, com o público que havia restado ainda muito molhado e enlameado.
Confesso que mesmo com os pés ensopados, cansada e dedos enrugados de tanta água, o choro se misturava com a chuva enquanto ouvia “It’s a long, long, long / It’s a long way” vibrar pelos ares.
Quem ficou até o fim vai dizer que valeu a pena. Foi bem difícil resistir, mas o objetivo foi atingido. Já quem foi embora se divide em um misto de revolta e decepção. De querer dinheiro de volta e um novo show. De descer a lenha nas redes sociais.
Não é a primeira vez neste ano que um festival no Rio de Janeiro sofre com as chuvas fortes e o descaso da organização. Em fevereiro, o Rep Festival teve que ser cancelado pela estrutura que não deu conta da torrente de águas que vinha do céu. Claro, não há como dizer que a culpa é 100% da produção, porque não há como controlar a natureza. Mas existe, sim, estrutura possível para melhorar a situação. Tanto para cobrir o chão, como se faz em festivais realizados em estádios de futebol, quanto para garantir mais pontos de abrigo da chuva. Custa dinheiro, planejamento e tempo. Mas de novo, a chuva estava anunciada. Há de se pesar: gastar para garantir a experiência ou gastar depois para remediar o problema. Ir de 80 a 8 e de 8 a 80 em poucos minutos tem suas mazelas.
E gentileza nunca fez mal a ninguém. Talvez um “sentimos muito” ao invés de “os artistas saíram felizes” desceria mais doce, não é, minhas maravilhas?