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Daqui para a eternidade

Em "A Gente Acaba Aqui", a cineasta Everlane Moraes filma o velório de seu tio “fofoqueiro e cachaceiro” e lhe dá seus sonhados 15 minutos de fama

por Artur Tavares Atualizado em 2 ago 2021, 15h36 - Publicado em 30 jul 2021 00h21
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(Clube Lambada/Ilustração)

morte é sempre um tema tão difícil de lidar. Dizem que algumas culturas lidam melhor com a passagem mas, depois de um ano de pandemia – e vivendo no Brasil – anda difícil naturalizar aquela que é a consequência inevitável da vida.

Estamos falando sobre a morte em todos os momentos sem perceber que deixamos de celebrar nossas vidas. Com tanto caos e falta de esperança, alguns de nós até repetimos aos quatro ventos que era melhor que todos estivéssemos mortos, para acabar com isso de uma vez por todas.

Falar sobre a morte é, no entanto, lembrar que estamos vivos, aqui e agora, e sem ter para onde correr. É exaltar, ainda que morbidamente, o fato de que somos felizes, de que amamos pessoas, temos paixões, de que precisamos ser úteis para algo ou alguém enquanto passamos por esse planeta.

Lançar um curta-metragem sobre a morte foi a chance que a cineasta Everlane Moraes encontrou para dizer adeus à sua mãe, morta no final de 2020, e de se reencontrar com seu tio Wellington, que já se foi há uma década. Autora de filmes como Pattaki e consagrada em festivais internacionais como Sundance (nos EUA) e Roterdã (na Holanda), a diretora baiana faz uma ode à sua família e sua ancestralidade com a A Gente Acaba Aqui, documentário comissionado pelo Instituto Moreira Salles e último filme a integrar a mostra “Convida”, iniciada no ano passado.

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Em A Gente Acaba Aqui, Everlane tira da gaveta cenas feitas durante o velório e enterro de seu tio Wellington, em 2010. Trata-se de um retrato fiel e cru de um momento tão fantasiado por todos nós enquanto ainda estamos vivos, o último contato entre nossos corpos e as pessoas que amamos.

A cineasta conta que fez o filme como uma maneira de honrar uma promessa que havia feito a seu tio, de que um dia lhe daria 15 minutos de fama através da arte. Wellington era o desgarrado da família, o “fofoqueiro e cachaceiro” irmão de um cantor e de um artista plástico – este, o pai de Everlane. Mas, A Gente Acaba Aqui mostra que não importa quem você tenha sido em vida, sua morte sempre terá os tons devidos de dignidade.

Conversamos sobre a produção com Everlane, e também falamos sobre suas novas produções cinematográficas e a capacidade de fomento artístico que o Brasil tem hoje. Confira:

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(A Gente Acaba Aqui/Divulgação)

Quero começar perguntando como foi revirar seus arquivos antigos para produzir A Gente Acaba Aqui. O que te motivou a lançar um documentário sobre o enterro de um tio dez anos após sua morte?
Primeiro, a promessa, a missão em si. Ele me pediu para ser personagem de um filme sobre si mesmo, seus 15 minutos de fama. Eu já tinha feito filmes sobre meu pai e meu outro tio, que são artistas famosos. Ele não era da arte, mas queria o mesmo. Prometi, passou um tempo, deixei de lado por causa de outras preocupações. Ele acabou ficando doente, pensei em gravá-lo, mas fiquei na esperança de que ele se recuperasse. Acabou que morreu, então falei com o filho dele, contei sobre a promessa, só que as circunstâncias eram essas. Gravei e ficou esse tempo todo guardado, porque depois me desconectei um pouco do material. Fiz meus dois primeiros filmes, fui estudar em Cuba. Lembro que, na época que tentei editar, a pessoa que me ajudava colocava muito a cara do morto, e não gostei do resultado.

“Enquanto estava editando, li ‘Notas sobre o luto’, da Chimamanda Ngozi Adichie, um livro espetacular. Me ajudou bastante, porque tenho as mesmas questões que ela, de não aceitar, de não entender, de me arrepender de não ter feito mais imagens, fotos e arquivo da minha mãe viva. Quando a pessoa morre, você vê o quanto a morte é absoluta, não tem solução”

Agora fez todo sentido lançar, porque minha mãe faleceu no ano passado. A morte dela me reconectou com esse material. Quando fui olhar os brutos e a vi em imagens, viva, sem esperar que um dia fosse ela, percebi que fazia sentido lançar. Foi uma maneira não só de fazer as pazes com essa promessa como também com a minha mãe, além do próprio momento que estamos vivendo agora, em que não entendemos mais o que é morte e o que é vida, o que está acontecendo. Assisti essas imagens e percebi que era a hora de falar sobre a morte e sobre esses rituais de afetividade, de zelar o morto, de reencontro, desse tempo que precisamos para nos despedirmos e nos acostumarmos.

O que me possibilitou voltar a esse material foi a própria pandemia. Como estamos muito remotos, consegui abrir meus HDs, ver coisas antigas, fazer algumas limpezas. Ao mesmo tempo, enquanto estava editando, li Notas sobre o luto, da Chimamanda Ngozi Adichie, um livro espetacular. Me ajudou bastante, porque tenho as mesmas questões que ela, de não aceitar, de não entender, de me arrepender de não ter feito mais imagens, fotos e arquivo da minha mãe viva. Quando a pessoa morre, você vê o quanto a morte é absoluta, não tem solução.

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(A Gente Acaba Aqui/Divulgação)

O cinema já produziu diversos filmes sobre funerais, sejam eles ficcionais ou documentários, como o seu. De onde vem o fascínio em retratar esses últimos momentos entre quem partiu e quem continua aqui?
É esse grande problema existencial humano, que é a morte. Gosto muito desses temas mais universais e sempre fui uma criança muito estranha. Eu coleciono santinhos, e minha mãe não perdia um velório. Era quase um acontecimento, um evento. Tem uma coisa das cidades pequenas. Eu nasci em Cachoeira, na Bahia, e aqui ainda passa carro com alto falante avisando sobre os mortos, dizendo o nome dos familiares, convidando para ir ao velório, à missa de sétimo dia. E ainda se fala bem assim: “Comunicamos o falecimento de fulano de tal, filho de não sei quem, neto de não sei onde”. Isso é muito presente em uma cidade histórica como essa, que tem uma relação muito presente com a morte, uma cidade onde aconteceram as primeiras lutas negras por libertação, um lugar que recebeu muitos negros vindos da travessia do Atlântico. É uma cidade que já se alimenta da morte colonial.

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“Gosto muito do Zé do Caixão, e lembro de um testemunho dele contando que também morava em uma cidadezinha pequena. Um dia, foi em um velório com o pai. Estava lá o morto no caixão, e de repente ele levantou. Na verdade, a pessoa era acataléptica. Levantou, e foi aquela correria”

Gosto muito do Zé do Caixão, e lembro de um testemunho dele contando que também morava em uma cidadezinha pequena. Um dia, foi em um velório com o pai. Estava lá o morto no caixão, e de repente ele levantou. Na verdade, a pessoa era acataléptica. Levantou, e foi aquela correria, o pessoal gritando e tal. Ele diz que isso o influenciou bastante para ser Zé do Caixão. Depois, esse morto morreu na miséria, em frente à casa dele, na rua. Ninguém falava com ele. Morreu como um fantasma. Também assisti há pouco tempo o curta-metragem com o enterro do Di Cavalcanti. Fiquei bem impressionada. Só que eu já filmei três velórios na minha família, entre eles o axexê da minha avó [a cerimônia de velório de uma mãe de santo no candomblé].

Funerais de pessoas importantes ou famosas são envolvidos em muita comoção popular, mas o que vemos quando você retrata o enterro de seu tio Wellington é a naturalidade de uma cerimônia entre poucos familiares e amigos íntimos, cheia de conversas casuais e até brincadeiras. Você acha que glamorizamos a morte e os ritos de passagem?
Aqui se fazem velórios dentro de casa, um lugar em que você vai não somente para rever o morto, mas também rever pessoas. É um lugar de encontro de pessoas que não se veem há algum tempo, de conversas sobre muitas coisas. É um ritual, essa coisa das pessoas conversando, fingindo que o morto não está ali, que não estão sentindo.

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(A Gente Acaba Aqui/Divulgação)

Meu tio foi o único filho da minha avó que não deu para nada. Era um cachaceiro e fofoqueiro. Eu queria fazer um documentário sobre esse aspecto, esse cara comum que bebia no bar do Seu João, que não deu pra nada, não deixou nada. Ele queria esses quinze minutos de fama, e infelizmente estou dando a ele na morte. Mas, não tem glamour nenhum, não tinha quase nada de interessante para filmar, ele não era ninguém além do cachaceiro fofoqueiro. Mas, quando ele morre… sim, talvez seja seu momento mais importante. As pessoas foram até lá dar importância a ele, a aquele corpo.

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É uma maneira de encontrar sentido para o curso da vida?
Talvez sim, mas eu não vejo muito sentido. Minha família tem uma relação tão louca com a morte que, por exemplo, estou deixando uma procuração dizendo que não posso ser cremada, por conta do candomblé, e que quero caixão simples, sem imagem. Pedi que não haja nada de glamour, que seja enterrada em Cachoeira, que não façam missa de sétimo dia. Tenho pavor a isso, às imagens de Cristo no caixão.


“As pessoas se preocupam muito com isso, com estar tudo correto. Ainda mais nós, de família pobre e preta. O morto tem que estar bem, as flores todas, todo mundo bem vestido, o cafézinho, a casa arrumadinha”

Mas, acredito que a gente procure camuflar, enfeitar, e até se organizar para morrer. Foda-se se eu preciso pagar um serviço funerário, R$ 12 por mês, para ter um carro, um túmulo. Eu morri, se virem. As pessoas se preocupam muito com isso, com estar tudo correto. Ainda mais nós, de família pobre e preta. O morto tem que estar bem, as flores todas, todo mundo bem vestido, o cafézinho, a casa arrumadinha. Não é só o velório, é entrar na casa do outro, observar tudo. As pessoas são pobres, ou seja… Como não se tem dignidade na vida, de repente dignidade na morte. Tem uma coisa fetichista, que acho muito estranho, mas que as pessoas se preocupam.

Sejam em seus documentários ou nas suas ficções, são comuns temas da diáspora africana, como a identidade e a espiritualidade. Como essas duas facetas da produção cinematográfica, o real e o fantástico, se conversam e se cruzam nas suas obras?
Sou uma documentarista nata, mas gosto de borrar as fronteiras entre a ficção e o documentário. Do ponto de vista filosófico, é muito bonito discutir o que é realidade e o que é ficção, se é verdade ou mentira. Mas, do ponto de vista prático, não sei qual é a verdade que suporta uma ilha de edição.

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(A Gente Acaba Aqui/Divulgação)
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No caso do documentário, a coisa é livre. Algumas escolas do cinema quiseram aprisionar o formato, colocá-lo em uma caixinha. Até hoje existe essa marginalização. Eu gosto muito de documentário, você também, somos adultos, mas já entramos cansados em uma sala de cinema para ver um documentário. Porque sabemos que vamos aprender alguma coisa, que tem essa ligação com o jornalismo, com a informação. Mas, acho que é justamente o contrário. Na verdade, desde seu surgimento, o documentário nunca teve uma crise ética. Se é verdade, se é mentira, se precisa ser uma reconstrução da realidade. Isso só surge com Hollywood, com a indústria.

Acho que as fronteiras têm que ser ainda mais borradas. Gosto muito de documentário híbrido, contemporâneo, em que cabe a ficção e a performance, a contrainformação. Acho importante que haja interdisciplinaridade, porque não tem como fazer um documentário sem associar a fenomenologia, à antropologia, à filosofia, à própria vida em si.


“Dizem que precisamos resgatar a humanidade, mas a humanidade é o problema. Ainda bem que o cachorro não é humano, que os animais não são humanos, porque os humanos são o problema. Temos que sair desse teocentrismo e desse antropocentrismo, parar de nos acharmos o centro do universo”

Em relação ao meu trabalho, gosto muito do conceito de cinema-espelho. Busco muito falar sobre aquilo que diz respeito a mim, à minha realidade, e que a minha realidade vê em mim. Tematicamente, escolho sempre temas muito importantes para mim e para minha comunidade, porque muitas vezes os projetos podem levar até cinco anos para se concretizarem, então precisam ser temas de vida.

E o que vem agora? Chegou a hora de produzir longa-metragens?
Eu trabalho simultaneamente em sete projetos de longa metragens, cada um em uma etapa diferente. Entre os documentários, um é co-produção entre mim e dois diretores negros, uma encomenda sobre as 17 metas de desenvolvimento sustentável da ONU. Filmamos cinco personagens que já alcançaram, através de ações simples, os objetivos propostos para 2030. Tem também uma co-direção com a moçambiquenha Lara Santos, que estudou comigo em Cuba, em que eu vou até Maputo e ela vem até a Bahia, fazendo um retrato cruzado de duas mulheres negras viajantes na tentativa de compreender o que é ser africana e afrodescendente na contemporaneidade.

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Ao mesmo tempo, estou produzindo meu primeiro longa de ficção, cuja história se baseia em um mito nascido em Calabar, na Nigéria, há 3.500 anos. Reconto esse mito mudando o caráter da personagem, o que leva a uma alteração do destino dela que faz com que ela não morra, aparecendo na atualidade na Bahia. Acho importante voltar para os mitos do passado, porque muito da contemporaneidade, dos problemas sociais, está cravado nessas mitologias de origem.

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(A Gente Acaba Aqui/Divulgação)

As temáticas da morte, da tranquilidade, da calmaria, de um lugar além daqui, se tornam mais próximos de olhares para a diáspora e principalmente para o racismo sistemático que vivemos no Brasil, uma situação agravada com a pandemia da covid-19?
Com certeza. Começa com a relação completamente contraditória com a natureza já há bastante tempo, que faz com que tenhamos essas doenças. Enquanto não melhorarmos nossa relação com a natureza… Não só exterior ao nosso corpo, como também nosso interior, a natureza humana, que é a pior possível… Dizem que precisamos resgatar a humanidade, mas a humanidade é o problema. Ainda bem que o cachorro não é humano, que os animais não são humanos, porque os humanos são o problema. Temos que sair desse teocentrismo e desse antropocentrismo, parar de nos acharmos o centro do universo.

Também, é uma doença com marcação social. Surgiu nas camadas mais endinheiradas, mas chegou em nós, pobre, negros, a partir das empregadas domésticas. É bem interessante de se observar isso, e como isso coincide com esse governo, com esse projeto de morte e de genocídio deliberados. Nada melhor do que matar idosos e melhorar a previdência… É uma doença que exige isolamento, e por isso afeta lugares como as favelas, onde há mais sujeira, menos saneamento básico, mais pessoas vivendo dentro de uma mesma casa. Notadamente, se deixa que a doença se expanda, porque é uma possibilidade de extinguir parte da população que está pleiteando espaços sociais, culturais, afirmativos

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(A Gente Acaba Aqui/Divulgação)
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Uma reportagem recente colocou atores e diretores tidos como de direita reclamando da gestão Mario Frias à frente da cultura brasileira. Como tem sido sua experiência como cineasta nos últimos anos no que diz respeito à Ancine, aos programas de financiamento e fomento intelectual, e ao circuito cultural como um todo no país?
Existia um bolo, e esse bolo sempre foi fatiado, e nós nunca comemos essa fatia. Nunca vi nenhum cineasta branco pleitear por espaço. Estava todo mundo comendo sua fatia, achando que estava simbolicamente os negros e os indígenas fazendo “cinema nacional” ou “cinema brasileiro”, sendo que grande parte dessa população brasileira jamais conseguiu representar, ao mesmo tempo que nunca teve espaço para reflexão dos brancos de que há espaço para todos, e que o outro não está tomando seu espaço. Então, de repente, o branco tirou do branco. Agora não é para ninguém.

A gente era independente, tinha MEI ou produtora pequena, nunca comeu uma fatia do bolo. O bolo foi embora e para nós continuou na mesma. Conseguimos fazer desde a guerrilha. Mas, agora, as produtoras perderam parte de suas fatias. Não chegaram ao nosso patamar, mas sentiram dificuldade, porque sempre trabalharam com muito dinheiro, e agora não sabem o que fazer com pouco orçamento.

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(A Gente Acaba Aqui/Divulgação)

Ainda bem que tivemos esses 12 anos de PT, que fez com que mudássemos um pouco as estruturas do mercado, além da saturação do cinema brasileiro tradicional. Ninguém aguenta mais as mesmas histórias, o mesmo tipo de representação. Nós, negros, conseguimos nos fortalecer no cinema nacional, os indígenas também.

Vejo que é um momento bom pra todos mundo repensar esses espaços e orçamentos, entender que tem espaço para todos, que precisa fatiar melhor esse bolo. Acho que a lei Aldir Blanc veio um pouco para isso, para a gente entender como fracionar um pouquinho de dinheiro para cada um.

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