Ícaro Silva tem os pés no chão e a cabeça nas estrelas

Aos 35 anos, o ator lembra as dificuldades da infância, o apoio incansável de sua mãe para fazer teledramaturgia e o legado que deseja criar com a carreira

por Humberto Maruchel Atualizado em 8 set 2022, 10h58 - Publicado em 24 ago 2022 06h00
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(Clube Lambada/Ilustração)

uando chegou o momento de escolher o nome do filho, seu Zedequias, um homem com 35 anos, lembrou do personagem principal de um de seus mitos preferidos: o voo de Ícaro. 

No início da fábula da mitologia grega, Ícaro e seu pai, o arquiteto Dedalo, estão presos em um labirinto, na Ilha de Creta. Para garantir a fuga dos dois, Dedalo cria asas de cera de abelha e penas de gaivotas. Antes de partirem, o pai alerta: “Não se aproxime muito do Sol”. Porém, quando Ícaro finalmente sente o prazer da liberdade ao voar, ele se permite sonhar mais alto. Suas asas, no entanto, não eram feitas para suportar alta temperatura. Ouvindo os próprios devaneios, Ícaro esquece das palavras de seu pai e se aproxima cada vez mais do Sol, o que acaba lhe custando a vida.

Quase como uma profecia, os anos passaram e o filho, esse da realidade, puxou algumas características daquele herói trágico. É provável que Zedequias não soubesse ali, mas um dia seu filho, Ícaro Silva, se tornaria um grande sonhador. 

Atualmente, é Ícaro que celebra as 35 voltas ao redor do Sol. Com os pés totalmente fincados no chão, a cabeça erguida e o coração tranquilo, o ator recorda sua versão mais nova: um menino criado na periferia de Diadema, município da Grande São Paulo, que teve de viver em meio a muitas dificuldades. 

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Por outro lado, havia abundância afetiva. Dona Jô, sua mãe, e seu Zedequias deram amor suficiente para que os dois filhos, Ícaro e Martha, tivessem em reserva na vida adulta. E os incentivaram a sonhar tão alto quanto quisessem. Isso fez toda a diferença na vida de Ícaro. 

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(Pedro Pinho/Fotografia)

Ícaro Silva: modo de fazer

A matéria que alimentava os sonhos de Ícaro eram os livros. O pai, que trabalhava como segurança em uma biblioteca pública, levava obras de diferentes gêneros para o jovem ao fim de cada expediente. O incentivo permitiu que Ícaro aprendesse a ler e escrever aos 4 anos. Com apenas 8 tinha seu primeiro livro publicado: “Três historinhas de Ícaro Silva”. Nos anos seguintes, vieram mais dois: “O Peixe Dourado” (1996) e “Aventuras de Geva” (1998). 

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Até que um dia participou do programa de Silvia Poppovic, e nele falou sobre suas obras. Dona Jô guardou uma frase que ouviu da apresentadora quase como um juramento feito a si mesma: “Ícaro deveria fazer televisão”, sugeriu Silvia. E a mãe acreditou. “Eu reconheço a grandiosidade da minha mãe que, com o seu salário de faxineira, morando na periferia, decidiu que os filhos dela tinham, sim, a capacidade de realizar os próprios sonhos e ela venceu.”

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Depois daquilo, foram vários telefonemas e visitas em produtoras, participação em testes e muitas andanças por São Paulo. A estação Clínicas, próximo ao Jardim Paulista, parecia ser a etapa final de um sonho para o menino. Dona Jô estava determinada. E logo o jovem foi notado. Em 1998 participou da primeira novela, Meu pé de laranja-lima, na Band. 


“Eu reconheço a grandiosidade da minha mãe que, com o seu salário de faxineira, morando na periferia, decidiu que os filhos dela tinham, sim, a capacidade de realizar os próprios sonhos e ela venceu”

Nos anos seguintes amadureceu na teledramaturgia. Entre 2004 e 2007 se destacou em Malhação. Fez cinema e séries, entre elas Coisa mais linda, da Netflix. Além da atuação, a música também se tornou uma constante: dublou Simba na adaptação de O Rei Leão (Disney) e fez alguns musicais, como Rock in Rio – O Musical e Elis, a Musical. E trabalhou também na concepção – além de estrelar –, ao lado do diretor Pedro Brício, no show musical Ícaro and the Black Stars. Nele, vive o comandante de uma nave espacial que viaja pela galáxia levando música e cultura preta. 

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“Sinto que esse espetáculo faz muito bem para as pessoas que assistem porque ele é muito leve e muito feliz. Ele é realmente para encher o coração de alegria através de cultura preta e música negra. Costumo dizer que se querem saber quem eu sou, precisam assistir Ícaro and the Black Stars”, afirma.

Por fim, hoje interpreta o vilão Leonardo na novela Cara e coragem, da TV Globo, e estreou a peça Namíbia, Não! em Salvador, sob direção de Lázaro Ramos. Com jeito descontraído, com uma fala carregada de entusiasmo, o ator falou longamente sobre família, carreira e sexualidade. 

O coração da entrevista, no entanto, parece ser dona Jô, sua heroína particular. Se do pai herdou a curiosidade pelas letras, da matriarca puxou uma sabedoria do dia a dia, a eloquência e o espírito de liderança. E demonstra uma visão inigualável de enxergar adiante, capaz de entender o próprio labirinto. Muito além disso, confia no próprio voo. Com a palavra, Ícaro Silva:

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(Pedro Pinho/Fotografia)
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Ícaro, muito obrigado pela sua disponibilidade. Como anda sua rotina com as gravações?
A novela tem um tempo de produção bastante ágil e já faço isso há muito tempo. Minha primeira foi com 10 anos, então já estou acostumado, mas é claro que tem um fator extra que é esse personagem. É a primeira vez que faço um personagem desse tamanho, então tenho gravado bastante.

Por favor, não diga que hoje seria o seu dia de descanso.
Não, ainda filmamos à noite. Não sei se a palavra ‘workaholic’ combina comigo, mas, ao mesmo tempo, gosto bastante de trabalhar e do meu trabalho, então vou dizendo ‘sim’ sempre. Digo isso porque eu teria esse fim de semana de descanso, mas vou estrear uma peça em Salvador e estou indo para lá ensaiar. Eu mesmo fico ‘boicotando’ meu descanso até porque a vida é curta e a vontade é muita. 

Mas você reserva um período de descanso ou é difícil conseguir parar?
Por mais que eu seja um funcionário da TV Globo nesse momento e tenha vários outros trabalhos, sou muito responsável pelo giro da minha máquina. Sou a pessoa que está no leme do barco. Como diria o Emicida, eu sou o único representante do meu sonho na Terra. Então, geralmente descanso por períodos curtos porque estou sempre com a cabeça lá na frente, pensando e planejando.

A TV tem uma dinâmica muito acelerada. Como vocês, artistas, conseguem se colocar num lugar de prontidão, de adaptar as emoções sem saber ao certo de onde esse personagem está vindo ou está indo?
Na novela, temos continuístas, que são profissionais responsáveis pela continuidade, pessoas que estão muito atentas e conseguem conectar essas partes soltas para fazer o todo. Muitas vezes, são elas que nos orientam. Mas, embora tenha que haver esse estudo, acredito que em qualquer produção cênica a coisa mais forte é o jogo com os outros atores. Penso a criação em novela muito a partir do outro, porque a gente não ensaia por muitos dias, como no teatro. Na novela, trabalhamos individualmente. Eu tenho o meu roteiro, cada um tem o próprio capítulo e a gente já chega para fazer, então é muito importante que o jogo esteja vivo,  que você esteja contracenando com pessoas dispostas a jogar. E eu tenho uma sorte enorme nesse sentido porque eu estou contracenando com a Mel Lisboa, Taís Araújo, Cláudia de Moura, todas muito dispostas para o jogo cênico.

No Arquivo Confidencial, no antigo programa do Faustão, tem uma fala sua muito bonita em que ressalta a importância de cuidar do seu nome. Como é isso?
Acredito que estava falando sobre os ensinamentos da minha mãe. Como uma criança de periferia, para minha mãe, sempre foi uma questão muito grande não manchar seu nome, cuidar da sua reputação. Ela dizia que a única coisa que o pobre tem é o nome. E ser respeitado não significa agradar a todo mundo, muitas vezes é o oposto, significa desagradar muita gente para que você se mantenha fiel a quem você é e ao que você acredita. Tenho orgulho do meu caminho até aqui com meu nome.

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E você tem um nome muito especial, de muita responsabilidade. Tem, de fato, a ver com o mito de Ícaro?
Totalmente. Meu pai adora mitologia grega, que é uma coisa que eu também adoro. O Ícaro é um sonhador e um realizador também. Ele realiza o sonho dele através do pai. É um sonhador que vai até o limite do sonho. E acho isso belíssimo nesse conto, apesar da tragédia. Enxergo a queda de Ícaro muito mais como uma ascensão. 

E amo esse contraste do Ícaro com o Silva. Isso me define muito bem, tem uma megalomania onírica, a minha capacidade muito grande de sonhar, mas sem perder pé do chão. Além disso, é carregado dessa simplicidade que remete a história do Silva no Brasil. Faz tempo que eu não digo isso, mas a minha vida é pé no chão e a cabeça nas nuvens.

Vejo o quanto eu me identifico, na minha trajetória, com as associações que são feitas nesse mito. O Emicida, na música Ismália, diz assim: “Olhei no espelho, Ícaro me encarou: Cuidado, não voa tão perto do sol. Eles num guenta te ver livre. Imagina te ver rei”. Essa frase “eles não guenta te ver livre, imagina te ver rei” tem me acompanhado com muita força, principalmente nos últimos meses em que eu tive várias demonstrações de como o sistema se reorganiza inteiro para que corpos dissidentes não possam brilhar. Mas é outro momento e outro sistema se reorganiza para exaltar os seus. 

Apesar de todo o ódio reinante no nosso país, de toda a divisão, vejo com muita esperança a ascensão dos sonhadores, dos pretos, das mulheres, dos viados e de todos aqueles que devem chegar ao poder para que algo evolua na nossa sociedade.

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“Apesar de todo o ódio reinante no nosso país, vejo com muita esperança a ascensão dos sonhadores, dos pretos, das mulheres, dos viados e de todos aqueles que devem chegar ao poder para que algo evolua na nossa sociedade”

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(Pedro Pinho/Fotografia)

Na sua trajetória, tudo indica que a influência das letras, da palavra escrita, veio mais do seu pai e a oralidade veio mais da sua mãe. É possível rastrear esses genes?
Acho que você está fazendo isso agora e concordo com você. Meu pai é um grande pensador, ele que introduziu as palavras escritas na minha vida. Ele era segurança de uma biblioteca pública e trazia livros para mim. Aprendi a ler e escrever com quatro anos. Com seis eu estava escrevendo o meu primeiro livro. Os dois são muito responsáveis pela minha vontade de conhecer. 

Já minha mãe é muito comunicativa e tem um tino muito bom para lidar com pessoas. Foi isso que a ajudou a trilhar o caminho dela e que nos ajudou também. A gente veio de uma origem muito simples, uma origem de zero recursos, então foi tudo muito [conquistado] na fala.

Parece que sua história é muito definida pela sua relação com a sua mãe.
Quando eu era criança, ela era minha grande heroína. É uma mulher que trabalhava como faxineira nos seus 30 e poucos anos, que é idade que eu tenho, na periferia de Diadema, que conseguiu chegar até a produção do Fantástico, chegar até na O2 Filmes, porque o filho dela queria ser artista. Minha mãe fez tudo e foi descobrindo os caminhos sozinha. 

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Eu exalto muito a inteligência da minha mãe. A gente costuma relacionar a inteligência à cultura, ao conhecimento, ao estudo, à capacidade de resolver questões. Mas existe uma inteligência cotidiana, tátil, que só se adquire vivendo: é a inteligência da experiência. Minha mãe é muito inteligente nesse sentido, então tenho muita gratidão por ela ter enxergado que minha irmã e eu podíamos trilhar caminhos diferentes dos que estavam sendo apontados para elas. Conheci muitas crianças na favela que se perderam no tráfico, na prostituição. Muitas morreram muito cedo. Reconheço a grandiosidade da minha mãe que, com o seu salário de faxineira, morando na periferia, decidiu que os filhos dela tinham, sim, a capacidade de realizar os próprios sonhos.


“Minha mãe trabalhava como faxineira nos seus 30 e poucos anos, a idade que tenho, na periferia de Diadema, que conseguiu chegar até a produção do Fantástico porque o filho dela queria ser artista. Ela fez tudo, descobriu os caminhos sozinha”

Ainda pequeno, você tinha uma relação muito forte com a literatura, mas acabou trilhando o caminho das artes cênicas. O que te atraiu para esse universo?
De novo, minha mãe. Acho que ela percebeu em mim uma capacidade de se comunicar, de se expressar artisticamente. Minha mãe tem alma e coração de artista, ela acredita na criação de universos novos e arte é sobre isso, sobre criar realidades novas. 

Lembro que o primeiro comercial que eu fiz foi para Pepsi, em 1998, com o jogador Roberto Carlos, e eu fiquei muito fascinado porque eu já era essa criança sonhadora, que brincava construindo coisas, inventando cenários, inventando naves espaciais. Era sempre muito romântico, muito dramático. Quando fui fazer esse comercial, vi a galera do audiovisual fazendo a mesma coisa que eu fazia brincando, mas como um trabalho. Essa possibilidade da criação de novas realidades me encantou. Eu já tinha isso com os livros, mas muito internalizado. Sabia que o livro era um universo interno, que você podia viver ali uma realidade dentro da sua cabeça, mas ali era como se eu dividisse uma coisa da minha cabeça para a sua.

Mas a escrita ainda é presente, escrevo o tempo todo, sou muito crítico e muito chato para dividir porque eu quero ser impecável, quero ser genial e sofro dessa idiotice, que é essa síndrome do genial.

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Conhecendo a sua história, te escutando e vendo mais como é o seu jeito de lidar com as coisas, você passa a impressão de ser alguém que qualquer pessoa gostaria de ter perto diante de um apocalipse, pois parece que você consegue se manter muito pragmático e objetivo mesmo em uma realidade caótica.
Isso também vem da minha mãe. Essa capacidade de se reorganizar diante do caos. Ela viveu muito isso. Você tem que entrevistar ela, tem uma história de filme. Falo para minha irmã que a gente é coadjuvante da história da nossa mãe. Ela saiu de casa no Agreste de Pernambuco, e foi para São Paulo sozinha com 19 anos. Teve filhos, a minha irmã foi roubada pela família da minha mãe e ela teve que juntar dinheiro para conseguir resgatá-la. Fora isso, ela sempre soube lidar muito bem com meu pai, que era uma figura bastante controversa, uma figura bem típica dessa masculinidade brasileira.

E como ele é atualmente?
Meu pai é realmente fechado, muito dentro de si. Ele tem 70 anos e me teve com a idade que eu tenho hoje. Vez ou outra me pego investigando a sensibilidade dele. No último fim de semana, sugeri de compormos juntos. E aí ele, minha mãe e eu começamos a compor uma música para falar do cosmos, que eu sei que é um assunto que dá um gatilho nele, porque meu pai ama Física Quântica, Mecânica. Começamos a falar de ondas e fomos ver o que é onda no Google. E morremos de rir quando vimos que ondas são perturbações. Com a idade, acho que você relaxa um pouco mais. Ele é um homem muito sensível e, ao mesmo tempo, atravessado de todas essas travas, que como homem a gente vive naturalmente, sendo heterossexual, sendo gay, sendo bissexual.

Tudo bem para você entrarmos no assunto sexualidade?
Sim. Eu relaciono essa coisa de masculinidade, de sexualidade, muito com a minha mãe. Acho que ela foi aquela mãe que acolheu e respeitou o filho viado. A gente, que cresceu no fim dos anos 80 e início dos anos 90, vendo muitas coisas queer na TV, tipo He-Man, sabe? Não tem nada mais viado do que o He-Man. A gente podia assistir, mas não podia falar disso. 

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(Pedro Pinho/Fotografia)

E você chegou a falar com eles sobre a sua sexualidade?
Com o meu pai, dei uma super chave nele quando disse “Pai, eu gosto de mulheres e homens”. Ele respondeu “Como assim? Isso não pode ser, isso está muito errado”. E eu respondi com uma pergunta: “Sabe quem acha isso errado? Quem você batalhou a vida inteira: a igreja”. Meu pai sempre foi um grande militante contra a igreja. Já minha mãe era muito cristã, e sempre trouxe muitos dogmas da Igreja Católica para dentro de casa  – e ele era a pessoa que combatia isso, dizendo que Deus era o cosmos.

Foi aí que eu perguntei: “Você acredita nesse Deus da Igreja Católica?” Quando ele disse que não, falei: “Você acha que existe alguma coisa imperfeita nas criações do cosmos? Você acha que a minha sexualidade, tal como é, não pode ser perfeita?” E ele só respondeu “Tudo bem”, e acabou a conversa. Com o meu último namorado, eu apresentei ao meu pai, e ele agiu normalmente. 

“Perguntei para o meu pai: ‘Você acredita nesse Deus da Igreja Católica?’ Quando ele disse que não, falei: ‘Você acha que existe alguma coisa imperfeita nas criações do cosmos? Que a minha sexualidade, tal como é, não pode ser perfeita?’ E ele só respondeu ‘Tudo bem'”

E sua mãe como reagiu?
Com a minha mãe foi bem antes, na época da faculdade. E ela ficou muito tempo com um pé atrás e eu entendi por quê. Ela tinha esse medo que as mães têm da sociedade, de que o filho vai ser atacado, vai ser preterido, vai ser assassinado porque é isso que acontece com as pessoas LGBTQIA+ no Brasil. Existe uma autorização social para agressão nesses tempos em que vivemos. Essa autorização de violência é dada pelo presidente, então eu entendo a preocupação dela, mas, ao mesmo tempo, deixei explícito para ela que sou muito mais feliz sendo absolutamente tudo que sou e não escondendo.

Pôde vivê-la, então, sem travas?
Por muito tempo pensei que a minha sexualidade fosse atrapalhar minha carreira, mas a minha carreira já estava sendo atrapalhada pela minha etnia, pela minha cor, pela minha raça. A minha carreira já tinha um fator limitante, então falei “Mano, vou ser livre, vou ser quem eu sou”.

Mas é engraçado, ainda estou descobrindo. Quando estava experimentando  minha sexualidade, comecei a vê-la por um viés extremamente gay, branco e normativo. As primeiras festas que fui eram sempre lugares brancos e normativos que passei a perceber que não eram o meu mundo e nada tinham a ver comigo. E fui entendendo que cultura, sexualidade e afetividade para meninos pretos, mesmo sendo viado, vai ser diferente. Tem fatores sociais que vão te colocar nesse lugar.

A Audre Lorde fala disso, que não existe uma hierarquia de opressão. Na comunidade negra, ela era uma mulher lésbica. Na comunidade lésbica, ela era uma mulher negra e dentro da comunidade gay, ela era uma mulher. Então existem todas essas intersecções que você vai descobrindo sobre quem você é e que não necessariamente vão estar livre de preconceitos. E é justamente elas que vão te fazer de um jeito ou de outro.

Hoje, como você fala sobre sua sexualidade para as pessoas?
Gosto de falar viado ou bicha logo de cara, porque eu acho que a bicha não está ligada necessariamente à sexualidade. A bicha está ligada a feminilidade. Você é chamado de bicha muito antes de entender qualquer coisa sobre sexualidade. Você é chamado de bicha porque o seu feminino extravasa e isso é socialmente não aceito. Então, hoje, gosto de dizer “eu sou bicha” porque o feminino que há em mim extravasa mesmo.

Eu sou um homem feminino, os meus personagens são homens femininos, os trabalhos que eu vou fazer falam do feminino que há em mim. Eu não fico tentando achatá-lo como já tentei. Acho que a minha sexualidade tem muito a ver com me desamarrar das concepções machistas.

Gosto de ser chamado sexualmente livre porque gosto de observar como a minha sexualidade se comporta a cada encontro. E, diante da libertação afetiva e sexual de tantas outras pessoas, a gente vai descobrindo novas afetividades. Minha cabeça continua sendo suficientemente curiosa e generosa para entender o mundo e para não definir nada, exceto que não sou heterossexual.


“Gosto de ser chamado sexualmente livre porque gosto de observar e entender como minha sexualidade se comporta a cada encontro. Minha cabeça continua sendo suficientemente curiosa e generosa para entender o mundo e para não definir nada, exceto que não sou heterossexual”

Tem um momento da sua carreira que você ganhou muita atenção, quando performou como Beyoncé no Show dos Famosos. Houve especulação da sua vida pessoal? Como a mídia reagiu?
Aos 8 anos, já tinha um livro publicado. Aos 11, estava fazendo novela. Aos 13, me torno comendador pelo estado de São Paulo. Tem um monte de coisa super interessante para pontuar na carreira de um artista, mas a primeira coisa que foram atrás quando eu performei como Beyoncé no Faustão era sobre a minha sexualidade. Foram atrás de outras fotos minhas montado de drag-queen ou fotos com algum menino. É esse desejo em saber da minha vida pessoal, da minha persona no meu dia a dia.

Lembro que eu ficava respondendo às pessoas, discutindo – hoje, não discuto mais porque, para mim, está muito dado que sou um corpo dissidente. Não importa quanto a gente esteja avançando nas causas, ainda assim nós somos um sistema extremamente excludente, então o que houver para desestabilizar e descredibilizar um corpo dissidente vai ser feito. Dá muito mais engajamento, muito mais mídia, fragilizar ou mostrar a tragédia de um corpo como esse, do que exaltar e mostrar glória.

Fui meritocrata por muito tempo, até meus 20 e poucos anos. Eu dizia “Se eu for muito talentoso, se tiver a capacidade, vou chegar lá”, mas não é sobre isso não. O sistema está de fato estruturado para nos derrubar, para não nos deixar chegar lá e eu vi isso agora com todas as letras. A verdade se revelou diante dos meus olhos e foi dolorido.

Sobre as mensagens com o Tiago Leifert, como você amadureceu esse episódio?
Apesar de tudo, aconteceu uma coisa muito bonita dessa treta que teve no fim do ano passado. Por mais que eu tenha ganhado muitos haters, muitos mesmo, tive o apoio de muitas pessoas, que estavam ligadas no que eu estava falando e que se identificaram. Vejo que me conecto com as pessoas afetivamente. 

E tem uma lição que eu aprendi a duras penas, mas que eu gosto muito: se você estiver agradando todo mundo, alguma coisa está errada, alguma coisa no seu agir, no seu pensar, ainda mais em um momento como esse.

Mas gostaria de nunca ter tuitado para não gerar esse inferno todo. Ao mesmo tempo, aquele tuíte não tem tanto a ver assim com o Big Brother. Quando eu falo em entretenimento medíocre, as pessoas pensam que eu estou falando só do Big Brother, estou falando dessa organização midiática que se baseia em falar da vida das pessoas. Big Brother entra nisso. Ele é prejudicial para minha carreira, para várias carreiras, nesse lugar midiático, da hiperexposição da vida das pessoas.

E aquele tuíte já era uma resposta a tudo isso. Há um tempo, antes dessa situação, saiu uma matéria dizendo que eu fui ao Hospital Barra D’Or, na Barra da Tijuca, fazer exames preliminares para entrar no Big Brother e que estava passando por exames psicológicos. Isso me deu muita raiva porque era fake news autorizada. 

Como assim, fake news autorizada?
Para você cavar uma matéria falando sobre o seu show, sobre algum trabalho ou filme é muito difícil. Aí o maluco vem e inventa uma dessas. Do jeito que o Brasil funciona, até você provar que não é verdade, as pessoas já têm certeza. 

Existe uma autorização de fake news com a nossa carreira. Você vai ver sempre as mulheres, os pretos e os viados sendo atacados, você não vai ver essa matéria saindo sobre um heterossexual branco, não vai ter.

Vê se vão falar que o Chay Suede está fazendo isso, que o Caio Castro, Gabriel Leone, vê se todos jovens brancos e heterossexuais no mesmo lugar de carreira que eu, são apontados. Eles não são colocados nesse lugar. Então, aquele tuíte já vem muito inflamado, com muita raiva. Acredito que muitas pessoas entenderam o que eu estava falando e muitas outras, não, e escolheram me colocar como arrogante, soberbo.

O que mais te incomodou nessa história toda?
Veja, não tenho problema nenhum em ser visto como uma pessoa que vai entrar no Big Brother, mas há dois anos estou escalado para a novela que estou fazendo hoje, isso já estava na imprensa. Então, querendo ou não, quando o cara faz isso, quando ele fica me colocando no lugar que não depende do meu talento, ele está atacando meu talento e minha profissão.

Quando aconteceu tudo isso, eu estava fazendo Verdade Secretas, ia fazer outra novela em seguida, o que é super raro. Estou entrando nesse lugar da minha carreira de fazer um trabalho e já ter outro. Isso é muito bonito de viver. Por isso que falo, respeita minha história, respeita o que estou fazendo. Não estou dizendo que minha história é foda ou melhor do que a de todo mundo, mas respeita o que estou fazendo.

Você mencionou o próximo projeto. O que dá para adiantar sobre ele?
Ele é bastante queer, exploro justamente mais essa afetividade e sexualidade. Não sei o que as pessoas vão achar. Mas fala também sobre a capacidade de tocar as pessoas com a música e como ela pode transportar uma vida inteira. Afinal, é a forma artística mais direta e pungente para tocar alguém – e descobri isso fazendo Ícaro and the Black Stars.

A música está conversando comigo há muito tempo em todas as coisas que eu faço e tenho me sentido cada vez mais impelido a trabalhar com ela, justamente porque sinto a necessidade de falar mais com as pessoas.

Uma última pergunta: olhando para tudo que já viveu, o que significa felicidade para você?
Isso já foi diferente, e acho que vai mudar, mas felicidade para mim nesse momento é ter a minha criança interior em paz. É ver que consegui realizar todos os sonhos do Ícaro de 8 anos. Isso me deixa muito feliz, muito tranquilo, não só por saber que existe a possibilidade de realizações numa vida, para uma pessoa que esteve tantas vezes à margem. E falo isso de mim, mas também de todo mundo que está à margem. Eu me coloco e coloco minha família como exemplos. 

Fui uma criança que sentia muito a dor e ainda sou uma pessoa muito sensível. Os jovens místicos: tem a ver com meu signo de peixes. Era muito atravessado pelas dores do mundo. Então, hoje é isso: eu olho para o Ícaro de 8 anos e eu consegui acalmá-lo. Consegui realizar os sonhos dele.

Nesse episódio do Arquivo Confidencial passa uma matéria que fiz no Fantástico, quando eu tinha 8 anos, que foi no lugar que desabou e a gente teve que sair da favela de onde a gente morava. Eu vejo os sonhos daquele Ícaro, e eles eram tão simples, mas que significavam tanto para ele. Eu dizia que queria uma casa que tivesse um espaço reservado para nossa cachorra, a Kate, e que tivesse também uma lareira. Felicidade para mim hoje é saber que o Ícaro criança pode ficar em paz.

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