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Ingrid Silva e a sapatilha que mudou a vida dela

Maior bailarina brasileira hoje lança biografia e luta para incluir a maternidade e as mulheres negras dentro de uma expressão artística tão conservadora

por Wendia Machado Atualizado em 27 set 2021, 12h10 - Publicado em 27 set 2021 10h12
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(Clube Lambada/Ilustração)

primeira vez que Ingrid Silva e eu sentamos para bater um papo foi em 2018. Falávamos da primeira década dela morando em Nova York enquanto Frida Kahlo, sua bulldog francesa, ensaiava cochilar no meu colo. Mal sabíamos que a pandemia já estava a caminho, assim como o Black Lives Matter. A ideia da biografia estava lá longe, ela tinha (e ainda tem) uma preocupação constante com o impacto de sua figura pública para a mulher, para a comunidade negra e para as crianças que a assistem romper as barreiras do balé tradicional no mundo. Daí, o ano de 2020 aconteceu e, com ele, o coronavírus, o movimento negro reivindicando o fim da violência sistemática, as estruturas extremistas e conservadoras no poder nações afora.

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Com a pandemia, a gente envelheceu uma década dentro de um ano. E o ano ainda não acabou. Estamos caminhando a passos largos para o final de 2021, mas 2020 parece nunca ter ido embora. No entanto, nem tudo foi só tempestade, teve flores também. A sapatilha de bailarina que a Ingrid pintava há anos, pois não haviam sapatilhas de balé na cor da pele negra, foi adicionada ao acervo do Museu Nacional de Arte Afro-Americana Smithsonian, em Washington D.C. Nasceu a tão esperada vacina contra o coronavírus. Nasceu a tão esperada Laura, primogênita da bailarina. O livro de Ingrid Silva, escrito por ela mesma, narra a própria história enquanto ela ainda acontece. Dentro do ritmo frenético dos últimos acontecimentos no mundo, Ingrid faz história com as artes e inspira milhares de pessoas com sua trajetória. Através da Globo Livros, A sapatilha que mudou meu mundo foi lançado no último dia 27 de agosto.

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(Laura Yost/Fotografia)

Do flertar com as suas anotações até a decisão de escrever o livro, conta pra gente como surgiu a ideia da biografia?
Eu sempre escrevi, então foi tudo muito orgânico. Meu agente me perguntou se eu não queria escrever um livro e foi quando descobri que estava grávida. Ali, pensei: ‘não há hora melhor para escrever esse livro senão agora, que eu estou com tempo.’ Então escrevi durante toda a minha gestação. Descobri várias agendas com diversas histórias que ficaram de fora, mas que gostaria de ter incluído. O mais legal é que essas histórias não foram esquecidas, ficaram registradas nessas agendas antigas. Até brinquei com o meu editor dizendo que “vamos ter que fazer o Ingrid Silva Vol. II”. Daí a Laura nasceu e fiquei três meses sem escrever, o que considero muito difícil para quem escreve, porque perde-se o fluxo da escrita. Escrever o livro foi uma jornada muito intensa para mim, ao ponto de eu achar que não conseguiria terminar, porque foi bem difícil depois que a Laura nasceu.

Esse livro veio para trazer para as pessoas um pouco mais de visibilidade nas artes. Ele não conta somente a minha história, conta também a história das artes, do ballet clássico. É importante que as pessoas aprendam um pouco mais sobre esse tipo de arte e como ela é transformadora na vida de muitas pessoas e como ela foi transformadora na minha vida.

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(Angela Zaremba/Fotografia)

O ballet clássico é unanimemente branco e o seu trabalho quebra esse paradigma ao trazer diversidade para essa modalidade na dança. Pensando nisso, com quem você conversa no seu livro e qual é a mensagem desta obra?
Esse livro é para todo mundo. Você não precisa ser bailarina, ou mãe ou negra para ler esse livro e isso é o diferencial dele. Eu nunca quis nichar muito a minha história porque ela é múltipla. Eu nunca quis ser só bailarina, ou só escritora ou só ativista. A cada dia que passa, eu me descubro uma pessoa que evolui através das minhas experiências e histórias de vida. Nele, eu conto a minha jornada desde pequena, como eu me via na escola, como foi a minha vinda para Nova York. Tem muitos capítulos do livro que as pessoas vão se identificar, o nosso povo brasileiro que luta, que sonha, mas nem sempre tem oportunidades.

Esse livro vai fazer com que as pessoas reflitam nas suas vidas pessoais. Eu nunca quis escrever um livro de superação, ou um livro que conta mais uma história da menina pobre da comunidade que venceu na vida. O meu livro é um livro de inspiração para que as pessoas saiam de suas zonas de conforto e tomem as rédeas de suas vidas, para que elas não desistam mesmo que obstáculos surjam. Esse é um livro sobre persistência.


“Esse livro é para todo mundo. Você não precisa ser bailarina, ou mãe ou negra para ler esse livro e isso é o diferencial dele. Eu nunca quis nichar muito a minha história porque ela é múltipla. Eu nunca quis ser só bailarina, ou só escritora ou só ativista”

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(Thalita Ramos/Fotografia)
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Pode-se dizer então que o livro da Ingrid Silva vai de encontro ao clichê? Não devemos esperar uma biografia como as outras?
Se a gente pensar em escrever biografias como uma receita de bolo pronta, esse livro é, no caso, uma receita inversa. Ele vai fazer as pessoas se perguntarem várias coisas. Ele vai provocar diálogos, não apenas em quem está lendo, mas vai fazer com que essas pessoas iniciem diálogos dentro de suas casas. Eu não quis escrever um livro no qual você já sabe o final da história, até mesmo porque não tem final, eu ainda estou viva. Tem muito ainda para contar e isso é muito legal. A gente pode ser dono da nossa própria história e narrá-la à nossa maneira.

Como a causa negra é abordada em seu livro?
Essa é uma reflexão muito importante que precisamos trazer para as pessoas. Quando o BLM, juntamente com outros movimentos no Brasil, aconteceram, todo mundo decidiu botar para fora o que sentia. Aquilo foi apenas uma fração do que já acontece no cotidiano de quem é negro. Às vezes, basta ter o cabelo encaracolado ou ser um pouco mais escuro para sentir na pele. Inclusive, tem ambientes onde a gente não é branco nem negro porque ou você é muito claro para os negros-escuros ou você é muito muito escuro para os brancos. Quem vive isso, já vive isso há muitos anos.

Quando esses movimentos vieram à tona aqui (em NY), a revolta dentro da comunidade negra foi muito grande, mas também fora dela.
Eu lembro de estar em passeatas onde eu via muita diversidade e isso é muito importante. Não adianta ter amigos ao seu lado se eles não botarem a mão na massa, se eles não olharem à própria volta e se questionarem o porquê de eles não terem amigos negros ou, dentro de seus ambientes de trabalho, não haver pessoas negras trabalhando.

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Eu lembro de estar em um restaurante caro e as pessoas olharem para mim como se eu não pertencesse ali. Essas pessoas estão acostumadas a ver a gente ocupar esses espaços como serventes, não clientes. Essas histórias são reais na vida de todas as pessoas negras. O meu livro conta a minha experiência como mulher negra brasileira e as experiências de quando eu vim morar em Nova York, assim como a minha experiência na dança, que foi muito diferente, porque quem não vive aquilo, não vai saber. É vital ter empatia para entender a causa do próximo. Tem um capítulo que, eu acredito, vai trazer muitos questionamentos, pois eu falo sobre o meu cabelo e as transformações que ele trouxe. Sem querer dar spoilers, mas eu conto uma história muito intensa onde, às vezes, a gente não vê que o nosso cabelo faz a diferença pois ele abre caminhos para que nós vejamos as coisas sob uma outra ótica, para que a gente se empodere.

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(Angela Zaremba/Fotografia)

Qual foi a parte mais difícil de escrever esse livro?
O mais difícil para mim foi reviver os traumas da minha vida à medida em que eu escrevia. E, mais importante, escrever sobre esses traumas sem traumatizar as pessoas, eu acredito ter chegado em um momento da minha vida no qual eu consigo verbalizar essas experiências. Tem momentos na nossa memória que a gente apaga para se proteger e reviver alguns desses traumas foi bem difícil, mas escrever esse livro foi uma terapia comigo mesma.


“O meu livro conta a minha experiência como mulher negra brasileira e as experiências de quando eu vim morar em Nova Iorque, assim como a minha experiência na dança, que foi muito diferente, porque quem não vive aquilo, não vai saber. É vital ter empatia para entender a causa do próximo”

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(Globo Livros/Divulgação)
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Teve uma parte fácil nesse processo de escrita?
Sim, foi o capítulo da Frida. Narrar a minha história com ela foi o capítulo mais bonito e mais intenso que escrevi. Chegou um momento em que me empolguei tanto com a escrita que, quando me dei conta, o capítulo estava pronto. Foi muito emocionante, me trouxe boas memórias falar da Frida e da importância dela na minha vida.

A Ingrid da vida real está inteira nesse livro ou vamos ter que esperar um Vol. II?
[risos] Agora que já sei a receita inversa desse bolo, posso dizer que o segundo livro será muito intenso. Mas as pessoas certamente vão me conhecer inteira já nesse primeiro livro, porque ele traz muitas coisas que não abordo nas redes sociais.

É importante para a nossa saúde mental que a gente se preserve um pouco no mundo da internet, as pessoas não precisam saber de tudo. Eu me abri para as pessoas nesse livro, através dos meus pensamentos e minhas reflexões. Eu acredito sim que as pessoas vão me conhecer através da minha escrita.

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(Angela Zaremba/Fotografia)

Quando a Laura vai poder ler o teu livro?
Quando ela quiser. Eu não desejo essa pressão sobre a Laura de saber quem é a Ingrid Silva, eu sou só a mãe dela. Quero que ela me conheça sendo a mãe dela. Ela não tem que ser bailarina só porque eu sou. Quero que ela ache o próprio caminho, quero poder inspirar a minha filha assim como inspiro outras crianças. Às vezes, me ocorre um questionamento de “será que eu vou conseguir inspirar a minha filha também?”, mas quero que ela aprenda sobre mim através das experiências que a gente vai viver juntas, aqui dentro da nossa casa, na nossa rotina.

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Conta um pouco para nós sobre a Ingrid-mãe?
A maternidade é muito bacana, mas é também muito profunda e cansativa. E esse é o behind the scenes que as pessoas não veem na internet e eu tento, em alguns momentos no livro, compartilhar com as pessoas. Não é sobre expor a sua vida inteira, mas sobre desmistificar um pouco a vida das redes sociais. A maternidade foi muito desafiadora, especialmente no ballet, porque as companhias de dança não incentivam as mulheres a constituírem família ou a terem filhos, muitos lugares até te mandam embora e é isso que eu estou tentando mudar. Comecei a introduzir a Laura na minha rotina porque esse é um pontapé inicial importante para que o meu ambiente de trabalho também se adeque. Essa iniciativa de incluir a minha maternidade na minha carreira faz com que o nosso espaço entenda as nossas necessidades como mulher. Especialmente hoje em dia, onde a gente, como mulher, quer realizar tantas coisas. É crucial que a gente comece a fazer essa mudança dentro dos ambientes de trabalho.


“A maternidade foi muito desafiadora, especialmente no ballet, porque as companhias de dança não incentivam as mulheres a constituírem família ou a terem filhos, muitos lugares até te mandam embora e é isso que eu estou tentando mudar. Comecei a introduzir a Laura na minha rotina porque esse é um pontapé inicial importante para que o meu ambiente de trabalho também se adeque”

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(Angela Zaremba/Fotografia)

O que você deseja alcançar com esse primeiro livro?
Eu quero muito ser best-seller e fazer história como a primeira bailarina brasileira negra a escrever um livro.

Quem é Ingrid Silva depois de ter escrito essa obra?
Depois de ter parido pela segunda vez. Primeiro, a Laura e agora, o livro, a Ingrid Silva é, certamente, uma outra pessoa. Esse é um livro de histórias reais que pode tocar as pessoas de uma outra forma e eu estou muito empolgada para descobrir o que as pessoas vão achar do livro. Eu estou curiosa para saber o que ele vai despertar no ser humano em geral e como ele pode mexer com as estruturas sociais de hoje.

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