Protagonista de "Os primeiros soldados", sobre o início da Aids no Brasil, o ator fala sobre astrologia, carreira, amor e em quem vai votar nas eleições
por Humberto MaruchelAtualizado em 3 fev 2022, 12h03 - Publicado em
3 fev 2022
00h03
ob a lente da astrologia, o ator Johnny Massaro enfrenta o seu retorno de Saturno. São necessários 29 anos para que o segundo maior planeta do Sistema Solar complete uma volta em torno do Sol. Para os mais céticos, o período é conhecido como a famosa “crise dos 30”. E há poucos dias, no último 20 de janeiro, Johnny chegou na emblemática idade. “Dentro do que poderia ser, acho que a passagem não está tão turbulenta assim.”
Desse tempo, 18 anos foram investidos no exercício da atuação, direção e, inevitavelmente, da produção. Aos 12, estrelou sua primeira novela, Floribella, e nunca mais parou de trabalhar. Na adolescência, pensava que estava perdendo tempo estudando disciplinas que não estavam no seu radar e julgava que já era maduro o suficiente – até mais do que hoje, acrescenta –, por isso decidiu abandonar o colégio. Tinha todo um plano traçado. Completou o ensino supletivo para poder se dedicar ao trabalho e, em seguida, estudou cinema. Foi o primeiro da família a alcançar a faculdade. E foi também o único que pendeu para o caminho da arte. Todos os homens da família são taxistas, exceto o irmão mais novo, Gian, mas que também trabalha com transportes. Sempre soube o que queria e fez o que estava ao seu alcance para conseguir, “como um bom capricorniano”.
Hoje em dia, não é bem assim que Johnny se sente.
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Sol em capricórnio
Há momentos em que simplesmente desconfiamos de nossas certezas – e o ator parece estar vivendo um deles. “Estou revisitando um pouco esses lugares, me perguntando o que fiz até agora e, sobretudo, o que quero daqui para frente, sabe?”, diz, em uma conversa por vídeo, que ele trocaria facilmente por uma entrevista num boteco. Johnny é descontraído e tem a fala calma, entra em qualquer assunto sem dar voltas, mas uma mesma resposta pode ter diferentes versões e ele busca aquela que soa mais sincera com sua fase atual. Repensar uma ideia ou mesmo mudar de opinião não parece ser problema para ele.
Foi falando sobre os astros que começamos nossa conversa. Não poderia ser diferente, Johnny é doido por astrologia e faz consultas com um astrólogo três vezes ao ano. Em outra ocasião, disse ser uma cabra com cauda de sereia. O que para muitos pode soar como uma imagem aleatória, nada mais é do que uma referência ao signo de capricórnio. O símbolo representa uma força em que Johnny parece se inspirar. “[A imagem] Tem associação com a cabra montanhesa que, apesar de todas as dificuldades, está lá, onde quer que seja, e vai até o topo”, conta. “O que me agrada nessa figura é que o capricórnio frequenta o cume das montanhas da terra e as profundezas dos oceanos.”
A alegoria espelha o vai e vem que o ator tem feito em si mesmo. A incerteza que o rodeia, entretanto, não é sinal de indiferença ou de falta de desejos. Há muitos deles, garante, mas ele apenas assimilou que não terá tempo o suficiente para fazer tudo que sente vontade e isso já não o deixa tão aflito.
No meio disso tudo, a insegurança também deu as caras sobre aquela que, desde a infância, é sua principal habilidade. “Engraçado que estou morrendo de medo de atuar”, diz ele. “Não sei o que está acontecendo, mas a possibilidade tem me assustado um pouco.”
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A dúvida tem menos a ver com a sua capacidade e mais com a exposição compulsória. “É um trabalho que é esforço do teu corpo, tua voz, tua parada que estão constantemente em exposição, difícil não levar para o lado pessoal. É uma profissão que exige visibilidade. No mínimo, você estará ali, de alguma forma, sendo considerado bom ou ruim.”
“É um trabalho que é esforço do teu corpo, tua voz, tua parada que estão constantemente em exposição, difícil não levar para o lado pessoal. É uma profissão que exige visibilidade. No mínimo, você estará ali, de alguma forma, sendo considerado bom ou ruim”
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Do outro lado das lentes
O medo, no entanto, não parece ser paralisante e Johnny está aberto para novos empreendimentos. “Gosto de aventuras, então o que parecer aventura eu vou.” Por esse mesmo motivo, tudo em sua vida parece ocorrer com certa naturalidade. E foi o gosto pelo acaso que o colocou atrás das câmeras, na direção de um longa e de três curtas. Dirigir permite continuar o trabalho criativo, enquanto se poupa da exposição. Entre os curtas, está Amarillas, obra que lançou durante a pandemia, fruto do resgate de um trabalho que fez há mais de 10 anos. Para filmar, ele conta que pegou a Paraty 97 do falecido avô e foi dirigindo com a amiga Carolinie Figueiredo – que havia acabado de dar à luz –, para Pedra de Guaratiba, Chapada das Perdizes, no Rio de Janeiro, e Caxambu, em Minas Gerais. No retorno para casa, o carro perdeu o freio de pé e precisaram voltar com “o freio de mão no talo e com muita fé”. Pararam em uma pastelaria, em um ponto da serra não tão íngreme. E voltaram apertados no carro de um amigo. Já a velha Paraty ficou lá, aguardando resgate.
No ano passado veio o convite para dirigir o filme A cozinha, da peça homônima do ator Felipe Haiut. A obra, que será lançada neste ano, gira em torno dos estragos causados pela masculinidade, discussão com a qual Johnny se vê às voltas vez ou outra, inclusive quando relembra imagens de sua infância. Ele conta que, recentemente, revisitou VHS antigos de quando era pequeno e ficou perplexo com o que viu.
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“Tem coisas de um machismo muito bravo, de tio filmando peito das mulheres, mas teve uma coisa que meu pai fez que eu fiquei chocado. Eu devia ter uns sete ou oito anos e queria fazer xixi e ele não parava de me filmar e eu, aos prantos, pedia para ele parar, pois não conseguia fazer. No fim, acabei fazendo e ele me filmou sem eu perceber.” E reflete: “Não é como se a criança não tivesse vontades e juízo, mas geralmente não são ouvidas.” Hoje, ele compreende os erros de sua família como quem tenta olhar para os próprios defeitos. “Olho não só para os meus pais, como para qualquer pessoa. Somos humanos, a vida é uma escola, não se ensina exatamente a brincadeira e a gente vai errar durante o processo de tentar acertar.”
Nesse início de ano, Johnny acompanha a estreia de seu trabalho mais recente como ator com o filme Os Primeiros Soldados, dirigido por Rodrigo de Oliveira. O lançamento estava marcado para acontecer presencialmente na 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes que, diante do espantoso aumento de casos de covid, precisou ter seu formato alterado para o virtual de última hora. O longa aborda o início da Aids no Brasil, nos anos 80, a uma altura que pouco se sabia sobre a doença e desenvolvê-la era uma sentença de morte. E a mudança de formato, no entanto, não eclipsou a qualidade do longa: Os primeiros soldados recebeu o Troféu Carlos Reichenbach, dado pelo júri jovem do evento, que justificou que o filme convoca “as potencialidades da arte frente aos apagamentos da memória e apresentar uma maturidade fílmica na construção da linguagem”.
Johnny é Suzano, um jovem que vive em Vitória, no Espírito Santo, e que em função do agravamento de seu estado físico, decide se isolar em um sítio. Em seguida, seus amigos, a artista Rose (Renata Carvalho) e o videomaker Humberto (Vitor Camilo), também soropositivos, o acompanham. Os três, num gesto de amizade, descobrem juntos os sinais da doença e se revezam nos cuidados.
Johnny compreende o processo de isolamento como um ato de “generosidade mal trabalhada” pelo personagem. “Entendo que existe um receio de atrapalhar a vida das outras pessoas. De pensar ‘eu estou passando por isso e vou aguentar sozinho’, e dessa forma evitar o sofrimento de seus amores.”
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Foram 4 anos de produção até o lançamento. Antes das filmagens iniciais, que ocorreram em Espírito Santo, Johnny avaliou que deveria ir até o sítio onde ficariam e passar um tempo sozinho. Pegou o carro, viajou até Vitória e ali ficou sem nenhum contato com o mundo exterior – afinal, não tinha sinal, telefone, tampouco Wi-Fi. O fogão não funcionava, então precisou improvisar uma fogueira. Permaneceu lá por quatro dias até a produção chegar.
Naquele mesmo período, estava num processo de emagrecimento para o filme. Durante um mês, sua alimentação foi basicamente ovo e aipim, além de sucos verdes. E durante 14 horas permanecia em jejum. Foram 11 quilos perdidos.
“Não é nada que alguém te diga que você tem que fazer. O Rodrigo não me falou para fazer isso, ninguém me falou, mas são coisas que você sente que precisa. Em algum momento, a câmera vai ligar e vai filmar o que você tem e o que você não tem até ali. Então, é bom que você tenha o máximo possível de intimidade com aquele universo.”
Ainda em 2016, no primeiro contato, Rodrigo deu de presente a Johnny o livro Para o meu amigo que não me salvou a vida, autobiografia de Hervé Guibert, uma das primeiras a descrever o sofrimento de um doente terminal da Aids. A obra permitiu que o ator tivesse um olhar mais sensível sobre o que significava para um jovem conviver com uma doença desconhecida naquele momento.
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“Você entende o quão doloroso é perceber essa proximidade do fim da vida, sobretudo o fim da vida de uma forma precoce, porque não se espera que você vá partir tão jovem. E, sobretudo, daquela forma. Viviam o horror do desconhecido”
“Você entende o quão doloroso é perceber essa proximidade do fim da vida, sobretudo o fim da vida de uma forma precoce, porque não se espera que você vá partir tão jovem. E, sobretudo, daquela forma. Viviam o horror do desconhecido. Ao mesmo tempo, em que há uma vontade muito grande de estar vivo e de descobrir a vida.”
O trabalho e a disciplina a que se submeteu tiveram efeitos de descoberta e empoderamento do personagem. “Me ajudou a me conectar a lugares muito loucos em relação à minha própria fragilidade e a fragilidade do personagem no final das contas.”
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Sobre o amor
Fora das telas, Johnny tem também procurado ser o mais autêntico que pode. Em outubro, compartilhou em seu Instagram um post de uma declaração feita por seu namorado, o professor de direito João Pedro Accioly, que é também um amigo de longa data. Era a primeira vez que falava abertamente sobre sua sexualidade, algo que sabia que eventualmente iria acontecer, mas não imaginava como.
“Era uma coisa que a gente conversava porque eu já sabia que algum momento iria acontecer. Eu, ao mesmo tempo, embora nunca tenha dito, nunca escondi de fato. E ali calhou de acontecer. Na época confesso que fiquei um pouco assustado.”
E expor aspectos de sua intimidade para milhares de seguidores não era algo muito confortável. “Eu nunca tive muita vontade de falar de vida pessoal, mas entendo que as duas coisas [trabalho e vida pessoal] estão ligadas ali. Até tenho os meus dedos com Instagram hoje em dia, pois fico pensando se isso tira pouco o foco do trabalho ou como a reação das pessoas podem afetar na sua vida. Mas eu considerei muito e fiquei feliz pela maneira que aconteceu e por ser com o João”, declara.
“Era uma coisa que a gente conversava porque eu já sabia que algum momento iria acontecer. Eu, ao mesmo tempo, embora nunca tenha dito, nunca escondi de fato. E ali calhou de acontecer. Na época confesso que fiquei um pouco assustado”
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E ainda que tenha tomado a atitude com firmeza, havia também a inquietação, afinal o machismo e a homofobia são a regra no Brasil.
“Vira e mexe passa aquela coisa do tipo, porra, será que não vão mais me chamar para trabalhar? Mas aí você pensa, cara, se não me chamarem para trabalhar por isso, ‘beijo, tchau’. Não quero estar com você também.”
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Em janeiro, o ator Marco Pigossi seguiu os mesmos passos e escreveu um forte depoimento para a revista Piauí, no qual revelou o medo que o acompanhou durante anos até poder se assumir. O receio de ser rechaçado e perder trabalhos eram consequências da reação de uma indústria que sempre celebrou a virilidade como ingrediente indispensável para um ator de televisão. Mas os tempos são outros. Marco Pigossi diz se sentir invencível, e de certa maneira é assim também que Johnny se sente.
“Acho que é o momento para a gente poder existir e falar disso. Ir abandonando os medos na medida do possível, cada um dentro da sua história. Porque não existe uma fórmula para sair do armário. É um processo com família e com tudo mais.”
“Vira e mexe passa aquela coisa do tipo, porra, será que não vão mais me chamar para trabalhar? Mas aí você pensa, cara, se não me chamarem para trabalhar por isso, ‘beijo, tchau’. Não quero estar com você também”
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Discutir abertamente a sexualidade e viver sem pensar que tem algo a esconder são coisas que trazem liberdade, mas também ajudam a naturalizar a discussão em outros espaços e outros cantos Brasil afora.
“Nós somos fodas, ‘bichas on the road’”, ele brinca. “A gente merece falar e ter esse tipo de representatividade. Como Renata (Carvalho) fala: representatividade salva vidas.”
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2022 e o cenário político
Este ano, há outro pensamento que tem tomado a sua atenção. Há alguns anos, não tinha dedos para se posicionar politicamente em suas redes. Hoje também não tem, mas já não faz tanta questão de fazer isso em seus perfis. “Perdi completamente aquela ilusão de que, através da minha rede social, eu ia mudar alguma coisa.” Muita energia era gasta na busca por diálogo. “Era muito difícil. A quantidade de ódio que você recebe é imensa.” Desde 2018, Johnny tem se manifestado contrário ao governo de Jair Bolsonaro. E se mantém convicto em sua posição: “Não é fora Bolsonaro, é cadeia Bolsonaro.”
E, sem rodeios, fala sobre sua escolha para outubro. “Dentro do cenário atual, vou votar no Lula sem sombra de dúvida, feliz da vida. Espero que tragam um projeto de país e que a gente possa de novo sentir orgulho de ser brasileiro. Hoje em dia, tenho vergonha”, afirma.
“Espero que o Lula, caso eleito, realmente consiga trazer um projeto a curto prazo, porque as pessoas estão morrendo de fome, mas também a médio e longo prazo. Espero que tragam um projeto de país, pois ainda não temos nenhum”
Para Johnny, falta um planejamento sustentável que repare as grandes inconstâncias do país, com definição de questões prioritárias, o que, na sua opinião, não deve deixar de lado questões urgentes do momento atual, à vista do imenso desamparo econômico e social acentuado pela pandemia. “Espero que o Lula, caso eleito, realmente consiga trazer um projeto a curto prazo, porque as pessoas estão morrendo de fome, mas também a médio e longo prazo. Espero que tragam um projeto de país, pois ainda não temos nenhum.”
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E, por fim, com o gosto pelo novo, ele celebra as incertezas. “Temos muito tempo de humanidade, a gente não pode mais ficar repetindo os mesmos erros. Eu, pelo menos, não quero mais repetir, quero erros novos. Por 30 anos, eu fico repetindo isso. Eu não quero mais sofrer pelas coisas que eu já sofri. Que venham outros motivos de alegria, outros motivos de sofrimento, de aprendizado porque eu estou só começando.”