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A primeira distopia

Comemorando 100 anos, o livro “Nós”, do russo Yevgeny Zamyatin, nos convida a refletir se já vivemos em uma espécie de totalitarismo

por Artur Tavares Atualizado em 2 jul 2021, 11h35 - Publicado em 30 jun 2021 23h02
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(Arte/Redação)

restes a terminar a construção do INTEGRAL, a primeira nave espacial colonizadora terrestre, o cientista D-509 começa a redigir um diário que será transmitido às gerações passadas da humanidade, o registro de uma utopia que levará sua fundamentação ideológica e perfeição para os diversos confins da galáxia. A reeleição do Benfeitor – eterna e unânime – está marcada para acontecer apenas alguns dias antes do lançamento do foguete, consagrando a paz que o planeta vive após uma guerra mundial que durou 200 anos. Mas, D-509 se apaixona, e o desejo pode colocar tudo a perder.

Escrito entre 1920 e 1921 na recém-formada União Soviética, o romance Nós, de Yevgeny Zamyatin, é considerada a primeira história da ficção científica a abordar distopias totalitárias, um gênero que foi eternizado no ocidente por Aldous Huxley e George Orwell, respectivamente com Admirável Mundo Novo e 1984. Considerado subversivo pelos comunistas, o livro foi censurado no país até 1988, quando a Rússia se reabriu, mas durante os 60 anos de proibição foi publicado em todo o mundo, inclusive aqui no Brasil.

Em Nós, Zamyatin imagina uma sociedade regida pelo Estado Único. Trata-se de um povo sob vigilância eterna. Todas as edificações são de vidro, e os cidadãos só têm autorização para fechar suas persianas para transar. Ninguém tem nome, apenas identificações alfanuméricas. Os homens têm siglas que se iniciam com consoantes, enquanto as mulheres têm siglas que começam com vogais. As relações sexuais são não-monogâmicas, definidas por padrões, e apenas mulheres com determinado biotipo podem reproduzir. Não há nem pais nem mães. A partir do nascimento, todas crianças são tomadas pelo governo.

Crítica dura à Revolução Industrial e aos regimes políticos totalitários, sejam eles de direita ou de esquerda, Nós imagina ainda uma sociedade baseada na lógica matemática. Os cidadãos não passam de algoritmos de uma equação que torna o Estado Único perfeito. Sem exceção, todos acordam no mesmo horário, trabalham no mesmo horário, têm folga no mesmo horário. Todos os garfos sobem com alimento às bocas ao mesmo tempo, e cada pedaço de nafta, a única comida disponível, é mastigado 15 vezes antes de ser engolido. Todos caminham uniformizados – são denominados “unifs” – em linhas de quatro em quatro, assistem às apresentações culturais e declarações políticas sentados em anéis circulares. A única arte produzida é pró-regime, e qualquer elemento subversivo é executado em praça pública. Não há, no entanto, espetáculo, já que absolutamente ninguém se importa em parar para assistir à morte.

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(Nós/Reprodução)

Liberdade e felicidade

A utopia matemática de Nós prevê que qualquer manifestação emocional é selvagem. Se a racionalidade lógica garante o funcionamento perfeito da sociedade, a felicidade é apenas um empecilho para o equilíbrio.

No final de março, a edição de 2021 do Relatório Mundial da Felicidade, divulgado pelo Instituto Gallup, mostrou que o Brasil caiu 12 posições no ranking, e agora ocupa a 41ª posição. Ao mesmo tempo que somos menos felizes, pelo menos 30% da população declara apoio explícito ao governo protofascista de Jair Bolsonaro, um eleitorado que pode ser ainda maior a depender de quem será seu concorrente em 2022. Estamos abdicando nossa felicidade e liberdade em troca de um “benfeitor” hiperpersonificado, uma mão forte ante nossas mazelas sociais?


“Nós que vivemos no ‘ocidente democrático’ costumamos pensar que nunca mais vamos cair nas garras do fascismo e de outros regimes de controle social absoluto. A pergunta que deveríamos nos fazer é: não vivemos em uma espécie de totalitarismo hoje?”

Se ainda não chegamos às construções de vidro, que nos expõem totalmente, já vivemos sob a vigilância eterna do Grande Irmão orwelliano – que, na verdade, é apenas outra metáfora para o punitivismo de Michel Foucault. A diferença é que nem precisamos do estado para isso. Estamos tão embriagados com os likes das redes sociais que fazemos isso por conta própria, enquanto as corporações registram todas nossas ações com monitoramento das mensagens que enviamos e aquilo que dizemos com os microfones dos nossos computadores e aparelhos celulares.

Também, já vivemos cada vez mais pasteurizados. Se ainda não adotamos imagens únicas, já conseguimos distinguir grupos sociais por suas aparências: o branco topzera, a tatuagem old-school hipster, a padronização de corpos femininos, roqueiros, motoqueiros, neo-hippies naturebas. Coincidentemente, temos pressão estatal para uma padronização étnica. O governo quer que todos os índios e negros se “considerem brasileiros”, um eufemismo para embranquecimento sociocultural.

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Qualquer manifestação emocional é selvagem. Se a racionalidade lógica garante o funcionamento perfeito da sociedade, a felicidade é apenas um empecilho para o equilíbrio.

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(editora Aleph/Reprodução)

Algarismos e algoritmos

No prefácio da primeira edição norte-americana de Noon: 22nd Century, dos também russos Arkady e Boris Strugatsky, o editor Theodore Sturgeon afirma que uma das grandes características dos autores de ficção científica é prever e descrever com perfeição invenções “como o submarino, as naves espaciais, a superpopulação e a poluição”, embora note que há maravilhas, como o LED e as telas de cristal líquido, que nunca foram imaginados na literatura do gênero.

Esse parece ser o caso de Zamyatin em relação aos “unifs”. Se em 1921 o melhor que se poderia imaginar era um controle mecânico e totalmente burocrático do indivíduo, transformado em algarismo, o que temos hoje, uma centena de anos depois, é a massificação através dos algoritmos. A diferença está, é claro, no fato de que o russo vivia sob a nuvem de uma revolução que deu os controles dos meios de produção para o estado soviético, enquanto nós sempre estivemos à sombra de estados totalitários capitalistas, que não excluem o mercado da equação.

Se a perfeição matemática de Nós não exige supercomputadores para funcionar, a perfeição matemática do mercado capitalista na era da internet consegue blocar nossas identidades através de uma pseudoleitura dos nossos pensamentos através dos comportamentos que exibimos online. Nesse sentido, estamos mais perto da invasão alienígena imaginada por John Carpenter no seminal filme Eles Vivem, um controle social através do consumo. Ainda assim, a relação com o romance russo é clara: uma privação sensorial por anestesiamento das vontades.

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(Nós/Reprodução)

Sobre sexo e paixão

Outro autor que emulou as ideias de Zamyatin foi o norte-americano Ray Bradbury. Em Farhenheit 451, o bombeiro Guy Montag (que queima livros, em vez de apagar incêndios) percebe a programação social que vive ao se apaixonar por Clarisse McClellan, uma jovem revolucionária em uma sociedade completamente anti-intelectual. No caso de “Nós”, D-509 se enamora perdidamente com I-330, uma garota que fuma e bebe absinto, enquanto passa a rejeitar a devoção de sua companheira O-90.

Não somente Bradbury como também Orwell, Huxley, George Lucas no filme THX-1138 (outra sigla alfanumérica que denomina um humano) e muitos outros autores utilizam a metáfora do louco amor como faísca para o despertar do totalitarismo.

Longe de soar puritano, noto que vivemos uma sociedade que preza cada vez menos pelo amor e pela estabilidade. Somos movidos por corpos e pelo sexo, pelo prazer inconsequente de pensar no dia seguinte. Em Nós, o corpo e o sexo também são operações lógicas, matemáticas, escolhas conscientes feitas através de um catálogo disponível. Mais uma vez, voltamos ao algoritmo dos aplicativos de paquera, que decifram os likes e os matches obtidos e então apresentam outras pessoas semelhantes em seus “cardápios.”

Mas, assim como D-509, Guy Montag, THX-1138 e tantos outros, nós também nos livramos de todas as amarras da racionalidade quando nos apaixonamos perdidamente. Abandonamos padrões estéticos, de idade e até de gênero quando alguém nos faz feliz de verdade.

Personificar a paixão, na ficção científica distópica, é um artifício para mostrar que a individualização é responsável pela alienação. Quanto mais sozinhos nos sentimos, mais estamos suscetíveis a forças exteriores interferindo em nossas vidas. Se o ditado diz que a união faz a força, o um, que na verdade é zero, é sujeito a não ter identidade alguma.

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Personificar a paixão, na ficção científica distópica, é um artifício para mostrar que a individualização é responsável pela alienação. Quanto mais sozinhos nos sentimos, mais estamos suscetíveis a forças exteriores interferindo em nossas vidas

Distopia ou realidade?

Embora alguns estados totalitários ainda existam hoje no mundo, principalmente a China, a Coreia do Norte, Cuba, algumas teocracias do mundo árabe, a Rússia de Putin, e, mais recentemente, a Hungria de Viktor Orbán, nós que vivemos no “ocidente democrático” costumamos pensar que nunca mais vamos cair nas garras do fascismo e de outros regimes de controle social absoluto. A pergunta que deveríamos nos fazer é: não vivemos em uma espécie de totalitarismo hoje?

No final do século 20, duas ficções científicas distópicas que imaginavam computadores no comando da sociedade fizeram muito sucesso no cinema. Em “O Exterminador do Futuro”, a Skynet ainda batalhava com os humanos pelo controle do planeta, enquanto em “Matrix” as máquinas já haviam superado o período de conflito há muito tempo.

Os autores da primeira metade do século não conseguiam imaginar o poder de um chip, por isso todo o controle social era imaginado entre seres humanos. No entanto, as máquinas, que surgiram na literatura através de Isaac Asimov passaram a se tornar ameaças reais à nossa sociedade. Se o autor de Eu, Robô fundamentou as Três Leis da Robótica para impedir que os computadores sobrepujassem a humanidade, hoje, em 2021, não há nada que não nos mostre que uma inteligência artificial pode desligar todo o planeta e nos levar para o caos em um piscar de olhos, ou acionar todos os dispositivos atômicos ao mesmo tempo, como fez a Skynet.

“A questão é: precisamos de um governo, um estado central ou uma figura totalitária para comprovar que estamos vivendo em uma realidade sombria?”

A reflexão se torna ainda mais necessária em um momento em que o Bitcoin e outras criptomoedas apresentam seus maiores valores históricos. Cada vez mais pessoas estão abdicando do dinheiro vivo, transformando-os em cadeias de blockchain, mas, se a nuvem for desligada ou a inteligência artificial ultrainteligente for hackeada, para onde irão todos os nossos bens? E, então, nosso destino será voltar para as cavernas – as mesmas cavernas de “Matrix”.

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Para além disso, estão os sinais óbvios descritos pelos autores de distopias que já permeiam nossas vidas. Então, a questão é: precisamos de um governo, um estado central ou uma figura totalitária para comprovar que estamos vivendo em uma realidade sombria?

Costumamos acreditar que o tempo é uma linha reta que caminha sempre para o futuro, mas Einstein e sua Teoria da Relatividade comprovam que passado, presente e futuro são apenas uma coisa só, o agora. E, agora, 100 anos depois de Nós, deveríamos nos questionar se não chegamos às previsões que visionários da ficção científica estão fazendo há tanto tempo.

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(editora Aleph/Reprodução)
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