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Recuperação através das drogas

Cientistas demonstram como psicodélicas são uma poderosa ferramenta em tratamentos contra a dependência em álcool, cocaína, crack, heroína e cigarro

por Carlos Messias 16 nov 2022 11h36

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No final do ano passado, durante a Wonderland, conferência em Miami sobre o universo psicodélico, o lendário astro do boxe Mike Tyson expôs publicamente como fumar o veneno do sapo Incilius alvarius foi um ponto de virada em sua vida, a partir do qual saiu da depressão, recuperou a autoestima, curou o vício em cocaína, perdeu quase 50 quilos, se reaproximou da família e voltou a praticar boxe.

“As pessoas veem a diferença em mim”, declarou o ex-pugilista de 56 anos, que disse ter fumado o veneno do sapo uma série de vezes nos últimos quatro anos. “O que fala por si. Se você me conhecesse em 1989, conheceria uma pessoa diferente. Minha mente não é sofisticada o suficiente para elaborar o que aconteceu, mas a vida melhorou. Todo o propósito do sapo é você atingir o seu mais alto potencial. Eu olho o mundo de maneira diferente. Somos todos uma coisa só. Tudo é amor”, disse o atleta que, em 1997, teve sua licença de boxeador revogada e foi multado em US$ 3 milhões após morder a orelha do oponente Evander Holyfield.

Previamente conhecido como Bufo alvarius, o sapo Incilius (não confundir com a perereca kambô, cuja secreções são utilizadas pelos povos da Amazônia como uma espécie de antidepressivo não-psicodélico) é nativo do Deserto de Sonora, na América do Norte. Frequentemente celebrado em rituais neoxamânicos tanto no México quanto nos Estados Unidos, o veneno, quando fumado, provoca alteração de consciência e seu consumo, em contexto ritualístico, está associado a relatos de diluição do ego, sensação de unidade com a natureza e a percepção de entrar em um estado místico.

“Existe um efeito dissociativo entre mente e corpo e você entra em um espaço do nada, em que nada existe, o chamado k-hole”, explica o psiquiatra Dr. Luís Fernando Tófoli, pesquisador sobre psicodélicos e professor na Unicamp. O termo “k-hole” refere-se ao efeito da cetamina (ketamine, em inglês), substância psicodélica, tradicionalmente usada como sedativo, que no final de 2020 teve seu uso aprovado pela Anvisa para tratamentos de depressão aguda.

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(Bruno Legítimo/Ilustração)

“As pessoas têm essa noção equivocada de que para ser considerado droga não é terapêutico e vice-versa, né? Droga é uma substância que faz algum efeito no organismo, pode ser benéfico ou não. Cafeína é droga”, diz o clínico geral paulista Dr. Bruno Rasmussen Chaves, que já realizou mais de 1.500 tratamentos de dependentes químicos com ibogaína (substância psicodélica extraída da raiz da planta africana Tabernanthe iboga) em 28 anos no ramo. “Cocaína foi durante muito tempo propagandeada pelo Freud como um bom tratamento contra a depressão e depois se viu que ela não é tão benéfica assim, que causa uma rebordosa danada e leva a uma diminuição na produção de serotonina, que é gastada toda num espaço de tempo mais curto e no dia seguinte faz falta, fica com o estoque diminuído”, explica Rasmussen.

“As pessoas têm essa noção equivocada de que para ser considerado droga não é terapêutico e vice-versa, né? Droga é uma substância que faz algum efeito no organismo, pode ser benéfico ou não. Cafeína é droga”

Bruno Rasmussen Chaves, clínico geral
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(Bruno Rasmussen/Arquivo)

A diferença dos psicodélicos é que, apesar de também interferirem em neurotransmissores como serotonina, dopamina, noradrenalina e gaba, elas têm uma tendência muito menor de criar dependência, inclusive do que os próprios antidepressivos convencionais. Se comparados com cocaína, crack, nicotina, heroína e mesmo álcool, têm a vantagem de serem muito pouco tóxicos e não alterarem drasticamente os sinais vitais. 

“Os psicodélicos atuam em mecanismos emocionais que muitas vezes estão relacionados a quadros de ansiedade e depressão”, diz Lucas Maia, biólogo com mestrado (pela Unifesp) e doutorado (Unicamp) em Ciências, nas áreas de psicofarmacologia e saúde mental. A depressão está associada à perda de conexões neuronais, além de um desequilíbrio de neurotransmissores relacionados ao prazer, como a serotonina e dopamina.

“A gente nasce com aquele número de neurônios e eles vão morrendo devagarinho, ao mesmo tempo que com a idade as conexões vão se enfraquecendo. É muito importante para o nosso estado de espírito, para o nosso bem-estar, para a nossa disposição, que os neurônios estejam em uma proporção correta, bem ajustados e equilibrados entre si”, explica Rasmussen.

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(Bruno Legítimo/Ilustração)

A nova trajetória dos psicodélicos

Após terem sido marginalizadas por questões políticas no começo dos anos 1970, com o fim do sonho hippie e o início da Guerra às Drogas, as substâncias psicodélicas voltaram a ter seu potencial terapêutico investigado há menos de duas décadas, com a chamada Renascença Psicodélica. Pesquisas e terapias com psicodélicos passaram a ocupar cátedras em prestigiadas instituições como Harvard, Universidade da Califórnia, Johns Hopkins e Imperial College London. No Brasil, o volume de artigos publicados a partir de pesquisas em universidades como UFRN, Unicamp, Unifesp e USP de Ribeirão Preto coloca o país como o terceiro com mais citações em estudos com psicodélicos no mundo.

A partir de ensaios clínicos com grupos controlados, testes em animais como camundongos ou estudos observacionais de psicoterapias assistidas, substâncias como 5-Meo-DMT, mescalina, psilocibina (dos “cogumelos mágicos), LSD e MDMA vêm apresentando resultados promissores no tratamento de diversas patologias, de autismo e Alzheimer a transtornos de humor e drogadição.

Os psicodélicos mais presentes nos estudos e nos tratamentos contra dependência desenvolvidos no Brasil são ayahuasca, ibogaína e psilocibina. Com exceção das substâncias que foram criadas em laboratório, como LSD e MDMA, o uso de psicodélicos em sua forma vegetal remonta a tradições ancestrais, geralmente de orientação xamânica, praticadas por diversos povos originários de diferentes regiões do mundo.

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Desde a ayahuasca, usada há pelo menos 5 mil anos por várias etnias indígenas na América do Sul, a Jurema (também composta de DMT), mais comum entre povos indígenas e religiões afro do nordeste brasileiro, a mescalina, extraída dos cactos san pedro ou wachuma por xamãs de Peru e Bolívia, respectivamente, ou do peyote pelos norte-americanos, a psilocibina, do cogumelo teonanácatl no México ou do amanita muscaria na Sibéria, até a iboga, há 10 mil anos consagrada por povos nativos da floresta na África central em meio aos cultos da religião Bwiti.

Essas medicinas, consideradas por culturas ancestrais como plantas de poder, não agem sobre um mal ou patologia determinados, mas são tradicionalmente utilizadas dentro de um contexto ritualístico, em uma noção holística de ser humano. Com o intuito de curar o indivíduo como um todo, expurgando traumas e mágoas, diluindo neuroses, apegos e obsessões, integrando corpo, mente e espírito.

O que neurologistas, psiquiatras e psicólogos agora estão fazendo é explorar o poder terapêutico dessas substâncias dentro dos parâmetros da medicina moderna, em ambiente clínico controlado, geralmente hospitalar, amparados por equipe multidisciplinar e metodologia científica, munidos dos dados e evidências disponíveis.

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Resultados rápidos

Pioneiro nos estudos e na aplicação da ibogaína no Brasil desde 1994, Bruno Rasmussen acompanha a internação para aplicação monitorada da medicação na Santa Casa de Ourinhos . “A principal diferença dos psicodélicos com relação aos medicamentos comuns é a eficiência. Enquanto um antidepressivo tem a eficácia de 30 a 40%, a da ibogaína fica acima de 80%”, diz o Dr. Rasmussen. A segunda vantagem é o tempo. Os medicamentos convencionais demoram de 30 a 40 dias para começar a fazer efeito, já com os psicodélicos nota-se um efeito quase instantâneo, em 24 horas você já observa uma mudança de humor e de disposição”, acrescenta Bruno, que se encarrega dos trâmites de importar a substância individualmente para cada paciente, seguindo as normas da Anvisa, as mesmas usadas para a cannabis. “É muito recompensador atuar em um tratamento onde se observa resultados a tão curto prazo.”

Resumo da ocorrência de recaídas nos 75 pacientes contatados após cada sessão de ibogaína. Os números dentro dos hexágonos amarelos representam o número de pacientes que participaram de cada etapa do tratamento. Cada passo neste esquema corresponde a uma administração de ibogaína. Os números nos pequenos triângulos preenchidos em azul claro indicam o número de pacientes que pararam nesse ponto do tratamento e, portanto, não receberam ibogaína novamente. Todas as setas azuis para cima indicam pacientes que não recaíram após uma determinada administração de ibogaína. As setas vermelhas para baixo, por sua vez, apontam para o número de pacientes que recaíram após uma determinada sessão. Cada coluna representa o resultado de uma determinada administração de ibogaína.
Resumo da ocorrência de recaídas nos 75 pacientes contatados após cada sessão de ibogaína. Os números dentro dos hexágonos amarelos representam o número de pacientes que participaram de cada etapa do tratamento. Cada passo neste esquema corresponde a uma administração de ibogaína. Os números nos pequenos triângulos preenchidos em azul claro indicam o número de pacientes que pararam nesse ponto do tratamento e, portanto, não receberam ibogaína novamente. Todas as setas azuis para cima indicam pacientes que não recaíram após uma determinada administração de ibogaína. As setas vermelhas para baixo, por sua vez, apontam para o número de pacientes que recaíram após uma determinada sessão. Cada coluna representa o resultado de uma determinada administração de ibogaína. (arte/Redação)

“Na psiquiatria, o campo da dependência tem uma taxa de sucesso pequena. O psiquiatra é acostumado a não ser bem sucedido com pacientes nessa condição, são muito comuns casos de recaídas. O abuso às vezes é muito longo e os resultados dificilmente são imediatos”, relata Dr. Maia.

E na farmacologia não existem tantos medicamentos específicos para a dependência. Salvas algumas exceções voltadas para nicotina ou cocaína, costumam ser prescritos com essa finalidade anti-ansiolíticos ou antidepressivos. “A taxa de sucesso desse tipo de terapia é pequena”, resume Dr. Maia, que desde 2010 desenvolve pesquisas e projetos de divulgação científica sobre o potencial terapêutico de plantas e substâncias psicoativas por instituições como UNIFAL-MG, UFRN e UNICAMP, pela qual publicou quatro artigos.

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“Na psiquiatria, o campo da dependência tem uma taxa de sucesso pequena. O psiquiatra é acostumado a não ser bem sucedido com pacientes nessa condição, são muito comuns casos de recaídas. O abuso às vezes é muito longo e os resultados dificilmente são imediatos”

Lucas Maia, biólogo
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(Lucas Maia/Arquivo)

O grande inimigo das terapias convencionais é o estágio de “craving”, quando o indivíduo é tomado por um desejo incontrolável de usar a substância. “Vindo de estudos em animais, estudos bioquímicos e celulares, essas substâncias atuam em áreas do cérebro relacionadas à fissura. “É comum em uma terapia com psicodélicos o indivíduo perder a vontade de usar”, diz Maia. “Eu atendo muita gente que está cansada de medicamentos que não funcionam e tratamentos que não dão em nada”, aponta o psicólogo paulistano Bruno Ramos Gomes, que acompanha os pacientes do xará Bruno Rasmussen. Além da clínica convencional, que pratica em atendimentos on-line ou presenciais, nos quais pode sugerir ayahuasca ou ibogaína, dependendo das características e das necessidades de cada paciente, Ramos faz a avaliação e o acompanhamento, antes e depois, dos seus tratamentos com ibogaína. “Aproveito essa janela terapêutica para ajudar o paciente a pensar no que ele deseja construir. E também a lapidar a expectativa, tanto do paciente quanto da família”, diz o psicólogo de linha fenomenológica.

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Outra vantagem dos psicodélicos, a baixa incidência de casos de dependência, contrasta com os relatos frequentes de dependência de benzodiazepínicos como o Rivotril, considerado o crack dos anti-ansiolíticos. Seus efeitos adversos, no entanto, passam ao largo do público leigo. “Ele atinge os mesmos centros de prazer no cérebro, os mesmos mecanismos psicológicos ou gatilhos que causam dependência”, explica o PHD Paulo César Ribeiro Barbosa, que desde os anos 1990 faz pesquisas com ayahuasca.

“Quando você fala que é dependente de Rivotril, ninguém fala nada. Como não tem tanto preconceito envolvido, a pessoa sofre menos. Ela não tem a pressão social da cocaína”, acrescenta Rasmussem. O mesmo vale para os antidepressivos, que causam dependência “eu diria que bem alta, em torno de 80%, a ponto de o paciente ficar muito aflito quando acaba o medicamento durante o fim de semana”, comenta o especialista.

“É comum em uma terapia com psicodélicos o indivíduo perder a vontade de usar. Eu atendo muita gente que está cansada de medicamentos que não funcionam e tratamentos que não dão em nada”

Bruno Ramos Gomes, psicólogo
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O músico paulistano Mauricio Takeda, 33 anos, se identificaria com esse panorama. Ele chegou a tomar dez medicamentos ao mesmo tempo durante mais de dois anos de tratamento psiquiátrico convencional para lidar com suas severas crises de depressão, época em que fumava “dois maços de Marlborão” por dia, se afogava em litros e litros de Coca-Cola e chegou a apresentar ideação suicida. “Não conseguia dormir, minha vida estava um caos. Chegando no fundo do poço, comecei tratamento com Rivotril, indutor de sono, dois antidepressivos, remédio para enxaqueca. Cheguei a tomar dez comprimidos de uma vez!”

Com psicoterapia aliada ao tratamento psiquiátrico, diz ter estabilizado seu humor, entretanto “eu me senti um zumbi, não ficava tão mal como antigamente, porém vivia em um mundo cinza, sem cor, fumando um cigarro atrás do outro”. Nesse meio tempo, sua irmã, que recentemente havia descoberto a ayahuasca, se esforçou para convencê-lo a participar de uma cerimônia do Xamanismo Sete Raios. Até que pediu para Felipe Rocha, fundador do grupo de neo-xamanismo, fazer uma visita ao seu irmão.

“Ele viu o estado em que eu estava, fumando pra caralho, sem saber o que fazer da vida, aí fez uma meditação comigo e defumou a minha casa”, conta Maurício. No xamanismo, a fumaça de plantas e ervas medicinais tem propósito de limpeza energética, E, assim como a meditação, a música – e especialmente o tambor – são maneiras de invocar o sagrado, o que parece ter acertado o compasso do baterista. “Algo ali me pegou, tinha um negócio que tava legal”, acrescenta o membro da banda de pop e folk Pagan John.

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Antes de o terapeuta xamânico ir embora, Takeda educadamente aceitou comparecer a um de seus rituais em São Paulo. Mesmo assim, foi mais um ano até ele finalmente decidir ir. Aí quando, sob supervisão de seu psiquiatra, iniciou o processo de desmame dos antidepressivos, necessário para tomar ayahuasca, originou-se mais um drama, a abstinência dos fármacos.

“Aí que o bicho pegou, meu corpo entrou em colapso, fui parar no hospital por quatro dias achando que estava morrendo. Aí chegava no hospital, fazia todos os exames, via que não tinha nada e voltava para casa, só para na sequência querer voltar para o hospital. Sentia taquicardia, dor no peito, como se meu coração fosse explodir, ansiedade bombando, tudo de uma vez”, diz Mauricio, cuja história continua ao longo da reportagem.

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(Bruno Legítimo/Ilustração)

Plantas professoras

Enquanto isso, voltamos a Bruno Ramos Gomes, que iniciou sua trajetória com dependentes químicos ainda como estagiário, na época da faculdade de psicologia no Mackenzie. Trabalhou implementando estratégias de redução de danos na Cracolândia pelo Centro de Convivência É de Lei, do qual foi presidente por cinco anos. Em 2009, iniciou sua tese de mestrado (O sentido do uso ritual da ayahuasca em trabalho voltado ao tratamento e recuperação da população em situação de rua em São Paulo; USP, 2011) estudando o trabalho da Unidade de Resgate Flor das Águas Padrinho Sebastião. Instalada em um sítio em São Lourenço da Serra, interior de São Paulo, realizava tratamentos com moradores de rua utilizando dietas e plantas de limpeza ou purga, além de ayahuasca, consagrada em cerimônias do Santo Daime que o próprio Bruno passou a conduzir, inicialmente no sítio e depois, com o encerramento da organização, em 2015, em sua própria casa, para amigos e pacientes de colegas.

“Nas duas primeiras sessões após a ibogaína, parece que a pessoa está levitando, ela fala: ‘Tá tudo bem, eu sei que a minha família é doida mesmo, basta eu não entrar em provocações´. A pessoa fica com uma clareza de pensamento muito grande, a ponto de não precisar mais de terapia.”

Ramos Gomes costuma aproveitar o efeito residual do psicodélico, uma sensação sustentada de bem estar e flexibilidade de pensamento que chega a durar 15 dias no caso da ayahuasca e meses no da ibogaína, o chamado “after glow” (“brilho posterior””), como janela terapêutica para acessar e elaborar os conteúdos que emergiram na experiência psicodélica. “O paciente fica horas acompanhado por psicólogos, aproveitando esse momento de expansão de consciência, de mais abertura, para tocar em certos assuntos e aprofundar determinados temas. Os psicodélicos de modo geral favorecem uma melhor compreensão do que se passou com elas. Ou que aquilo não foi tão grave quanto pareceu, ou que foi grave, mas que é possível continuar tocando a própria vida apesar disso. É o que os psicólogos chamam de ressignificar, dar outro significado para o evento traumático e entender como aquele trauma não precisa paralisar a vida da pessoa”, exemplifica Rasmussen. “Todas essas substâncias vêm se revelando facilitadores da psicoterapia.”

Em psiquiatria psicodélica, usa-se muito a expressão “set and setting”, que se refere ao estado mental do paciente, assim como o ambiente em que a experiência com a substância se dá. Como me disse uma vez o neurocientista Sidarta Ribeiro, “A experiência psicodélica tem que ser assistida que nem um esporte radical”.

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Para tomar ibogaína, o protocolo exige internação hospitalar e acompanhamento interdisciplinar. Pelo monitoramento no eletroencefalograma, seu efeito não é diferente do sono em estágio REM, diferentemente de psicodélicos como LSD, que apresentam no monitor traçado mais bagunçado. Entretanto, durante a sessão com ibogaína, o paciente fica consciente durante o processo, como que sonhando acordado. Uma sessão completa, incluindo o pré e o pós, processo que dura aproximadamente um mês, gira em torno de R$ 10 mil, incluindo a substância.

Além de hospitais com equipe médica para o tratamento com ibogaína, rituais em cerimônias religiosas com ayahuasca ou com cogumelos, que quando bem administrados, com triagem criteriosa, revelam-se um ambiente seguro e um procedimento eficiente para o tratamento em dependência química, o que é reconhecido pela ciência. “A comunidade médica precisa entender esse fenômeno com humildade”, disse Sidarta.

O chá pode ser consagrado em cerimônias de caravanas com representantes das etnias ayahuasqueiras do Brasil, como os Huni Kuin e os Noke Koi, além de imersões nas próprias aldeias, com grupos de neo-xamanismo que resgatam esses saberes e/ou combinam diferentes linhas, como cabala ou as religiões afro,além religiões cristãs, como União do Vegetal e o Santo Daime, que surgiu a partir da interação de Mestre Irineu (1890-1971), seu fundador, neto de escravos baseado em Rio Branco, com os Yawanawá, que até hoje habitam a floresta no Acre. Em contextos urbanos, uma cerimônia com a medicina gira em torno de R$ 250.

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É possível obter resultados a partir do uso recreativo de psicodélicos, ou da microdosagem, que continua sendo estudada, mas os benefícios de uma experiência psicodélica completa só serão devidamente explorados quando a ocasião é administrada por alguém confiável e experiente, seja um médico, um pajé ou sacerdote da linha que cada um mais se identificar. Como diria o escritor e líder indígena Ailton Krenak, “ayahuasca sem guiança é como uma passagem para lugar nenhum.”

“Os psicodélicos de modo geral favorecem uma melhor compreensão do que se passou com elas. Ou que aquilo não foi tão grave quanto pareceu, ou que foi grave, mas que é possível continuar tocando a própria vida apesar disso. É o que os psicólogos chamam de ressignificar”

Bruno Ramos Gomes, psicólogo
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(Bruno Ramos Gomes/Arquivo)

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As ilustrações que acompanham a reportagem são de Bruno Legítimo, saiba mais de seu trabalho aqui.

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