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Apologia ao cuidado

A estratégia de redução de danos é porta de entrada para uma relação diferente com as substâncias químicas e alternativa à invencível Guerra às Drogas

por Nathan Fernandes Atualizado em 20 jul 2021, 15h05 - Publicado em 20 jul 2021 00h26
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(Clube Lambada/Ilustração)

ssim que chegou em uma das edições da festa Blum, a criadora e produtora do eventos Nikkatze se deparou com uma cena estranha. Várias das pessoas que participavam do rolê – que é um dos maiores encontros independentes de música eletrônica de São Paulo – estavam passando mal e desmaiando. “Acho que foi o caso mais grave que a gente já teve que lidar”, explica Nikkatze, que também é DJ.

O acolhimento teve apoio dos profissionais da T.E.C.O. (Tenda Especializada para Cuidar da sua Onda), um projeto de redução de danos (RD) que nasceu antes mesmo da criação da festa. “A Blum foi o espaço que me permitiu trazer à realidade esse ambiente, que eu já havia planejado na cabeça enquanto era só frequentadora da cena de entretenimento noturno”, revela. “Sempre notei uma carência muito grande desses espaços de cuidado nos ambientes de festa.”

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(Vitor Cohen/Fotografia)
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Como lembra o bioeticista Luis Felipe Valêncio, espaços de RD oferecem a oportunidade das pessoas pensarem nas suas relações com as drogas. “O principal potencial é educativo, tendo em vista que a gente não aprende redução de danos na escola. Os jovens brasileiros têm essa educação que é baseada no medo, na moralização religiosa”. Para Valêncio, que integra o portal Ciência Psicodélica e o Grupo de Pesquisa ICARO (Cooperação Interdisciplinar para Pesquisa e Divulgação da Ayahuasca), da Unicamp, essa educação moralista contribui para a criação de tabus em relação ao uso de drogas, o que só aumenta os riscos. “Como dizem as pessoas da área, a redução de danos é uma porta de entrada para o cuidado.”

“O principal potencial é educativo, tendo em vista que a gente não aprende redução de danos na escola. Os jovens brasileiros têm essa educação que é baseada no medo, na moralização religiosa. A redução de danos é uma porta de entrada para o cuidado”

Luis Felipe Valêncio, bioeticista

Não à toa, foi graças à T.E.C.O. que Nikkatze conseguiu dar o suporte necessário às pessoas que desmaiavam em sua festa, sendo possível ainda encontrar o motivo. “Descobrimos que havia uma menina distribuindo maconha sintética para a festa inteira, era uma droga falsa que tinha acabado de ser criada”, explica. “A tenda de RD foi essencial, já que só conseguimos descobrir o que estava rolando por causa das denúncias das pessoas que iam até lá levar os amigos e falar com os psicólogos.”

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Foi possível, assim, identificar a garota e interromper a distribuição. “Como se tratava de desmaios temporários, ainda conseguimos informar o pessoal sobre a importância de se fazer a testagem e saber a procedência das substâncias”, lembra a DJ e produtora.

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(Vitor Cohen/Fotografia)
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Se beber, não dirija

O conceito de redução de danos surgiu na Inglaterra, como um efeito colateral da Primeira Guerra Mundial. Durante o conflito, os soldados ingleses usavam morfina para aliviar as dores e acabavam ficando dependentes dos opióides. Por estarem a serviço do país, o Estado se viu obrigado a continuar fornecendo as substâncias, em vez de simplesmente interromper o uso, amenizando os riscos.

Em 1926, essa política foi oficializada no Relatório Rolleston, organizado pelo ministro da Saúde do Reino Unido na época, Humphrey Rolleston. Com o documento, os médicos podiam prescrever ópio oficialmente aos veteranos. Mas, mesmo se tratando de um “ato patriótico”, a medida era vista com desconfiança, e permaneceu sendo mal vista.

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(Vitor Cohen/Fotografia)

Foi só na década de 80, na Holanda, que a associação Junkiebond (União Junkie) despertou a atenção dos holandeses para os perigos da disseminação da hepatite B, através do compartilhamento de seringas contaminadas. Os riscos afetavam o país de forma geral. Assim, em 1984, o governo deu início ao primeiro programa de troca de seringas para usuários de drogas, em Amsterdã. A medida foi um marco porque promoveu os benefícios sociais esperados sem aumentar o consumo das substâncias.

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No Brasil, a medida foi adotada pela primeira vez em 1989, durante o “1º Seminário Santista sobre AIDS”, em Santos. Na ocasião, o governo municipal anunciou a distribuição de seringas a fim de conter a contaminação de hiv entre usuários de drogas injetáveis na cidade. Mas a ação foi interrompida por pressão do Ministério Público. Foi só em 1995 que a estratégia passou a ser usada novamente como política pública no país, sendo adotada, inclusive, em relação às drogas lícitas, como o álcool e o tabaco – basta lembrar dos avisos de “se beber, não dirija” ou das leis que proíbem o fumo em ambientes fechados.

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(Autor desconhecido/Fotografia)
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É proibido fumar

Entre os países da América Latina, as Guianas, o Suriname e o Brasil são os únicos que apostam na criminalização das drogas. “O mais importante é perceber que nenhum país do mundo conseguiu impor um comportamento abstêmio da sua população à força, de modo que devemos colocar a pessoa e suas necessidades na centralidade de qualquer prática de cuidado, analisando as características socioculturais que levam ao uso problemático de drogas”, analisa o advogado Henrique Apolinário, do Programa de Violência Institucional da ONG Conectas.

Em países que apostam na descriminalização – que é diferente da legalização –, onde os usuários são encaminhados aos serviços de saúde, e não à cadeia, os resultados são promissores. Portugal, por exemplo, que se viu afundado em uma crise social promovida pelo abuso de drogas, resolveu descriminalizar todas as substâncias, em 1999, tornando-se referência mundial na política de redução de danos.

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(Vitor Cohen/Fotografia)

Em 20 anos, apesar do consumo total de drogas ter se mantido, os portugueses viram a população de dependentes de heroína e cocaína, as substâncias mais problemáticas, cair de 1% para 0,3%. Contaminações por hiv reduziram à metade, e a porcentagem de pessoas presas por motivos relacionados às drogas foi de 75% para 45%, de acordo com dados da Agência Piaget para o Desenvolvimento (Apdes).

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“O uso de drogas existe desde sempre na história da humanidade, em todos os tempos e culturas. Já essa ideia de construir ‘um mundo livre de drogas’ é recente, parte de premissas obviamente falsas, impossíveis de alcançar e que causam um grande estrago”, observa a pesquisadora e redutora de danos Ana Cristhina Sampaio Maluf, que atua no projeto ResPire, do Centro de Convivência É de Lei. “A redução de danos simplesmente aceita que o uso de drogas existe, sempre existiu e continuará existindo, quer a gente queira ou não.”

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(Natasha Hollinger/Fotografia)

Como lembra Apolinário, a política de Guerra às Drogas é, na verdade, uma guerra às pessoas, já que contribui para o encarceramento em massa e a morte da parte mais vulnerável da população. Exemplos como o massacre policial realizado no Jacarezinho, o mais letal da história do Rio de Janeiro, em maio de 2021, só mostram os efeitos adversos desta guerra em que só as drogas vencem.

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“O uso de drogas existe desde sempre na história da humanidade, em todos os tempos e culturas. Já essa ideia de construir ‘um mundo livre de drogas’ é recente, parte de premissas obviamente falsas, impossíveis de alcançar e que causam um grande estrago”

Ana Cristhina Sampaio Maluf, pesquisadora

“Criminalizar definitivamente não é a solução e não está cumprindo o propósito de proteção da saúde, como é dito”, aponta Maluf. “As políticas de proibição servem muito mais a propósitos de controle social, de criminalização da pobreza e de legitimação do genocídio da população negra. É inadmissível seguir nesse regime de guerra e chamar isso de segurança pública.”

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(Projeto Brisa/Arquivo)

Pedagogia do afeto

A RD é uma alternativa à proibição porque coloca nas mãos dos usuários o gerenciamento dos próprios riscos e prazeres. O psicólogo Fernando Beserra, organizador do livro recém-lançado Redução de Danos em Contexto de Festas (Editora CRV) e co-fundador da Associação Psicodélica do Brasil, que mantém o Projeto Brisa, lembra que, em ambientes festivos, existem três pontos principais a serem considerados: o suporte às crises induzidas por substâncias; a testagem; e a troca de informações.

“Desde o seu início, a RD traz essa ideia de cuidado com pessoas que já são dependentes ou já fazem o uso abusivo de substâncias”, lembra Beserra. “Mas a RD em contexto de festas tem uma abrangência um pouco maior, porque, de fato, as festas são os lugares onde as pessoas tipicamente utilizam substâncias. Promover o cuidado a essas pessoas de forma mais universal parece interessante para evitar que precisem de cuidados mais intensos no futuro”.

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(Projeto Brisa/Arquivo)

Assim como na década de 1920, quando a estratégia foi aplicada na Inglaterra, ainda hoje ela é vista com desconfiança por aqueles que confundem cuidado com apologia. “A redução de danos não nega os riscos ou prega um uso indiscriminado de substâncias. Pelo contrário. O próprio nome ‘redução de DANOS’ já evidencia que há uma preocupação em relação aos danos que essas substâncias podem causar”, explica Maluf. “No entanto, ao invés de insistir em um discurso de ‘diga não’, que nunca funcionou, ela busca trazer informações baseadas na realidade e que fortaleçam o autocuidado das pessoas que optaram por fazer uso de substâncias, em vez de criminalizá-las.”

Beserra reforça a falácia da pedagogia do amedrontamento e do proibicionismo como estratégia para lidar com as drogas. “Fazer promoção da saúde, seja em contexto de festa ou não, envolve questões afetivas, porque não basta dar a informação científica. É claro que temos que ser orientados pela ciência, mas a informação deve ser vinculada ao afeto”, acredita. Assim, é na humanização que a estratégia parece encontrar seu maior mérito. Ou, como lembra o bioeticista Luis Felipe Valêncio, a redução de danos trata as pessoas como pessoas.

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