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Relacionamento abusivo: Manuela Xavier explica do começo ao fim

A psicanalista detalha como identificar os sinais, a importância da rede de apoio e como se recuperar do trauma

por Beatriz Lourenço Atualizado em 8 ago 2022, 15h19 - Publicado em 7 ago 2022 23h49
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(Clube Lambada/Ilustração)

alar sobre relacionamentos abusivos não é uma pauta fácil. É preciso ter cuidado, estudo e muita empatia. Para a psicanalista Manuela Xavier, essa necessidade partiu da própria experiência: mesmo com todo o conhecimento sobre o tema, ela ainda se viu presa nessa narrativa. “Sabia o que era violência doméstica e que briga de marido e mulher a gente mete a colher, sim. Mas não sabia sobre as sutilezas da violência psicológica”, relata. “Quando um homem não fala nada explícito, não entendemos como violência, e é.”

Foi aí que ela tomou para si a responsabilidade de alertar outras mulheres por meio da internet – usando uma linguagem simples e aproximando o conteúdo da cultura pop. “Esse diálogo dinamiza as teorias e o entendimento de cada conceito que vemos na psicologia”, diz. “Entendi as redes sociais também como uma rede de apoio no sentido de mostrar para as pessoas que elas não estão sozinhas e que essa é uma violência estrutural.”

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No Instagram, ela explica termos que fazem parte da manipulação e da disputa de poder em uma relação tóxica, como ghosting (quando a pessoa some do nada), gaslighting (a deslegitimação do que a mulher fala) e mansplaining (o ato de explicar o óbvio para a mulher). Além disso, Manuela analisa de onde vem a dificuldade de sair dessa espécie de teia na qual a mulher fica presa e não vê a saída. “Ficar tem a ver com essa construção de que nós precisamos tolerar a dor e ser responsável por fazer a família e a relação funcionarem”, explica. “A mulher entende que esse é seu papel e isso é um problema porque faz com que ela não se dê conta da violência que está vivendo.”

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“Ficar tem a ver com essa construção de que nós precisamos tolerar a dor e ser responsável por fazer a família e a relação funcionarem. A mulher entende que esse é seu papel e isso é um problema”

Segundo ela, todo esse processo tem a ver com a construção da autoestima, uma vez que a sociedade impõe que é o homem que “valida” a mulher. “Por terem sido historicamente objetificadas e subordinadas à dominação masculina, a noção de valor feminino tem a ver com o que o outro acha. A resolução, então, tem a ver com retomar a nossa própria valoração”, conta. Abaixo, você confere nosso papo completo com Manuela Xavier!

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Estamos vivendo um momento em que uma menina de 11 anos foi impedida de fazer um aborto, uma atriz de 21 anos foi criticada por entregar o filho para a adoção e o governo está discutindo uma cartilha para impedir o aborto. Como você analisa esses retrocessos?
Quando falamos de feminismo, fica parecendo que é sobre a esfera individual e isso se dá pelo equívoco do “meu corpo, minhas regras”. Não podemos esquecer que esse é um movimento político e toda a estrutura social, política e econômica foram construídas a partir da exploração do corpo das mulheres. O movimento de poder e hegemonia masculina, branquitude e o capitalismo também ocorre a partir da exploração desses corpos.

Avançamos ao longo do tempo, sim, mas é claro que não seria permitido que continuássemos avançando mais. Esse retrocesso é um movimento que as feministas já sabiam porque basta uma crise política ou econômica para que nossos direitos sejam revogados. Afinal, se as mulheres decidem não ter filhos, quem é que vai parir a força de trabalho? Ainda existe muita luta pela frente, não podemos relaxar. 

Você diz que passou por um relacionamento abusivo e, a partir daí, resolveu alertar outras mulheres sobre isso. De que forma a internet pode ser uma ferramenta que ajuda as mulheres a perceber essa situação?
Quando vivi o relacionamento abusivo, já era professora na Universidade Federal Fluminense (UFF), estava concluindo meu doutorado e já pagava as minhas contas… Digo isso para reforçar que tinha informação, sabia o que era violência doméstica e que briga de marido e mulher a gente mete a colher, sim. Não sabia sobre as sutilezas da violência psicológica – por mais que eu já falasse sobre esse tema, era muito mais na dimensão do que se vê. Quando um homem não fala nada explícito, não entendemos como violência e é. Aí quando me vi desamparada diante da violência que sofri, tomei para mim esse lugar. 

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Entendi a internet como uma ampliação da comunicação e também como rede de apoio no sentido de mostrar para as pessoas que elas não estão sozinhas e que essa é uma violência estrutural. O relacionamento abusivo traz um apontamento muito importante sobre raça e classe, por exemplo, ele é o ponto principal na vida das mulheres visto que somos socializadas para estar numa relação.

“Por terem sido historicamente objetificadas e subordinadas à dominação masculina, a noção de valor feminino tem a ver com o que o outro acha. A resolução, então, tem a ver com retomar a nossa própria valoração”

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(Manuela Xavier/Divulgação)

Como identificar uma relação abusiva?
Há diversos sinais que podem ser falados, mas o principal é: se atente a você. Se a relação te deu desconforto em algum momento, há algo de errado. Nós, mulheres, acabamos passando por cima dessa sensação porque temos aquela coisa masoquista de “suportar a dor” – que vai no mesmo sentido do “mulher bonita tem que sofrer”. O que precisamos fazer é não suportar mais. 

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Se um homem grita com você, não dá para colocar numa conta de estresse. Se ele controla suas roupas ou com quem você fala, isso está errado porque ele não pode intervir no seu modo de viver. Se ele faz você se sentir humilhada, diminuída, em dívida ou culpada, esse é um relacionamento abusivo. Você sentir que precisa gerenciar todo o caos, é um relacionamento abusivo. Perceba como se dá o jogo de poder entre o casal, se ele virou disputa, já não é algo harmônico. É preciso ressaltar que isso acontece não só nas relações heterossexuais, mas em todo tipo de relação.

Nossa autoestima pode influenciar a forma como nos relacionamos e as pessoas que aceitamos na nossa vida? Como trabalhar isso para garantir relações saudáveis?
Geralmente, a autoestima está muito ligada ao corpo, mas não é só sobre isso. Na verdade, o que faz a gente ficar em paz consigo é a plena consciência da nossa capacidade de realização. A autoestima tem a ver com o valor que a gente enxerga em nós. E as mulheres, por terem sido historicamente objetificadas e subordinadas à dominação masculina, nossa noção de valor tem a ver com o que o outro acha da gente. A resolução, então, não tem a ver com o corpo, mas com retomar a nossa própria valoração. Por não ter essa noção, topamos qualquer parada por medo de não ficar sozinha. 

Por que mesmo quando identificamos relações tóxicas ou abusivas, demoramos para nos dar conta ou ir embora?
Essa pergunta tem a ver com o tempo. A gente só vai saber que era uma relação abusiva depois de ter saído dela. Há muitas camadas aí: a mulher não sabe, mas ela sente o que está acontecendo. Ficar na relação tem a ver com essa construção de que a mulher precisa tolerar a dor e ser responsável por fazer a família e a relação funcionarem. Ela entende que esse é seu papel e isso é um problema porque faz com que ela não se dê conta da violência que está vivendo. 

Também existe um pacto social que protege os homens. O cara que nos abusa é defendido e tem sempre uma justificativa do porquê ele fez aquilo. É aquele famoso “quem conhece sabe que ele não é assim” – e aí a mulher fica achando que o problema é seu. Ela pensa: “já que ele é legal com todo mundo, eu que estou errada”. 

Muito se fala sobre esse processo de enfrentar esses tipos de relações e pouco sobre o que vem depois. Após uma relação abusiva, qual é a melhor forma de se reconstruir e lidar com os relacionamentos que virão?
Esse realmente é um tema que ninguém aborda. Quando chegou essa hora para mim, fiquei me sentindo a esquecida no churrasco. Sair da relação foi libertador. Entendi que era uma relação abusiva e, quando passou tudo isso, vi os danos que ficaram e a sensação de que há um fantasma te perseguindo. 

Depois do relacionamento abusivo, chegam aquelas defesas que você tinha e não sabia – e elas atingem as próximas relações. Você responde aos seus novos companheiros como se você estivesse respondendo ao ex: antes do cara fazer alguma coisa você já se antecipa como se ele fosse fazer, mas temos que lembrar que essa é outra pessoa, outra relação e outra dinâmica. É preciso de muito diálogo e o novo parceiro precisa saber o que aconteceu, dos seus traumas, e dos gatilhos. Além disso, não dá para ficar sem assistência psicológica. 

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(Manuela Xavier/Divulgação)

Qual o papel da rede de apoio e quando ela pode/deve interferir?
O que a gente costuma ver são pessoas que estão mais preocupadas em denunciar do que acolher a vítima. Isso não é uma crítica à rede de apoio porque eles fazem isso por amor e querem resolver o problema. Se você está próximo de alguém que vive uma relação abusiva e essa pessoa ainda não se deu conta, não se apresse em dizer porque a pessoa vai ficar na defensiva, já que ela está refém dessa narrativa que o abusador cria para ela. 

A melhor forma de lidar com isso é permanecer atento aos sinais e ficar por perto. Encontre formas sutis de abrir os olhos! Mostre um filme ou uma série que se trate do tema e não deixe ela se isolar porque, com você por perto, ela terá a confiança de que você não vai abandonar quando ela tiver coragem para dizer que não quer mais. Ajude-a a se fortalecer para que ela consiga sair dessa relação. É um trabalhão, mas é o mais efetivo a se fazer. 

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Estamos vivendo um momento em que uma menina de 11 anos foi impedida de fazer um aborto, uma atriz de 21 anos foi criticada por entregar o filho para a adoção e o governo está discutindo uma cartilha para impedir o aborto. Como você analisa esses retrocessos?
Quando falamos de feminismo, fica parecendo que é sobre a esfera individual e isso se dá pelo equívoco do “meu corpo, minhas regras“. Não podemos esquecer que esse é um movimento político e toda a estrutura social, política e econômica foram construídas a partir da exploração do corpo das mulheres. O movimento de poder e hegemonia masculina, branquitude e o capitalismo também ocorre a partir da exploração desses corpos.

Avançamos ao longo do tempo, sim, mas é claro que não seria permitido que continuássemos avançando mais. Esse retrocesso é um movimento que as feministas já sabiam porque basta uma crise política ou econômica para que nossos direitos sejam revogados. Afinal, se as mulheres decidem não ter filhos, quem é que vai parir a força de trabalho? Ainda existe muita luta pela frente, não podemos relaxar. 

De que forma o impedimento de um aborto pode impactar psicologicamente uma mulher?
A consequência de um aborto é radical. Sobre a decisão em si, ela sente que foi a melhor coisa que fez. Mas tem que lidar com a violência social e com o estigma. Por ser um tabu, ela fica sem ter com quem conversar e vários sentimentos são obstruídos. Quando vamos destrinchando na análise, percebemos que a culpa não tem a ver com a decisão, geralmente é aquela culpa implantada socialmente de que o ato é um pecado. 

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Já nos casos de um impedimento do aborto, ela se sente uma pura barriga de aluguel e alheia de sua própria vida. A revogação do aborto significa tirar dessas mulheres a autonomia sobre o que ela quer fazer. As consequências disso é o adoecimento psíquico. 

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