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Olhar para o outro é urgente

A ativista Vivi Torrico entrega marmitas e arruma empregos para moradores de rua com seus projetos Solidariedade Vegan e Trampolink

por Beatriz Lourenço 18 fev 2022 00h44
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(arte/Redação)

pandemia da covid-19 trouxe consequências para além da doença, como a perda de emprego e a falta de renda, o que levou muitas pessoas a irem morar nas ruas. Segundo dados do Ipea divulgados em 2020, mais de 220 mil brasileiros vivem nessa situação. O aumento foi de 140% em relação ao ano de 2012, mostrando que as ações emergenciais propostas ao longo dos anos não são suficientes. 

Em São Paulo, a maior capital do país, o número de pessoas sem moradia passou de 24.344, em 2019, para 31.884 no final de 2021 – ou seja, um aumento de 31%, de acordo com o Censo da População em Situação de Rua, feito pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) da prefeitura. A pesquisa aponta que o perfil majoritário é de homens com idade economicamente ativa média de 41,7 anos, naturais da cidade de São Paulo (39,2%) e pretos ou pardos (70,8%). 

Foi vendo com indignação esse cenário caótico que Vivi Torrico decidiu agir: se reuniu com seu marido, o músico João Gordo, os filhos e o amigo e artista de rua Mundano para criar o projeto Solidariedade Vegan. O objetivo inicial era levar marmitas para quem estava com fome mas, ao se envolver cada vez mais com a população vulnerável, sentiu que precisava ir além e ajudá-los na busca por empregos. Assim nasceu o Trampolink – projeto que, desde abril do ano passado, já ajudou na contratação de, em média, 90 pessoas. 

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Acompanhamos o recrutamento na ocupação Luiz Gama, que nasceu há três meses e é coordenada pela Frente de Luta por Moradia. O prédio de quatro andares tem 27 apartamentos, como são chamados os quartos, e cada um acomoda até três famílias. Lá, alguns trabalham com bicos, vendem itens no semáforo ou já tem um emprego temporário. Porém, a maioria está em busca de um sonho: a carteira assinada. 

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(A ocupação Luis Gama, localizada no bairro Cambuci, consiste em prédio de quatro andares com 27 apartamentos. Em cada um deles, vivem até três famílias. Gsé Silva/Fotografia)

Quando a equipe do Trampolink chega, a fila para o cadastramento logo se organiza e todos os documentos são separados. É necessário apenas o RG e a carteirinha de vacinação. Na entrevista, Vivi pergunta a idade, a experiência, a escolaridade e se há alguma questão física. Após a ficha ser preenchida, ela fotografa o candidato e todas essas informações vão para um banco de talentos. A partir daí, o currículo é montado e fica disponível para as empresas parceiras e para a própria pessoa enviar para onde quiser. 

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“O emprego é uma segurança que garante a comida do dia seguinte e a possibilidade de um futuro melhor. Vemos uma completa mudança em quem é contratado: há o aumento da autoestima e a satisfação pela vida”, afirma Eduarda Vaz, coordenadora da ocupação. “Essa parceria com o Trampolink nos dá esperança e nos deixa muito felizes.” 

“O emprego é uma segurança que garante a comida do dia seguinte e a possibilidade de um futuro melhor. Vemos uma completa mudança em quem é contratado: há o aumento da autoestima e a satisfação pela vida”

Eduarda Vaz
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(Vivi Torrico e Paulo Escobar fazem o recrutamento dos moradores. Eles informam escolaridade, experiência, número dos documentos e carteirinha de vacinação. Gsé Silva/Fotografia)
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DNA solidário

Para entender mais sobre como o projeto começou, é preciso voltar alguns anos na história e explicar a trajetória de Vivi, a fundadora. Em entrevista à Elástica, a argentina conta que o olhar altruísta vem de família. “Minha mãe fazia trabalho voluntário mesmo com cinco filhos e dois trabalhos. O tempo livre que ela tinha no final de semana era usado para cozinhar para a igreja. É algo que vivenciamos desde pequenos em Buenos Aires”, declara. “Estou falando de uma família que vem da periferia e não tinha dinheiro sobrando. Mesmo assim, essa mobilização era muito importante e fazia bem para nós.”

Foi por isso que, quando seus filhos eram pequenos, a própria Vivi fez a mesma coisa – só que, dessa vez, em São Paulo. “Pesquisei uma organização de voluntariado e não encontrei nenhum programa para crianças. A partir disso, levantei essa inquietude e levei para uma ONG que trabalha com animais”, lembra. “Depois de conversar com os donos, assumimos o compromisso de ir com os pequenos ajudá-los todo o domingo. Foi maravilhoso.” De lá para cá, eles nunca mais pararam. Passaram por diversas organizações até encontrar a Pimp My Carroça, do artista Mundano, que cuida de catadores e catadoras de recicláveis. 

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(Gsé Silva/Fotografia)

Para ela, o voluntariado é mais visto por setores da igreja e a maioria das pessoas não entende que a solidariedade é uma característica humana: “Percebo que há uma associação dessas ações àqueles que têm muito tempo livre, dinheiro ou que são hippies”.

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Vivi e João são donos do restaurante Central Panelaço, localizado no Bixiga. Quando chegou a pandemia, o casal precisou fechar as portas – deixando na geladeira um estoque razoável de congelados. Ao ver pessoas pedindo comida, a ativista resolveu cozinhar tudo  o que sobrou e distribuir pelo bairro. Na volta para casa, encontrou um senhor de 70 anos e, com apenas um olhar, tudo mudou. 

“No momento em que nos olhamos e nos reconhecemos, foi como se tivesse caído um raio entre nós dois. Vi seu olhar de medo, de fome, de sede e de angústia num único segundo”, diz. “Fiquei desolada. Sou uma pessoa que nunca se permite chorar na vida, mas dessa vez estava em prantos. Então, para isso ter acontecido, todos entenderam meu desespero. Na hora, liguei para o Mundano, contei o que tinha acontecido e logo combinamos uma reunião para tentar traçar um plano e ajudar essas pessoas.” No encontro, eles decidiram preparar marmitas para os desabrigados. 

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(Gsé Silva/Fotografia)

O marido, que tinha acabado de sair da UTI, foi peça-chave para que Vivi pudesse colocar a decisão em prática, já que ele ficou encarregado de cuidar da casa, dos filhos e do santuário de bichos. Duas cozinheiras e uma nutricionista ajudaram na hora de produzir as marmitas. André e Celso, do Pimp My Carroça, ficaram responsáveis pela distribuição. A ajuda ocorre de domingo a domingo, sem descanso – afinal, precisamos de alimento todos os dias. “Foi um momento de muito amor”, diz a empreendedora. No começo, foram 250 pratos por dia, que viraram 500 e, hoje, são mais de 120 mil já entregues. Isso só é possível por meio de doações e por um crowdfunding criado no Catarse. 

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(Gsé Silva/Fotografia)

O cuidado não é singular

O primeiro ano de trabalho foi um aprendizado constante e uma das maiores lições foi se dar conta de que não cabe a nós querer entender, e muito menos julgar, quem vive na rua. “É muito difícil querer saber tudo sobre todos. No começo, a gente quer que a pessoa explique o que a levou a essa situação, mas há muitos motivos diferentes e isso não é algo que nos pertence. A minha ajuda não depende desses motivos”, declara. 

Ao mesmo tempo, o grupo já recusou apoiadores por conta desse posicionamento: “Nós entregamos comida no Centro de Referência da Diversidade, um espaço que cuida de pessoas LGBTQIA+ e trabalhadores do sexo que são HIV+. Percebemos que alguns lugares não gostavam de ajudar lá por conta disso, aí nos movimentamos. Uma vez, uma pessoa nos doou um valor em dinheiro e disse que não queria que ajudássemos um certo bairro porque, segundo ela, havia muito ladrão. Não aceitamos a doação. Cada um encontra sua própria maneira de sobreviver.”

Outra situação que Vivi notou foi a quantidade de pessoas qualificadas. “São professores, mecânicos e até graduados”, afirma. De fato, a pesquisa do Censo confirma essa percepção: 15,3% concluíram o ensino fundamental, 92,9% sabem ler e escrever, 21,4% têm ensino médio completo e 4,2% concluíram o ensino superior.

“É muito difícil querer saber tudo sobre todos. No começo, a gente quer que a pessoa explique o que a levou a essa situação, mas há muitos motivos diferentes e isso não é algo que nos pertence. A minha ajuda não depende desses motivos”

Vivi Torrico
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(Na ocupação, cada família é responsável pelo seu espaço. Quando sobra dinheiro no mês, os moradores tentam organizar os cômodos – principalmente o banheiro. Gsé Silva/Fotografia)

O mecânico Júlio César faz parte desse dado. Ele chamou atenção por ser qualificado e desenvolto. Logo, a equipe conseguiu um celular e um emprego com carteira assinada. “É claro que não deu certo”, conta. O caso mostrou que o processo de adaptação nem sempre é fácil. “Nós fizemos tudo muito rápido e não acompanhamos o tempo dele processar essa mudança.” Por isso, a segunda tentativa foi com mais calma. “Conhecemos o Marquinhos e fizemos tudo de forma diferente: conseguimos um trabalho para ele como gari, pedimos ajuda para as assistentes sociais da prefeitura e pensamos tudo de forma sistematizada”, relata a ativista. “Ele foi assimilando cada conquista passo a passo e deu super certo. Hoje, já faz um ano e quatro meses que ele está empregado.” 

Ela levou o caso para o padre Júlio Lancelotti e, com seus conselhos, decidiu que se era possível fazer uma recolocação, poderia fazer mais e tentar mitigar o problema do desemprego na cidade – que atinge 3,4 milhões de pessoas, segundo o IBGE​​. Foi aí que o sociólogo Paulo Escobar e a designer Paula Luna acreditaram no projeto e entraram para ajudar. Em menos de seis meses, 69 pessoas já estavam contratadas. As primeiras vagas foram em restaurantes veganos e a maior quantidade de contratações na fábrica de panetone Romanato, com quase 30 vagas. “Na primeira leva de entrevistas, foram 15 pessoas. O momento em que estávamos na kombi foi muito incrível porque era uma energia maravilhosa de esperança. Eles se deram conta que nós estávamos acreditando em cada um”, conta Vivi. “Nossa ideia não é só fazer a recolocação, mas criar vínculos e nos jogar junto. Por isso o nome que demos para essa ação foi Trampolink.”

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(Gsé Silva/Fotografia)

Para o grupo, o cuidado não é uma palavra singular. Isso porque quando limpamos a casa, não ficamos restritos a um só cômodo, mas organizamos cada detalhe. “Com as pessoas é a mesma coisa: a gente pensa na alimentação, no trabalho, na higiene, fazemos brinquedoteca para as crianças nas ocupações, doamos roupas e oferecemos orientação psicológica“, explica. “Alguns não têm a menor condição de permanecer nas ruas por conta da idade e do grau de vulnerabilidade. Aí propomos uma troca: fortalecemos as ocupações e elas nos dão vagas de moradia.” 

“Nossa ideia não é só fazer a recolocação, mas criar vínculos e nos jogar junto. Por isso o nome que demos para essa ação foi Trampolink”

Vivi Torrico
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(Gsé Silva/Fotografia)

Luz no fim do túnel

Na hora de fazer a conexão entre as empresas e os profissionais, a equipe envia os currículos junto de uma apresentação do Trampolink e faz reuniões para explicar como funciona o projeto. Há também um manual feito por especialistas em RH que ajudam as duas partes a entenderem o que são ou não atitudes de bom tom. Eles listam, por exemplo, que devem tratar o funcionário da mesma forma que os outros, reagindo positivamente as conquistas e negativamente os atrasos.

“A falta de moradia é, sim, a principal barreira para a contratação. Muitas vezes, mesmo após nossas reuniões, as empresas pedem o comprovante de residência. Isso mostra a falta de escuta e de entendimento sobre o que é ser morador de rua. É uma burocracia muito difícil de alterar”, revela.

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Se por intermédio de filantropia esse processo já é difícil, sem esse trampolim é quase que impossível. É por isso que quando a contratação ocorre, a oportunidade se mostra como uma luz no fim do túnel. “Eu não imaginava o que eles sentiam, até que uma vez uma das candidatas disse que poder falar no emprego que mora em um viaduto é libertador. Ela contou que nos trabalhos anteriores se escondia o tempo todo por medo de alguém passar e vê-la”, disse. “Quando eles podem ser quem são e a empresa compreende, muda toda a dinâmica. Eles ficam mais leves e mais focados nas tarefas.” 

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“A falta de moradia é, sim, a principal barreira para a contratação. Muitas vezes, mesmo após nossas reuniões, as empresas pedem o comprovante de residência. Isso mostra a falta de escuta e de entendimento sobre o que é ser morador de rua”

Vivi Torrico

A próxima corporação que fará parceria com o Trampolink é a Leroy Merlin, que criou um sistema de apadrinhamento. O funcionário antigo ganhará um bônus para ser mentor dos novos contratados. Serão 10 vagas para começar. Ao todo, há mais de 200 inscritos no banco de talentos de Vivi. “Tento gritar todos os dias que todo mundo deveria ajudar o próximo, mesmo que seja do seu próprio jeito. Se você não olhar para o outro e permitir-se amá-lo, o problema só vai crescer.”

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(Para Vivi, pensar apenas na alimentação é pouco. É preciso cuidar de tudo: moradia, bem-estar e apoio emocional. Gsé Silva/Fotografia)
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Como ajudar

Quem quiser ajudar o Trampolink e o Solidariedade Vegan pode entrar em contato com a equipe pelo Instagram dos projetos: @trampolink21 e @solidariedadevegan. Outra opção é apoiar as ações pela pela plataforma Catarse.

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As imagens que acompanham esta matéria foram criadas por Gsé Silva, conheça mais de seu trabalho aqui.

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