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Família é construção

"Manhãs de Setembro", nova série da Amazon Prime Video, tem Liniker como protagonista e traz representatividade de verdade para mulheres trans brasileiras

por Alexandre Makhlouf 25 jun 2021 00h26
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(Clube Lambada/Ilustração)

 manhã desta sexta-feira, 25 de junho, amanheceu fria lá fora, mas com estreia boa que esquenta o coração. É que, a partir de hoje, a série Manhãs de Setembro, produção original brasileira da Amazon Prime Video, finalmente está disponível em mais de 240 territórios. Dirigida  por Luis Pinheiro e Dainara Toffoli, com a ideia original de Miguel de Almeida, a série conta a história de Cassandra – interpretada por Liniker, primeiro trabalho da cantora como atriz de cinema –, mulher trans que, depois de 30 anos, dois meses e 19 dias, finalmente consegue alugar sua própria quitinete no centro de São Paulo. O dia, muito especial, acaba tendo uma reviravolta surpreendente: é também a data em que Leide (vivida pela impecável Karine Teles), figura do passado de Cassandra com quem ela ficou por apenas uma noite, aparece em sua porta com Gersinho, um garoto de 10 anos, filho que Cassandra nunca soube que tinha.

A primeira coisa a se dizer sobre a série, que tem apenas 5 episódios, é que o gosto de “quero mais” só aumenta à medida que você devora os capítulos. Em um contexto em que o público está acostumado a consumir histórias de pessoas LGBTQIA+, em especial sobre pessoas trans, pautadas pela narrativa da transição, da violência e da superação, Manhãs de Setembro destoa dessa linha ao trazer um enredo que fala sobre autonomia, independência, família, amor e afeto. “Enquanto pessoa trans e preta, assisto esse conteúdo e aprendo que é possível ser quem eu sou. A gente tem a saúde mental muito complicada, especialmente nos dias de hoje. Ter uma representatividade pautada por afeto, família e amor traz esperança, algo que a gente precisa como sociedade”, explica Alice Marcone, uma das roteiristas por trás da história de Cassandra. “Isso é importante não só para pessoas trans e pretas, mas para a sociedade como um todo. Essa série vai chegar nos lares do Brasil e do mundo trazendo realidades que sempre foram muito marginalizadas, excluídas. Ao construir uma ideia de família e de afeto, que se relaciona com a sociedade como um todo, a gente cria inclusão, transforma o mundo a partir disso.”

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(Amazon Prime Video/Divulgação)

“Enquanto pessoa trans e preta, assisto esse conteúdo e aprendo que é possível ser quem eu sou. A gente tem a saúde mental muito complicada, especialmente nos dias de hoje. Ter uma representatividade pautada por afeto, família e amor traz esperança, algo que a gente precisa como sociedade”

Alice Marcone, roteirista

O diretor reforça a fala de Alice e completa, afirmando que a intenção sempre foi levar a discussão e a representatividade para pessoas trans para um novo lugar, uma evolução da pauta. “Além disso, ter uma protagonista preta e trans nesse momento obscuro de extrema direita também é importante. Nosso presidente barrou grana de cinema para projetos como esse. Os streamings como a Amazon Prime Video nos dão liberdade para propor a personagem que a gente quiser, e isso valida esse afeto”, pontua Luis.

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(Amazon Prime Video/Divulgação)

Para ver e ouvir

Com uma protagonista como Liniker, dona de uma voz envolvente e de uma potência vocal única, é natural que os roteiristas e diretores incorporassem a música quase como um importante personagem da série. Cassandra, que trabalha como motogirl para pagar as contas, fazendo entregas em meio ao caos da capital paulista, tem o sonho de ser cantora e se apresenta, quando consegue, na boate de uma amiga. Nesses momentos, vale aumentar o volume da TV ou do computador e se deixar levar por canções do naipe “Como vai você” e “Paralelas”, versões que levaram este que vos fala a voltar a cena e assistir/ouvir tudo de novo.

O lado cantora de Cassandra, aliás, tem forte inspiração em Vanusa, um ícone da música brasileira que, nem sempre, teve a notoriedade merecida em seu meio. “Ela foi vanguardista e mergulhar na carreira dela para a personagem me fez entender como, muitas vezes, algumas narrativas e fazeres artísticos no Brasil são invisibilizadas e reduzidas a pequenos deslizes, como no lance do hino nacional. A gente precisa cuidar das nossas referências, porque o Brasil é um país muito rico. Enquanto artista e fazedora de arte, existe esse medo de ser apagado, das nossas obras serem esquecidas por meme, por cancelamento ou qualquer outro viés. Vanusa é um ícone no melhor sentido da palavra e falo isso pela representatividade dela dentro da música. Ela sempre foi muito além do tempo dela”, conta a protagonista. 

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(Amazon Prime Video/Divulgação)

Ainda que esse tenha sido seu primeiro trabalho em uma série, Liniker lembra que sua formação inicial é no teatro. Nascida em Araraquara, interior de São Paulo, ela recorda quando largou a vida na cidade natal para tentar a sorte e investir na carreira na capital – e revela que encontrou muitas semelhanças e inspirações com a personagem ao longo das gravações. “Cassandra não está distante de mim, eu venho do corre, sou de uma família preta brasileira. Vejo amigas próximas não terem o mesmo acesso que eu, trabalhando sem fama e sem visibilidade. Construir a Cassandra foi humanizar uma personagem e trazer pra dentro da tela que nós, pessoas pretas, somos muito diferentes umas das outras. Cassandra fala com a realidade, o trabalho dela é como entregadora, um trabalho totalmente desumanizado dentro de leis trabalhistas. Ela, pela primeira vez em 30 anos, tem um teto só dela – coisa que muitas outras travestis e pessoas trans com essa idade não conseguem ter.”

A multiplicidade de personagens trans e as histórias de amor, as redes apoio e o acolhimento entre elas, algo que normalmente não ganha tempo de tela em superproduções dos streamings, é com certeza a mais gostosa surpresa de Manhãs de Setembro. Além de Alice na equipe de roteiro, várias outras pessoas trans também desempenharam papéis na produção e no desenvolvimento da série. Outro detalhe importantíssimo é que a grande maioria das dubladoras de Cassandra, dos mais de 30 idiomas em que a série foi dublada para ganhar o mundo, são mulheres trans – prova de que a representatividade foi, de fato, levada a sério. 

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(Amazon Prime Video/Divulgação)

Outra participação marcante na série é a de Linn da Quebrada, que vive Pedrita, amiga de Cassandra e outra das cantoras/performers da boate em que ela se apresenta. Ainda que presente em apenas um capítulo, Linn divide com Liniker e Clodd Dias – que interpreta Roberta, a dona da boate – uma das cenas mais bonitas de toda a produção. Deitadas na cama depois de uma delas passar por um término de relacionamento, elas falam sobre como mulheres trans, em especial as que são pretas e periféricas, são negadas de afeto e preteridas pelos homens com quem se relacionam.

“Cassandra não está distante de mim, eu venho do corre, sou de uma família preta brasileira. Vejo amigas próximas não terem o mesmo acesso que eu, trabalhando sem fama e sem visibilidade. Construir a Cassandra foi humanizar uma personagem e trazer pra dentro da tela que nós, pessoas pretas, somos muito diferentes umas das outras”

Liniker, cantora e atriz

“De modo geral, a presença da Linn e de todas as personagens trans que a gente tem na série falam muito também dos diferentes modos de ser uma mulher trans, de pensar a vida sendo uma mulher trans e travesti. A Pedrita, a Cassandra e a Roberta estão sempre em oposição, partem de lugares diferentes, falam coisas diferentes, tem opiniões diferentes sobre os mesmos assuntos. Ter essa diferença dentro da diferença – nós, o que o mundo hetero cis branco considera diferente – foi muito importante na construção da série. Uma das grandes armadilhas da ideia de representatividade é colocar um grupo inteiro, milhares de pessoas, dentro de uma só. É impossível dar conta de um grupo em uma única vivência”, diz Alice. O que só reforça algo que, mais e mais, falamos por aqui para levar a discussão adiante: representatividade não é cota e, sim, sobre trazer diversidade dentro de todos os cenários. A presença de diversas mulheres trans no enredo, inclusive, contribui para trazer também uma brasilidade, Alice completa. “Tivemos uma pesquisa de grandes dimensões sobre a realidade das travestis, e tenho certeza que isso vai gerar identificação com as espectadoras LGBTQIA+. Mesmo dublada e legendada em mais de 30 línguas, o pajubá e as palavras de raiz iorubá serão mantidos em todas.”

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(Amazon Prime Video/Divulgação)

Famílias possíveis

As redes de apoio entre pessoas trans mostram também algo que, para pessoas LGBTQIA+, é muito claro: a família de sangue, aquela que nos colocou no mundo, nem sempre é de fato a nossa família. Dos casos mais graves e absurdos, em que pais e mães colocam seus filhes para fora de casa por conta de orientação e gênero, aos casos em que existe falta de aceitação, que exclui e oprime essas pessoas dentro de seus lares; tudo isso cria um cenário em que laços de amizade se tornam nossas verdadeiras famílias. Mais do que isso: Manhãs de Setembro traz mais perspectivas em relação à maternidade, não só pela recém-descoberta de Cassandra, mas também por humanizar milhares de mães que, assim como Leide, enfrentam intensas dificuldades para criarem seus filhos.

“A Leide, assim como os outros personagens, é muito complexa. Às vezes ela acerta, mas erra com muita frequência, e acho que é um espelho triste da realidade de milhões de pessoas do nosso país, que vivem nessa condição de correr atrás de subemprego. Vivemos um momento de desmonte do trabalho formal, isso é muito grave, e a Leide e a Cassandra estão presas nessa dificuldade. A Leide não tem casa, outro problema seríssimo do nosso país, que vinha diminuindo, mas agora voltou a aumentar. A maternidade no meio disso tudo é o que faz com que a Leide tenha ainda algum prumo. O amor pelo filho impulsiona ela a não desistir. Acho que é só por isso que ela procura a Cassandra, porque é um desejo do filho”, conta Karine Teles. 

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(Amazon Prime Video/Divulgação)

“Vivemos um momento de desmonte do trabalho formal, isso é muito grave, e a Leide e a Cassandra estão presas nessa dificuldade. A Leide não tem casa, outro problema seríssimo do nosso país, que vinha diminuindo, mas agora voltou a aumentar. A maternidade no meio disso tudo é o que faz com que a Leide tenha ainda algum prumo. O amor pelo filho a impulsiona a não desistir”

Karine Teles, atriz
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Ela, que já viveu uma mãe reaça em Que Horas Ela Volta e uma assassina de aluguel em Bacurau, lembra que a realidade de Leide não é muito diferente da que ela mesma experimentou quando nova, ao crescer em uma família de classe média baixa que morava em um BNH, conjunto habitacional. E que tudo isso foi levado em consideração na construção de sua personagem. “A maternidade da Leide é uma maternidade exausta, sozinha, de dez anos ralando. A construção dessa possível nova família é a coisa mais bonita da série, toca nesse fator que eu acho tão importante, a certeza que eu tenho de que família não é uma coisa nata. Família é construção. A maternidade da Leide também espelha a realidade de milhões de mulheres do nosso país que estão ali sozinhas, sem nenhum amparo. Ela é uma pessoa que está no limite e fiz o exercício de pensar o que me levaria a esse limite para agir como ela.” 

E é nessa ideia de construção, de encontrar apoio e afeto no impossível, na dificuldades mais extremas, que Manhãs de Setembro chega e promete arrancar lágrimas e risadas de quem assistir. Por aqui, esperamos que sejam os primeiros cinco episódios de uma história que só cresça e que atinja cada vez mais pessoas. “Antes de qualquer bandeira, esse âmago do nosso projeto, que é falar de amor e de família, vai tocar as pessoas. Enquanto consumidora, estou ávida por esse tipo de produto, que celebra nossas narrativas pelo amor e não pela violência, não pela morte. A gente precisa celebrar a esperança da vida ser possível”, comemora Alice.

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