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Belas artes

Museu Transgênero de História e Arte é inaugurado online mirando a preservação da cultura trans no Brasil

por Artur Tavares 8 jul 2021 21h57
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(Clube Lambada/Ilustração)

s artes vivem um momento de transformação. Notando séculos de privilégios eurocêntricos e masculinos na produção e divulgação artística, curadores e pensadores em todo o planeta transitam por um movimento que tem trazido luz para um resgate histórico e um fomento contemporâneo de trabalhos feitos por uma diversidade maior de corpos. Ao mesmo tempo, a autonomia do mundo virtual permite que iniciativas inovadoras surjam e se multipliquem a todos os momentos.

A mais recente dessas iniciativas é a inauguração virtual do MUTHA – Museu Transgênero de História e Arte. Concebido pelo artista Ian Habib, o espaço tem a ambiciosa intenção de se tornar o maior museu de catalogação, divulgação e preservação da memória da arte produzida por corpos transsexuais.

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Aberto com duas exposições em cartaz, chamadas “Transespécie” e “Transjardinagem”, o MUTHA reúne obras de 56 artistas do Brasil e do mundo, sendo 25 deles naturais da Bahia, a terra de Ian Habib, que explica: “Acreditamos que a produção do Norte e do Nordeste do Brasil é exuberante e está mudando todo o panorama da arte brasileira. Mais de 70% das pessoas expostas não se encontra no Sudeste.”

Além de idealizador do museu, Ian também é pesquisador, poeta, performer e professor, um jovem dedicado a promover uma mudança no estado da arte brasileiro. Nós conversamos com ele. Confira:

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(Museu Transgênero de História e Arte/Divulgação)

Ian, me conta um pouco sobre você. Como a arte entrou na sua vida e se tornou uma plataforma para debater ideias sobre corpos trans?
Trabalho com arte desde os 15 anos mas, desde criança, minhas experiências corporais indicavam um interesse muito grande pela transformação corporal, que é o tema que perpassa não só todo o MUTHA como obra artística, mas também meu olhar em curadoria trans. Apesar de eu ter me formado na área da performance e do corpo, minhas obras são pensadas sempre de forma transdisciplinar. E quando eu digo “transdisciplinar”, é porque eu compreendo o prefixo “trans” como movimento, no sentido de entre, através de, de um lado para o outro. Então “trans” nos meus trabalhos são sempre simultaneidades entre identidades transgêneras e perspectivas conceituais “trans”, que desfazem a fixidez e a universalidade de identidades, territórios, espécies e sexos.

Certidão, Anis Yaguar
Certidão, Anis Yaguar (Museu Transgênero de História e Arte/Divulgação)

Você é pesquisador, poeta, professor, faz performances, e agora está fundando um museu com curadoria incrível. A transição auxiliou nesse transbordar intelectual na sua vida?
Acredito que transição é um movimento perpétuo e infindável, e que todos os seres e entes existentes transicionam a cada instante. Esses dias mesmo conheci um ser lindo chamado Crepidula marginalis [um tipo de molusco], que muda seu sexo durante seu curso de vida. Também répteis, insetos, peixes e os estados das matérias mudam suas formas no tempo. Quando compreendi que a única certeza da vida é a transformação, e que ela não está somente em um momento específico, decidi assumir esse lugar tão frutífero em todas as minhas investigações artísticas na performance, poesia, curadoria e pesquisa.


“Esses dias mesmo conheci um ser lindo chamado Crepidula marginalis [um tipo de molusco], que muda seu sexo durante seu curso de vida. Também répteis, insetos, peixes e os estados das matérias mudam suas formas no tempo”

Sem título, Lino Arruda
Sem título, Lino Arruda (Museu Transgênero de História e Arte/Divulgação)

Você teve um espetáculo censurado em 2018, e hoje, três anos depois, inaugura um museu totalmente dedicado a arte feita por corpos trans. Com tem sido essa jornada em um país cada vez mais reativo e conservador?
Em 2018, por ocasião da censura do meu solo autobiográfico “Sebastian” no Festival de Teatro Universitário de Blumenau pela prefeitura da cidade de Gaspar, compreendi que apesar de o espetáculo ter sido veiculado em muitas mídias importantes, meu nome como único performer criador foi sequer citado em nenhuma delas. Esse absurdo fez com que eu começasse a investigar os arquivos da censura a corpos trans na Ditadura. Desejei então abrir o MUTHA, de forma a reiterar a importância da História e da Arte na luta política e na resistência contra mecanismos de violência, que vão só mudando ao longo do tempo. A transtemporalidade é sobre passado, presente e futuro coexistindo. Entender o passado é mudar passado, presente e futuro.

Sumé Aguiar
Sumé Aguiar (Museu Transgênero de História e Arte/Divulgação)

O museu abre com uma exposição em duas partes, Transespécie e Transjardinagem. Pode me falar um pouco sobre cada uma delas, seus destaques e principais artistas?
O conceito de Transespécie é, ao mesmo tempo, um modo de pessoas trans produzirem conhecimentos e um movimento mais geral de desfazer os limites da espécie, criando outras possibilidades corporais por meio da transformação – nela vocês encontrarão seres místicos, divindades, híbridos entre humano e não-humano. Nela temos Anis Yaguar, em Retificação – Construção de ficções visionárias, que apresenta com inteligência o início de todo e qualquer processo de transformação corporal: a cremação da identidade, por meio do apagamento de dados nos documentos de registro civil. Já Xan Marçall mostra a transformação corporal amazônida como forma de produzir encantarias para cura e proteção. Lino Arruda trata das associações entre a transgeneridade, a deficiência, o especismo e a monstruosidade.

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Já Transjardinagem é a imagem de um jardim de memórias construídas sobre ruínas de séculos de destruição, de onde surgem seres fantásticos, formações rituais de pedras, flores mutantes, dentre outros. Essa imagem mostra muito a dificuldade de trabalhar com arquivos trans para memória, sofremos muitos apagamentos históricos, muito da nossa História se encontra em manuais médicos sem rostos ou arquivos policiais de violência. É também um pedido para que pessoas doem arquivos trans para o Museu. Temos nela Jeisiekê de Lundu, que constrói um mapa da violência e ferramentas de ataque e defesa contra ela. Temos também um tributo a Fabiane Galvão, uma lenda viva da História do transformismo no nordeste.

Ancestralidade, Gab Dias
Ancestralidade, Gab Dias (Museu Transgênero de História e Arte/Divulgação)

Uma peculiaridade bastante interessante na abertura do museu é o grande destaque para os artistas baianos, lugar onde você está. Qual a importância de descentralizar o debate do eixo Rio/São Paulo?
O MUTHA é um museu nacional, mas decidimos que nossa primeira grande ação deveria ser voltada à descentralização do eixo Rio/São Paulo, pois acreditamos que a produção do Norte e do Nordeste do Brasil é exuberante e está mudando todo o panorama da arte brasileira. Mais de 70% das pessoas expostas não se encontra no Sudeste, e quando se encontra tentamos o máximo visibilizar periferias. Recebemos um grande apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo, Governo Federal.

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Você pretende levar o museu para um espaço físico em breve? Acha que existem maneiras de fomentar a arte trans hoje no Brasil junto a órgãos públicos?
Desejo tornar o MUTHA presencial sim, mas os custos de um espaço físico ainda são muito distantes da nossa realidade.

Sem título, Fabi Ferro
Sem título, Fabi Ferro (Museu Transgênero de História e Arte/Divulgação)


“Acreditamos que a produção do Norte e do Nordeste do Brasil é exuberante e está mudando todo o panorama da arte brasileira. Mais de 70% das pessoas expostas não se encontra no Sudeste”

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É fundamental falar da história da arte trans e dessa colaboração das pessoas trans e não-bináries para a produção cultural. Que outras iniciativas, além da existência do museu em si, poderíamos trazer/fomentar para que esses artistas tivessem visibilidade nas instituições tradicionais também?
O MUTHA pensou exatamente nisso ao criar seu Arquivo Artístico de Dados (AAD), sua Loja e sua Galeria. O AAD é um banco de empregabilidade e visibilização que ainda está em construção, mas que abrigará o maior levantamento cultural trans do Brasil – pessoas galeristas, curadoras, empresas, gravadoras, pessoas buscando serviços, dentre outras, podem acessar o espaço e conhecer perfis para contratar para trabalhos e para suas instituições culturais. Já a Loja e a Galeria vão vender trabalhos diretamente ao público. Precisaremos de apoio não só governamental, como também da sociedade como um todo, doando acervos e comprando obras. Com esse fortalecimento, pessoas trans vão acabar ingressando coletivamente em mais espaços.

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