oje estou aqui para contar sobre os dias em que assessorei o ex-presidente do Uruguai e ex-senador, figura importante da política latino-americana, Pepe Mujica. Esse texto foi ideia da escritora Tati Bernardi e surgiu em meio a um episódio do podcast Calcinha Larga, do qual participei como convidada. Nunca tinha parado para refletir sobre alguns dos eventos aleatórios que vivi na vida profissional e escrever sobre eles faz tudo parecer meio agridoce: esquisito e engraçado.
Como fui parar lá? Tenho uma espécie de vida híbrida em termos de trabalho: ao passo em que tenho um emprego assessorando organizações políticas do campo democrático, progressista e de esquerda para política internacional há alguns anos, sendo essa a minha área de formação, também trabalho em paralelo com comunicação para internet através de uma abordagem pessoal de temas que envolvem política, diversidade, entretenimento etc. Coisas muito esquisitas rolam em ambas as áreas e sempre fui fazendo as coisas sem pensar muito sobre.
Nesses anos de trabalho, tive a oportunidade de estar presencialmente com figuras importantes da política na América Latina e do Caribe, entre eles o Mujica – o assessorei em duas oportunidades – e sobre elas, só uma se destaca. Naquela ocasião, ele tinha vindo para uma atividade em defesa da reforma agrária e soberania alimentar a convite do MST e acabaria fazendo uma série de outros compromissos. Uma pessoa com essa notoriedade costuma chamar atenção e demandar (muito) apoio. Fiquei pasma quando fomos informados de que ele estaria acompanhado apenas de um assessor, que já estava ali designado para dar conta da tarefa caótica que seria cuidar da sua integridade física, além de algum apoio consular. Acabou que fui designada para acompanhar a visita, apoiá-lo com sua agenda ou qualquer outra coisa que ele precisasse.
“Uma pessoa com essa notoriedade costuma chamar atenção e demandar (muito) apoio. Fiquei pasma quando fomos informados de que ele estaria acompanhado apenas de um assessor, que já estava ali designado para dar conta da tarefa caótica que seria cuidar da sua integridade física, além de algum apoio consular”
Se por um lado, a figura do Pepe carrega uma série de simbolismos e uma história intensa de vida que se comunica horrores com a juventude, por outro é inevitável não deixar de ver um senhor de 86 anos com todas as particularidades que essa quantidade de anos pode carregar. Conheci uma pessoa vestida com roupas absolutamente casuais e comuns, acompanhado apenas de uma singela mala de mão, sandálias e sem a menor paciência para os nossos hábitos nas grandes cidades. Pouquíssimo saco para os traços do nosso modo de vida cibercapitalista e um profundo e ruidoso descontentamento com o trânsito e com o tempo de vida que perdemos parados nele. Entre os trajetos de uma das atividades, pude finalmente ouvir emocionada aos seus questionamentos ao vivo, a cores e HD. Qual seria o sentido de perder tantas horas da vida dentro de um carro? “Isso é simplesmente incompreensível”, foi o meu auge.
Para mapear e entender melhor os questionamentos bastante vivos que ele faz e representa, é fácil escolher onde buscar: sua história é de um importante papel na luta contra a ditadura militar no Uruguai e na disputa da política. Ficou 14 anos preso e muitos deles em isolamento, por conta de sua atuação com o Movimento de Libertação Nacional-Tupamaros. Além disso, ele foi depois um dos fundadores do MPP (seu partido), dentro da Frente Ampla quando da abertura democrática. E seguiu disputando a política e mentes mundo afora ficando conhecido por sua humildade, sobriedade e pelo modo simples de levar a vida. Uma costura interessante de um conjunto de valores, princípios e práticas, que ele faz através desse modo de entender a realidade. É impossível passar sem marcas profundas ou cicatrizes de uma história de vida dessas e ele pagou um preço muito alto por suas posições. Em entrevistas, ele fala reiteradamente sobre o quanto a prisão moldou seu modo de ver as coisas.
“É impossível passar sem marcas profundas ou cicatrizes de uma história de vida dessas e ele pagou um preço muito alto por suas posições. Em entrevistas, ele fala reiteradamente sobre o quanto a prisão moldou seu modo de ver as coisas”
Pepe foi se tornando uma personalidade que conversa cada vez mais e movimenta juventudes. Ainda que critique muito do nosso modo de vida e que nós solenemente ignoremos essa parte – e estejamos sempre à espera de uma selfie. Recebi orientações logo de sua chegada para que ficasse muito ligada nessa dinâmica do assédio em relação às selfies. Além de despertar o enorme ranço que ele tem pela prática em si, também se tornavam ocasiões em que as pessoas muitas vezes perdiam a noção do cuidado que uma pessoa de 80 anos demanda para se deslocar. No português literal, o pessoal se pendura em peso para fazer selfie e esquece que tem um ser humano com muita idade ali.
O contraditório é que ele parecia compreender um pouco do desejo de todo mundo e tentava super acompanhar. Foi a coisa mais fofa. Minha estratégia – como qualquer ser humano que só queria muito ter um registro daquele momento surreal – foi simplesmente não tocar no assunto e deixar na mão do Criador a decisão de me dar ou não a foto. Mamãe do céu me deu, acho que foi o puro reconhecimento dos louros que a não encheção do saco dos outros pode te dar e ganhei até um sorrisinho.
Se a prática é mesmo o critério da verdade, talvez seja esse o encanto dele: essa rara oportunidade que é estar com uma pessoa que vive o que prega. Muito do combustível desse processo de despolitização que atinge nossas sociedades é fruto da observação dessa contradição.
O que vi em Pepe Mujica foi alguém absolutamente comum com ideias muito sólidas e um acúmulo extraordinário de conhecimento advindo da experiência. É bonito conhecer gente que persistiu e persiste nessa repetição cotidiana e tão perene de ideias. A palavra ensina, mas o exemplo convence mesmo.