A quem importa a dor de uma travesti preta presa injustamente?
por Uma Reis SorrequiaAtualizado em 8 fev 2022, 11h38 - Publicado em
8 fev 2022
00h35
São Paulo, 29 de janeiro de 2022
À Savannah e todas as travestis presas e sobreviventes do cárcere,
Dia Nacional da Visibilidade Trans e você, como tantas outras, encontra-se encarcerada, reclusa, privada de liberdade. Duas semanas antes estávamos eu, Dan, Stefany e você reunidas, risonhas, rindo de nossas vidas. Teimei a crer no que lia, via e ouvia. Tememos por sua vida. E seguimos aqui, daqui de fora, lutando por sua carta de alforria contemporânea.
Se
se alguém me desse um tiro
agora creio que eu nem sentiria
dor tamanha é a
ferida que carrego
dentro
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Quem é Savannah Conceição?
Savannah Conceição é uma travesti, preta, de 34 anos, natural do Rio de Janeiro, que veio morar em São Paulo em busca de melhores condições de vida, como tantos brasileiros. Vivendo entre a rua e diversos abrigos desde o início de sua adolescência, já devido à sua identidade de gênero, trabalhou como auxiliar de serviços gerais em abrigos mantidos pela Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos da Prefeitura do Rio por quase um ano. Foi seu único emprego formal, com carteira assinada.
Em São Paulo, não foi diferente. Antes de ser detida, vivia entre o SIAT II, destinado a vulneráveis que também eram dependentes químicos, e a Casa Florescer II, abrigo destinado às travestis e mulheres transexuais. Aqui, havia voltado a estudar pelo Programa Transcidadania, além de ter integrado e participado ativamente do Projeto Transgressoras, da CiA dXs TeRrOrIsTaS, sendo coautora do livro Como recuperar o fôlego gritando.
Havíamos entrevistado e fotografado Savannah no início de outubro de 2021, depois de acompanhar sua trajetória desde abril do mesmo ano. Naquele dia, ela se mostrou muito focada em se recuperar das recentes recaídas ao uso de drogas, frequentando assiduamente a escola, poupando parte da bolsa do Transcidadania para alugar uma casa assim que ela se recuperasse, exercendo a profissão de trancista para auxiliar nesse processo de busca por autonomia.
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Rua, escola da vida
Filha mais velha entre muitos irmãos e irmãs, teve uma infância muito dura, ainda que afetuosa, com sua mãe. Sem nunca ter conhecido o pai, passou a viver na rua, retornando esporadicamente para casa, muito jovem, aos 10 anos de idade. “Quanto mais tempo eu permanecia na rua, mais tempo levava para voltar e menos tempo passava com minha mãe”, ela diz. A rua foi seu “amadurecimento”, lugar da exploração cada vez mais intensa de sua identidade de gênero no convívio com outras travestis, à época.
Savannah faz parte de uma estatística que ronda as populações trans e travestis brasileiras, a alta incidência de meninas que são “convidadas a se retirar” de seus lares em razão de seus comportamentos “afeminados” em um corpo identificado como “masculino”, o que nos levanta a possibilidade de que a travesti existe primeiro na mente de quem a enxerga em nossos corpos, antes mesmo que nos reconheçamos enquanto tal. É o que venho chamando de colonialidade do gênero – a travesti é, portanto, uma invenção cisgênero, e cabe a nós destruir as imagens e imaginários que construíram sobre nossas existências.
Antes de completar 18 anos, já havia sido detida duas vezes em casos diferentes de furtos a clientes. Não se tratava, no entanto, dos trabalhos que prestava à prefeitura do Rio de Janeiro através dos abrigos em que morava, mas, sim, delitos cometidos enquanto se prostituía. “Sofri toda uma série de violências nos abrigos cariocas, não conseguia parar e viver em um único espaço de acolhimento. Nos períodos em que voltava para a rua, voltava também a prostituição”, Savannah diz.
“Sofri toda uma série de violências nos abrigos cariocas, não conseguia parar e viver em um único espaço de acolhimento. Nos períodos em que voltava para a rua, voltava também a prostituição”
Savannah Conceição
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Amores e violências na vida adulta
Não demora para que ela conquiste a liberdade, mas seu destino volta a ser a rua. Os anos se passam e, um dia, Savannah conhece um homem trans, com quem passa a se relacionar. Não demora para que eles encontrem um lugar para morarem juntos.
Savannah contou, nas tantas vezes que nos falamos, que nunca gostou de se relacionar com homens cisgênero. Não que houvesse outros motivos para a prostituição compulsória, mas não sentir-se atraída por eles causava repulsa, ódio até, ao trabalho que desempenhava nas ruas: “Eu sou, como se diz mesmo? Sapiossexual, demissexual? Gosto de ter um mínimo de envolvimento prévio com a pessoa, saber quem ela é”, ela conta.
Um ano depois, solteira novamente, é convidada a trabalhar como auxiliar de serviços gerais dentro dos próprios abrigos da prefeitura do Rio. Aconteceu quando um deles foi reformado e, na cerimônia de reinauguração, ela fez uma fala forte sobre as péssimas condições de moradia nos abrigos para travestis. Savannah diz que precisou fazer um acordo para ser demitida antes que o emprego fizesse seu primeiro aniversário: “Eu tinha ótima relação com os usuários dos abrigos, mas não suportei as brincadeiras por parte de outros funcionários.”
“Eu estava desesperançosa depois do que aconteceu trabalhando nos abrigos, descontente com a falta de políticas públicas destinadas à população trans. Pessoalmente, não queria mais tudo isso”, ela lembra. “Minha mãe estava bem, não havia nada que me segurasse no Rio de Janeiro. Nisso uma amiga estava vindo a São Paulo, decidi acompanhá-la e ver o que dava.”
Pouco tempo depois de chegar em São Paulo, Savannah recebeu a notícia de que sua mãe havia falecido na Paraíba, onde resolvia questões particulares. Ela decidiu não retornar ao Rio para ficar com seus irmãos mais novos, queria seguir com sua própria vida.
“Eu estava desesperançosa depois do que aconteceu trabalhando nos abrigos, descontente com a falta de políticas públicas destinadas à população trans. Pessoalmente, não queria mais tudo isso. Minha mãe estava bem, não havia nada que me segurasse no Rio de Janeiro”
Savannah Conceição
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Seu primeiro lar na cidade foi na casa de uma cafetina conhecida da amiga que a trouxe à cidade. Mas, como logo caiu na prostituição, decidiu se mudar para a casa de outra mulher, também cafetina, mas apenas para ajudá-la nas tarefas da pensão. No entanto, suas economias acabaram, e ela foi obrigada a vender seu corpo nas ruas novamente. Mais uma vez, é presa furtando um cliente. “Durante minha última passagem pela cadeia, vivi como se estivesse entorpecida. Lá, ouvi falar de um abrigo especial destinado a nós, travestis e mulheres transexuais, com condições melhores do que os lugares onde eu havia vivido”, ela diz.
Mais uma vez liberta, Savannah procura a Casa Florescer II. Lá, retorna aos estudos depois de quase duas décadas longe da educação, e começa a participar também do Projeto Transgressoras. Aos pouquinhos, firme no programa e no projeto, decide aceitar uma proposta que uma terceira cafetina havia lhe feito quando deixava a casa de detenção, gerenciando e mantendo uma de suas casas, onde moravam quatro meninas e travestis: “Eu queria ter um pouco mais de privacidade e paz, e fazer meu pé de meia”.
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Penitência e penitenciária
Como boa arte-educadora que sou [risos], uma das marcas que carrego dos anos na universidade e, mais recentemente, de meu trabalho no Museu da Língua Portuguesa, é resgatar a etimologia e a origem das palavras, visto que essas viajam no tempo-espaço ganhando novos usos com base na cultura, e perdendo outros com as transformações sociais.
De acordo com Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, penitência remonta ao século XIII, é o arrependimento ou remorso por erro que se cometeu, expiação por haver ofendidos os mandamentos divinos; contrição, metanoia. Uma virtude cristã que inspira o arrependimento pelos próprios pecados. Sua etimologia vem do latim poenitentia,ae. A palavra penitência + o sufixo -aria dá origem a penitenciaria, sem acento, em 1614. Era o tribunal da cúria romana cuja competência abrange os assuntos relativos ao foro íntimo e às indulgências; local onde se aplicavam as penitências. Em 1855 surge, em termos jurídicos, a palavra penitenciária (etimologia penitência + -ária), agora sim com acento, que se refere ao estabelecimento em que, sob sistema penitenciário, se recolhem as pessoas condenadas a penas de privação da liberdade, para que ali as cumpram; local onde estão os penitenciários.
Dizemos também que uma pessoa privada de liberdade está cumprindo uma pena, palavra antiga do ano de 935 que fala sobre a sanção aplicada como punição ou como reparação por uma ação julgada repreensível; castigo, condenação, penitência. Daí o uso no juridiquês da palavra apenado (1459), pessoa condenada à pena, punida, castigada, ainda dizendo respeito a trabalhadores forçados.
Tudo isso para descortinar a manutenção de um sistema, de uma instituição e de seus instrumentos ao longo dos séculos, apresentando uma breve genealogia que nos permita questionar crítica e radicalmente, através das palavras, a manutenção de uma máquina de moer gente de lá para cá, que encarcera em massa e promove um genocídio contra a juventude negra brasileira, incluído aí os assassinatos de travestis e transexuais, em que 81% das vítimas são negras – pretas e pardas, segundo o recém-lançado, “Dossiê dos assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021”, produzido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA).
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O dia do ocorrido
Sexta-feira, 15 de outubro. Savannah é agredida por um homem cis também convivente do SIAT II, ainda pela manhã. A briga começou sem propósito algum quando Savannah sentou numa cadeira em um espaço de uso coletivo, irritando-o. Para evitar mais problemas e não ser desligada do programa, após levar um soco na cara, Savannah decidiu sair do local, sendo seguida por ele. Na rua em frente, o homem continuou a agredi-la com socos, chutes e puxões. A Guarda Civil Metropolitana (GCM), que tem ponto fixo no local e estava presente, não agiu, omitindo socorro, segundo relatos do local.
Savannah alcança a faca de um ambulante de frutas e interrompe a agressão física desferindo um golpe na barriga de seu agressor. Apenas aí aparecem quatro agentes da GCM. Ela é rapidamente detida, e tratada com uma série de violências de gênero enquanto é levada para a delegacia. O homem é submetido a uma cirurgia e retorna em poucos dias ao SIAT II, sem risco de vida ou qualquer sequela. Já a vítima tornada agressora sofrerá para sempre as memórias dos guardas, que deveriam ajudá-la, desrespeitando-a com pronomes masculinos, das prisões arbitrárias, das tentativas sistemáticas de cessarem com sua existência.
Desde a manhã de segunda-feira, 18 de outubro, Savannah se encontra no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros II. A decisão que determinou sua prisão preventiva, proferida pelo Juiz do Plantão Criminal, ignorou completamente sua situação de legítima defesa, argumentando também que Savannah não havia demonstrado emprego ou renda fixa. Ou seja, Savannah segue detida por um pré-julgamento (e sem julgamento) que ignora o que realmente ocorreu e suas boas referências, de dedicação aos estudos e trabalhos sociais.
A foto e vídeo divulgados comprovam o estado físico em que Savannah se encontrava após ter interrompido a agressão. Se ela não tivesse se defendido, até onde iriam as agressões contra ela?
ASSASSINOS E ASSASSINATOS, seus crimes
Olhares,
Gestos,
Recusas
Ferem-me feito flechas.
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Atitudes,
Sopros,
Palavras,
Rasgam-me como facadas.
São
Tantos
Julgamentos…
É
Tanto
Ódio!
Matam-me a sangue quente.
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O caso
Savannah segue detida no CDP Pinheiros II, em prisão preventiva. Seu advogado, Pedro Martinez, já entrou com o pedido de habeas corpus – ainda na audiência de custódia, que ocorre em até 48h quando prisão em flagrante; para que ela responda o processo em liberdade até que saía uma condenação definitiva, visto que Savannah não possui meios para obstrução de justiça, nem para fugir. O pedido foi negado em primeira instância, assim como o recurso ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), em segunda instância. Nesse momento, aguarda uma decisão favorável do Superior Tribunal de Justiça (STJ), na terceira instância.
Paralelamente, em primeira instância, aguarda-se a decisão de pronúncia do juiz sobre se Savannah será julgada em corte comum ou por júri popular, este último, previsto somente em casos de crime contra à vida. Pedro Martinez, está discutindo que não se trata de um caso de tentativa de homicídio, mas de legítima defesa. Nesse último caso, Savannah seria absolvida e sairia livre, em liberdade, pois evidenciaria que ela não cometeu crime algum.
Como Savannah não tem familiares próximos, Victor Siqueira Serra, advogado, escritor do livro Pessoa afeita ao crime: criminalização de travestis e os discursos do Tribunal de Justiça de São Paulo, e companheiro do Murilo Gaulês, em ação conjunta com o advogado de Savannah, entrou com pedido para que o Murilo seja sua visita única, para acompanharmos sua situação de perto. Até que o pedido seja aprovado, a comunicação é feita por cartas. Uma carta já foi enviada a ela, porém não sabem se recebeu ou não, e se respondeu ou não.
Para encerrar tanto o texto como o caso, antes deles se encerrarem em si, um pois segue reverberando em cada um de vocês leitores, o outro segue em aberto, em um jogo de disputa de narrativa. Assim, gostaria de pôr em discussão uma última reflexão: ainda que Savannah opte, seja por reflexo ou impulso, tomar uma faca, ela o faz justamente por ser uma travesti preta, a todo momento ela tem fazer essa escolha entre morrer ou ser presa, porque ninguém a defendeu enquanto era agredida, nem quando era criança, pois seu corpo merece isso. Logo, ou ela escolhia apanhar até a morte ou se defendia. Savannah teve tempo de fugir e não ser presa em flagrante, mas não o fez, ciente e convicta de que havia se defendido, cansada de correr, de fugir que está.
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Serviço
Casa Florescer I Rua Prates, 1101 – Bom Retiro (Centro), São Paulo – SP Telefone: (11) 3228-0502 E-mail: cadiversidade@gmail.com Facebook Instagram
Casa Florescer II Rua Capricho, 872 – Vila Nivi (Zona Norte), São Paulo – SP Telefone: (11) 2337-8459 E-mail: florescercroph@gmail.com Facebook Instagram