A gente podia ter feito alguma coisa”, diz Bobby-Joe depois de ver a última família de negros ir embora da cidade fictícia de Sutton, em algum lugar no sul profundo estadunidense. A diáspora provocada pela revolta de um homem só, Tucker Caliban, acontecera alguns dias antes, quando o fazendeiro incendeia sua casa, atira a sangue frio em seus animais e salga a terra para que ali nada cresça novamente. Ele faz as malas e segue rumo aos estados do norte, inspirando toda a população preta a fazer o mesmo, deixando os brancos racistas ao léu.
“A gente podia ter feito alguma coisa” é a frase mais ambígua do romance Um Tambor Diferente, escrito nos anos 1960 pelo autor William Melvin Kelley, um clássico perdido na história justamente porque somos, em toda parte, racistas. Redescoberto na esteira das revoltas recentes do Black Lives Matter e publicado pela primeira vez no Brasil em março pela editora Todavia, Kelley já foi comparado com William Faulkner e James Joyce, mas mesmo na versão em inglês da Wikipedia o verbete sobre Kelley é minúsculo.
A frase é ambígua porque nos leva a pensar o que poderíamos ter feito pelos negros, e a resposta que reside dentro de cada um é incômoda. Para que queremos a população preta perto de nós? Bobby-Joe e sua turma de caipiras brancos veem neles mão de obra barata e desqualificada. De certa forma, a situação seria similar em muitas das grandes metrópoles brasileiras, já que Brasil e Estados Unidos são os dois maiores países das Américas a ter dependido da escravatura para se desenvolverem, e até hoje somos as maiores expressões de um preconceito que nunca deixou de estar em nossas sociedades.
O ser humano é um animal racional, e boa parte da sua racionalidade vem da comparação. É através dela que desenvolvemos nossa inteligência e nossa linguagem. Por isso, é confortável ler “Um Tambor Diferente” e pensar no outro. É fácil observar a expressão do sulista white trash e dizer que eu não sou assim. Mas Kelley, um negro, escreve seu livro apontando para diversas expressões da branquitude, entre elas a do progressista que se diz amigo dos pretos. É daí que vem a dor.
O ser humano é um animal racional, e boa parte da sua racionalidade vem da comparação. É através dela que desenvolvemos nossa inteligência e nossa linguagem. Por isso, é confortável ler “Um Tambor Diferente” e pensar no outro. Mas Kelley escreve seu livro apontando para diversas expressões da branquitude, entre elas a do progressista que se diz amigo dos pretos. É daí que vem a dor
O livro me pega em um lugar muito pessoal, e por isso essa resenha é também uma autocrítica, de certa maneira. Um dos meus melhores amigos da vida é negro, sou editor-chefe de uma revista que se propõe a abrir as portas da diversidade, passei boa parte do último ano fazendo longas reportagens para escancarar os problemas da branquitude, mas acima de tudo sou branco.
Tenho um grande amigo negro, mas ele é apenas um. Assim como David Willson, dono de parte das terras de Sutton, me sinto covarde na maior parte do tempo por não fazer mais. A mim, é cômodo dizer que escrevo sobre branquitude e ajudo a amplificar vozes pretas urgentes na nossa contemporaneidade, e ao mesmo tempo passei muito tempo dependendo de mulheres negras para o básico da minha vida. Fui criado em um lar que sempre teve empregadas domésticas, e até muitíssimo pouco tempo atrás nem lavava o banheiro do meu apartamento. Me sinto covarde e culpado, mas a culpa não desaparece simplesmente porque hoje eu me divirto de vassoura e rodo na mão. Quantos outros serviços nós, brancos, relegamos aos negros porque nos consideramos bons demais para fazer?
De acordo com pesquisa divulgada em outubro de 2021 pelo IBGE, homens e mulheres negras são apenas 5% de todos os cargos de liderança em empresas brasileira, e os negros são 43.7% dos estudantes de ensino superior no Brasil. Ao mesmo tempo, a renda média de uma mulher preta por aqui está na faixa de um salário mínimo. Dá pra imaginar quais são suas profissões, e qual o papel dos supostos brancos aliados nessa seara, não é?
Não existe branco aliado, me disse o genial pesquisador Lourenço Cardoso, durante uma conversa. O que se seguiu foi um belo tapa na cara: “O suposto branco aliado na verdade não quer ser criticado pelos negros. Se possível, deseja ser elogiado. Qual a razão para o elogio? O branco quer ser elogiado por lutar contra a opressão? Ser elogiado por fazer o que é certo do ponto de vista ético, moral e legal”.
Hoje, lutamos porque queremos nos sentir confortáveis. Lemos livros negros e ouvimos vozes pretas porque consideramos que elas sejam necessárias, e no entanto somos, em nossa grande maioria, militantes na internet. É mais gostoso ir pra balada com amigos negros e ouvir rap do que fazer trabalho social. Favela? Já pisei em algumas, mas sempre pra fazer reportagem. Boa parte da direita brasileira pode ser tudo, mas não é hipócrita. Pelo menos as convicções dela são claras. “Esqueça essa bobagem de igualdade entre homens”, diz o pai de David a ele em determinado momento de Um Tambor Diferente. As palavras desse autor negro, colocadas na boca de um personagem branco, são verdadeiras e doloridas demais.
Não é que não devemos lutar por igualdade nem tentar diariamente que as coisas sejam diferentes, melhores, mas antes deveríamos dar um passo atrás e rever nossas próprias vidas. Talvez tenhamos em nossos íntimos medo de ter nossas profissões tomadas de nós pelos negros, ou uma apreensão de que nossos amigos brancos gostarão menos de nós se passássemos a colar com pretos nos rolês. Houvesse mais igualdade, no entanto, o que aconteceria seriam mais espaços comuns para todos, melhor distribuição de renda, mais opções de convívio, de arte, de lazer, de consumo e, o mais importante de tudo, de relações.
Gostaria que houvesse solução simples para o problema do racismo intrínseco às nossas criações – e um final bonito para esse texto –, mas a verdade é que não há. Trocar governantes, aumentar o número de diretorias pretas nas empresas, permitir a vida plena dos negros, nada disso parece suficiente. Talvez a única alternativa seja a diáspora proposta por William Melvin Kelley, o abandono total dos brancos à própria sorte? Gostaria de viver para ver.