experimentação

Renovado, porém familiar

Gabriela Barretto renova o cardápio de seu restaurante Chou, mas mantém o conforto característico dos seus quase 14 anos de casa

por Artur Tavares Atualizado em 22 dez 2021, 19h37 - Publicado em 12 dez 2021 23h16
-
(Clube Lambada/Ilustração)

Nunca entendi muito bem o conceito de comfort food – uma designação bastante estranha quando traduzida para o português. O que é uma comida confortável? Minha imaginação viaja e eu fico pensando em transformar um quindim em travesseiro, e quando vou a um restaurante que diz fazer esse tipo de gastronomia vejo pratos que vão de um simples filé à parmegiana, passam pelas regionalidades, como um bom baião de dois, e caem num complicadíssimo bife Wellington – onde uma peça de filé é envolta em massa folhada e levada ao forno.

Nesses lugares, os pratos fáceis abrem espaço para uma armadilha: a simplicidade ganha requintes de gourmet, e os preços vão lá para cima. Além disso, muitos dos restaurantes não são, em si, confortáveis: música alta, casa cheia, bastante iluminação. Fica parecendo que a proposta parou na metade.

-
(kafta de cordeiro. Gui Galembeck / Chou/Divulgação)

Em uma área relativamente tranquila do bairro paulistano Pinheiros, uma casa de construção recuada da calçada, um tanto escondida atrás de árvores frondosas, a chef Gabriela Barretto instalou há 13 anos seu restaurante Chou. O lugar parece que sempre esteve ali, simpático, aconchegante, quase como se saído de um conto de fadas. É como se houvesse uma aura de atração, uma frequência diferente, menos agitada, envolvendo o Chou.

Continua após a publicidade

O trabalho competente de Gabriela transformou o Chou em um verdadeiro restaurante de conforto, e isso muito antes de Pinheiros tornar-se um point fervilhante da cidade. A luz de velas que ilumina o salão – a casa só abre para o jantar – faz do ambiente um lugar perfeito para casais, mas a cozinha feita principalmente de pratos para serem compartilhados também faz do restaurante um ótimo ponto de encontro para grupos de amigos que querem bater um papo entre taças de vinho.

-
(Gui Galembeck / Chou/Divulgação)

Ao longo dos anos, Gabriela mudou poucas vezes o cardápio do Chou, e reuniu a maioria dos pratos que você podia encontrar por lá no livro Como cozinhar sua preguiça. Agora, com a reabertura gradual dos restaurantes, ela decidiu inovar: “Acredito muito nessa coisa da receita que dá certo, e que se torna um ponto de referência e conforto para os clientes. Acho que uma das coisas mais difíceis de um restaurante não é criar uma receita boa, é mantê-la assim ao longo dos anos”, conta a chef.

Continua após a publicidade

A comida de Gabriela sempre incorporou o confortável de maneira criativa, mais preocupada com temperar bem ingredientes familiares do que em apresentar pratos batidos para o público. As grandes estrelas são as mezzes, pequenas porções compartilháveis, que podem também servir de acompanhamentos para as carnes e peixes que saem da brasa: “O Chou se estabeleceu como um lugar de comida que as pessoas vão para comer a batata doce, a mandioca. Escuto muito isso dos meus clientes, respeito essa interação que eles têm com os produtos”

“Acredito muito nessa coisa da receita que dá certo, e que se torna um ponto de referência e conforto para os clientes”

-
(chef Gabriela Barreto. Gui Galembeck / Chou/Divulgação)
Continua após a publicidade

Para essa pequena reforma no cardápio, ela adicionou aos compartilháveis deliciosas lulinhas frescas preparadas na chapa a carvão, temperadas com harissa, alho, vinho branco e manteiga, e servidas com pão de fermentação natural; e o rillette artesanal de porco – caruncho sobre pão, picles e mostarda da casa. Tanto um mezze quanto um prato principal, outra novidade é a kafta artesanal de cordeiro, com picles, harissa, laban, ervas e pão chato grelhado.

“Existe também um desafio de manter um certo frescor para que o lugar não pareça velho, para que fique clássico, simples, mas não mofado, parado no tempo”, explica Gabriela. “Ao longo dos anos, sempre fui colocando um ou outro prato, mas sempre retirando outros. É sempre um dilema mudar o cardápio. O que você tira? Tem muitas coisas que amo muito, que o público ama. Não tem muita regra. Às vezes é porque estamos cansados mesmo, porque se não tirar do cardápio as pessoas não pedem outra coisa. E, às vezes, tem muito do desejo criativo, que foi o que aconteceu agora.”

O jornalismo em que a gente acredita depende de você; apoie a elástica

Continua após a publicidade

Sobre essa dificuldade de mudar o cardápio, Gabriela conta que a experiência inédita de fazer delivery na pandemia mostrou o quanto seus clientes são fiéis à sua comida. Ela narra com emoção um momento que viveu logo no primeiro dia em que o Chou voltou a funcionar: “Um casal de amigas sentou em uma das mesas, e fui até elas com o aparato todo: máscara, face shield, parecendo uma astronauta. Elas tinham lágrimas escorrendo pelo rosto. Comecei a conversar e entendi que elas estavam super emocionadas de estarem voltando ao Chou, um lugar que cruza momentos importantes da vida delas.”

E continua o relato: “Comecei a chorar também, me dei conta que o restaurante não é um comércio qualquer, não é uma troca mercantil. É palco de momentos significativos nas vidas das pessoas. Tem um peso muito grande. Isso me deu vontade de honrar muito mais o que fazemos. Porque antes eu estava lá fazendo comida, porque tinha a ideia de um projeto, de um ambiente, mas esse lugar de enxergar o que significa esse local de encontro tem um peso enorme.”

Entre os principais, Gabriela acrescentou um delicioso steak americano de porco Duroc, com salmorigano, gergelim e limão em conserva; vôngoli & risoni – preparado com vôngoles frescos, massa em formato de arroz, limão em conserva e vinho branco; e também grão de bico orgânico caldoso, abóbora cabotiá, espinafre, harissa, cominho, coentro e laban acompanhado por pão chato.

Publicidade

-
(Rillette – caruncho caipira do Vale do Paraíba com picles e mostarda. Gui Galembeck / Chou/Divulgação)

Sucesso sem alarde

Por ter se popularizado na mídia, a gastronomia alçou jovens promessas ao sucesso, deu vida nova a chefs já veteranos, consagrou pratos, drinks e estabelecimentos como aqueles da vez. O resultado disso é encontrar um público bastante homogêneo de foodies nos restaurantes que fazem burburinho. Gabriela Barretto, por outro lado, nunca se interessou muito por isso, deixou a comida falar mais alto do que sua persona: “Nossa cultura precisa de celebridades, seja do cinema, da novela, da comida. Acho que fazemos isso culturalmente como sociedade”, ela diz. “Antigamente você tinha os restaurantes que eram grifes, hoje em dia as grifes ainda existem, mas estão concentradas na figura dos chefs.”

Ela, que é avessa à televisão, recentemente fez uma participação em um dos programas do canal de televisão da chef Paola Carosella – que chama Gabriela carinhosamente de melhor amiga. “Acho que existem pessoas boas entre as celebridades, que podem falar sobre as coisas realmente pertinentes, que dão voz de um jeito mais alto”, ela diz, refletindo sobre o atual momento da gastronomia. Sua fala não faz referência a Paola, mas o recado parece bem dado no estilo do velho ditado “diga-me com quem tu andas que direi quem és”.

“Comecei a chorar também, me dei conta que o restaurante não é um comércio qualquer, não é uma troca mercantil. É palco de momentos significativos nas vidas das pessoas”

Publicidade

Cozinhando a preguiça

O mote que tomou a vida e a gastronomia de Gabriela parece fazer um pedido para que saiamos das nossas zonas de conforto, mas isso não significa parar de preparar comidas que sejam confortáveis, pelo contrário. A chef conta que se inspira nas palavras de Mário Quintana, que afirmava: “A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de cozinhar, não teria inventado a roda.”

“Acho que a preguiça tem duas faces, o lado bom e o lado ruim. Nos acostumamos a associar a preguiça a uma coisa ruim, sempre, porque estamos em uma sociedade capitalista que estimula o homem a produzir, trabalhar, sempre”, afirma. “A preguiça existe, ela está aí. Tenho preguiça de ir à academia, arrumar minha casa, cozinhar, andar até o supermercado. Então peço um delivery, pego meu carro e dirijo cinco quarteirões. A preguiça produz coisas ruins, é claro. Mas pode ser um motor de criatividade, como o Quintana fala. Inventar maneiras de poupar energia.”

-
(Steak de porco. Gui Galembeck / Chou/Divulgação)

Para ela, a ideia de Quintana é o resumo da essência do Chou: “Estamos sempre procurando um jeito de fazer as coisas com máximo resultado e mínimo esforço. Acho que isso se aplica em muitas áreas da vida, como criar filhos ou trabalhar. Como faço coisas que são muito boas, mas simples, e como mantenho essas coisas? Se você olha por esse lado, percebe que a preguiça pode ser muito maravilhosa dentro de um caminho criativo, como ela nos leva a fazer coisas diferentes.”

Continua após a publicidade

Virar a chave nem sempre é tão simples, ainda mais quando já estamos acostumados a viver em uma espécie de piloto automático no que diz respeito à alimentação: “As pessoas dizem que não sabem cozinhar, mas não percebem que sabem um monte de coisas, como uma salada de tomates, um ovo mexido. Isso é cozinhar, e esse é o grande pulo do gato. Se dar conta que uma fatia de pão torrada, com um pedaço de boa manteiga em cima, é seu jantar, e você está feliz com isso”, afirma Gabriela. “Eu estimularia as pessoas a abandonar as pretensões e estimular mais os estômagos delas.”

“Estamos sempre procurando um jeito de fazer as coisas com máximo resultado e mínimo esforço. Acho que isso se aplica em muitas áreas da vida, como criar filhos ou trabalhar. Como faço coisas que são muito boas, mas simples, e como mantenho essas coisas? Se você olha por esse lado, percebe que a preguiça pode ser muito maravilhosa dentro de um caminho criativo, como ela nos leva a fazer coisas diferentes”

Invocando uma sabedoria antiga, Gabriela sorri e encerra seu tratado sobre a preguiça: “Era uma das coisas que falavam muito os hedonistas, na Grécia Antiga: se você não está feliz com pouco, então não está feliz com nada. É um exercício completamente de redução de desejos, adequação de expectativas, que na verdade é um exercício filosófico para toda sua vida. Você tem que se contentar com menos, e não em qualidade, mas em complicação. Praticar a preguiça pode ser um exercício filosófico de contentamento, de reduzir as ansiedades, o consumismo. Tem várias chaves aí que são muito boas para nossa vida contemporânea.”

Publicidade

Publicidade

Tags Relacionadas
mais de
experimentação
Mesmo proibida no Brasil, a cannabis está movimentando o mercado com previsões de lucro e crescimento vertigionosas
A comida paulista que nasce entre quilombos, agroflorestas e praias
As estilistas Teodora Oshima, Rafaella Caniello e Ana Cecilia Gromann falam sobre a valorização da identidade brasileira para emancipar o mercado fashion
campari-misogino

Beba Campari sem ser misógino

Por
5 drinks que você pode fazer em casa ou pedir no bar para aqueles momentos onde a breja não cai bem
Néli-Pereira-2_Foto-Marcos-Bacon

Tomando uma com Néli Pereira

Por
Desde o início de sua jornada profissional, a jornalista, escritora e mixologista soube dar vazão à maior de suas paixões: contar a história do Brasil