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Pisando devagarinho, Dona Ivone Lara foi longe

O centenário da pioneira que abriu caminho para as mulheres como compositora de escola de samba

por Kamille Viola Atualizado em 13 abr 2022, 13h31 - Publicado em 13 abr 2022 01h49
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(Clube Lambada/Ilustração)

la foi desbravadora ao se tornar uma das primeiras compositoras de uma escola de samba, um universo até hoje pouco afeito a mulheres nessa função. Há cem anos, em 13 de abril de 1922, nascia no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, Yvonne da Silva Lara, que mais tarde adotaria o nome artístico Dona Ivone Lara. Autora de clássicos da música brasileira, sucesso em qualquer roda de samba, ela encantou Villa-Lobos com seu talento e técnica musicais, foi gravada por alguns dos artistas mais incensados da MPB e permanece sendo uma inspiração e um símbolo de resistência para as mulheres.

Também cantora e compositora de samba, Teresa Cristina pontua que Dona Ivone Lara está presente na vida de qualquer mulher que queira iniciar uma carreira de compositora hoje no Brasil, mesmo que ela não saiba da importância da sambista. “Ela é desbravadora, inaugurou lugares. De repente uma cantora nova pode não citar a Dona Ivone como influência, mas ela não precisa, porque o lugar que ela está ocupando já foi inaugurado pela Dona Ivone”, analisa. “Ela colocou a gente num lugar de excelência. E isso é para sempre”, avalia.

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“Ela é desbravadora, inaugurou lugares. Uma cantora nova pode não citar a Dona Ivone como influência, mas ela não precisa, porque o lugar que ela está ocupando já foi inaugurado pela Dona Ivone. Ela colocou a gente num lugar de excelência. E isso é para sempre”

Teresa Cristina
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(Marcos Hermes/Divulgação)

Embora Dona Ivone desde cedo tenha mostrado aptidão para a música (e paixão por ela), tudo em sua carreira demorou para acontecer. Nascida em um ambiente musical, estudou em colégio interno, onde foi aluna da maestrina Lucília Villa-Lobos, esposa do maestro, e da cantora Zaíra de Oliveira, primeira esposa do sambista Donga. Fez parte de um orfeão (uma espécie de coro) na Rádio Tupi, regido pelo próprio Villa-Lobos, e começou a compor aos 12 anos. Ao sair do internato, foi viver com o tio Dionísio, que era músico e a ensinou a tocar cavaquinho. Fez seus primeiros sambas de terreiro para a escola Prazer da Serrinha, fundada por seu sogro, Alfredo Costa. Mas não foi nada fácil: devido ao machismo da época, temia que não fossem aceitos por terem sido escritos por uma mulher, então um de seus primos, Mestre Fuleiro, os apresentava como se fossem dele.

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Com o fim da agremiação, não demoraria a se juntar aos outros ex-integrantes no recém-fundado Império Serrano, em 1947. No mesmo ano, compôs o primeiro samba para a escola, “Não Me Perguntes”, até hoje considerado um dos hinos da Verde e Branca. Em 1965, assinou o samba-enredo “Os cinco bailes tradicionais da história do Rio”, composto em parceria com Silas de Oliveira e Bacalhau – foi a primeira mulher a conseguir tal feito em uma grande escola. Com o samba, a agremiação foi vice-campeã.

“Eu fico pensando, imaginando, como devia ser chegar na quadra do Império Serrano, entrar para um lado, para o outro e só ver homem”, pontua Teresa Cristina. “E, naquele tempo, com aqueles compositores incríveis, o tema das canções eram mulheres malvadas, demonizadas, que partiram o coração deles. Era tudo homem com dor de cotovelo colocando a gente num lugar demoníaco. E ela chegar ali, com o cavaquinho dela, cantar o que ela fazia… Nem consigo imaginar o grau da dificuldade que ela passou”, diz.

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“Eu fico imaginando como devia ser chegar na quadra do Império Serrano e só ver homem. E, naquele tempo, o tema das canções eram mulheres malvadas, demonizadas, que partiram o coração deles. Ela chegar ali, com o cavaquinho dela, cantar o que ela fazia… Nem consigo imaginar o grau da dificuldade que ela passou”

Teresa Cristina
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(Arquivo pessoal Dona Ivone Lara / site oficial/Reprodução)

Grande dama do samba

Pesquisadora musical, doutora em comunicação e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), Luciana Xavier de Oliveira observa que o samba, na época, era um universo bastante patriarcal, em que as mulheres, quando tinham destaque, era por sua beleza ou por sua voz. “Ter uma mulher que está ali num lugar de produção artística, de criatividade, que aponta para um exercício de autonomia, foi muito importante. Não só a autonomia de criar, mas de se ver como uma compositora e de ter a coragem e a iniciativa de se colocar nesse lugar e de se apresentar publicamente dentro daquela comunidade, na comunidade do samba, para mostrar o seu trabalho”, analisa ela. “Acho que muitas mulheres ainda sofrem não só da síndrome da impostora, mas de uma série de outras condições sociais que não nos moldam para ocupar esse lugar de autonomia, de construção de saber, de independência, de autoestima também, de autovalorização. E a Dona Ivone Lara, na sua época, foi tudo isso. Ela esteve à frente em vários sentidos, e num sentido que continua funcionando para a gente, que ainda precisa dessa imagem, desse símbolo e desse exemplo”, defende.

A cantora e compositora Letícia Novaes, a Letrux, faz coro e diz que se sente inspirada por desbravadoras de sua profissão, como Dona Ivone Lara. “O mundo da música era extremamente machista, imagine chegar uma mulher com suas composições? Fascinante. A importância dela é imensurável, o samba – como qualquer outro ambiente musical – sempre colocou a mulher mais como musa”, pontua. “E saber que ela, além de compositora e cantora, também foi das primeiras mulheres negras a se formar numa faculdade, tudo isso é muito louvável”, completa.

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(Arquivo pessoal Dona Ivone Lara / site oficial/Reprodução)

Sim, porque, paralelamente, Dona Ivone Lara seguia com a carreira na área de saúde – na música brasileira, são muitas as histórias de artistas negros que mantiveram um emprego público em paralelo à atuação artística, já que a profissão sempre foi especialmente frágil para os negros, com poucas exceções. Com ela não foi diferente: em 1939, passou no curso de Enfermagem e, por ter sido aprovada em terceiro lugar, recebia uma ajuda de custo que bancava as despesas da casa onde vivia com os tios. Ao se formar, em 1943, foi trabalhar para o Ministério da Saúde, na Colônia Juliano Moreira, no bairro de Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio. Em 1947, concluiu a faculdade de Serviço Social, tendo sido uma das primeiras mulheres negras assistentes sociais e com um curso superior no Brasil.

“O mundo da música era extremamente machista, imagine chegar uma mulher com suas composições? Fascinante. A importância dela é imensurável, o samba – como qualquer outro ambiente musical – sempre colocou a mulher mais como musa”

Letrux
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(Arquivo pessoal Dona Ivone Lara / site oficial/Reprodução)

Foi atuar no Serviço Nacional de Doenças Mentais e, contratada pelo Hospital Gustavo Riedel, do Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, onde trabalhou ao lado da psiquiatra Nise da Silveira, utilizando a musicoterapia como uma alternativa de tratamento para pacientes psiquiátricos. Ficou lá até se aposentar, em 1977. Mas nunca abandonou o samba, e marcava as férias em fevereiro para participar dos desfiles do Império, na ala das baianas – que passou a integrar depois que deixou de fazer parte da ala de compositores, em 1968.

Sua vida foi marcada por tragédias comuns a pessoas negras no Brasil, como a perda precoce dos pais: José tinha apenas 27 anos (a causa de sua morte não é citada) e Ivone, apenas 3. Sua mãe, Elza, partiu aos 33, de infarto, quando a filha tinha 12 anos. Há pesquisas que demonstram a alta incidência de mortes em decorrência de pressão alta em pessoas negras no Brasil – sobretudo por infarto e acidente vascular cerebral (AVC) –, e é certo que os fatores socioeconômicos têm grande impacto nas más condições de saúde dessa população. O marido da artista, Oscar, foi outro a sofrer um infarto, fulminante, aos 52, em 1975, no período em que um dos dois filhos do casal, Odir, estava em coma após sofrer um acidente de carro. Ele se aposentaria por invalidez e viveria com a mãe até morrer por complicações da diabetes (outra doença muito frequente na população negra), em 2008.

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“Ter uma mulher que está ali num lugar de produção artística, de criatividade, que aponta para um exercício de autonomia, foi muito importante. Não só a autonomia de criar, mas de se ver como uma compositora e de ter a coragem e a iniciativa de se colocar nesse lugar e de se apresentar publicamente para mostrar o seu trabalho”

Luciana Xavier de Oliveira
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(Arquivo pessoal Dona Ivone Lara / site oficial/Reprodução)

Pelas rodas da vida

Também pioneira entre as compositoras de escolas de samba, Leci Brandão, que entrou para a ala de compositores da Mangueira em 1971, foi apresentada a Dona Ivone Lara em 1974, quando foi cantar na Noitada de Samba, evento semanal no mítico Teatro Opinião, em Copacabana: a imperiana era parte do elenco fixo. “Quando eu a conheci, eu já era compositora da Mangueira, tinha 30 anos. Mas a presença da Dona Ivone enquanto compositora, enquanto uma senhora que fazia sambas maravilhosos, era uma coisa que não dava para você não tê-la como exemplo de arte”, considera. “Ela contava essa questão de que não podia colocar o nome dela nos sambas no Império Serrano, porque senão ia ter problema dos compositores da ala não aceitarem. É bastante complicado a pessoa não ter o direito de apresentar a sua obra com o seu nome assinado. Mas, mesmo assim, ela continuou”, observa.

A estreia em disco viria em 1970, na coletânea Sargentelli e o Sambão, produzida por Oswaldo Sargentelli e Adelzon Alves. Foram eles que a batizaram de Dona Ivone Lara, nome artístico que ela adotou a contragosto, devido à insistência da dupla – afinal, não tinha sequer 50 anos ainda. Em 1974, Clara Nunes lançaria “Alvorecer”, de Dona Ivone com Délcio Carvalho, no álbum de mesmo nome. Mas ela só passaria a se dedicar integralmente à música depois de se aposentar, em 1977. “Esperei 37 anos pela aposentadoria e me entreguei ao que queria: ser artista, gravar, cantar no rádio e na televisão”, disse ela ao jornal O Globo em 1979.

“Esperei 37 anos pela aposentadoria e me entreguei ao que queria: ser artista, gravar, cantar no rádio e na televisão”

Dona Ivone Lara
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(Arquivo pessoal Dona Ivone Lara / site oficial/Reprodução)

O sucesso chegaria com força no ano seguinte, quando, além de ter lançado seu primeiro álbum, o elogiado Samba minha verdade, minha raiz, teve uma música gravada em um álbum de Maria Bethânia: “Sonho meu”, de Ivone com Délcio Carvalho, que trazia a participação de Gal Costa. O disco em questão, “Álibi”, foi um dos primeiros de uma intérprete mulher a atingir a marca de um milhão de cópias vendidas no país. Dona Ivone tinha então 56 anos.

De lá até o fim de sua vida, foram 12 álbuns, e músicas gravadas por nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Roberto Ribeiro, Paulinho da Viola, Beth Carvalho, Marisa Monte e Paula Toller, entre outros. Apesar de seu prestígio no meio musical, seu desempenho comercial não esteve à altura de seu talento. Seus discos não obtiveram grandes vendas e Dona Ivone Lara chegou a ficar longos períodos sem gravar. Leci pontua que, muitas vezes, a indústria da música era mais fechada para os sambistas negros. “Não era uma resistência explícita, ninguém dizia que não. Mas custava para aceitarem”, diz. “Foi preciso que a Nara Leão, que era uma menina da Zona Sul, descobrisse João do Vale e Zé Keti para eles terem espaço. E que Bethânia e Gal gravassem ‘Sonho meu’ para que a Dona Ivone tivesse reconhecimento”, exemplifica.

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(Arquivo pessoal Dona Ivone Lara / site oficial/Reprodução)

Apesar das dificuldades, Dona Ivone Lara jamais abandonou sua paixão: compôs mais de 400 músicas, entre sambas, marchas e valsas. Entre seus maiores sucessos, além de “Sonho meu”, estão “Alguém me avisou”, “Mas quem disse que eu te esqueço” (com Hermínio Bello de Carvalho), “Acreditar” (com Délcio Carvalho) e “Enredo do meu samba” e “Tendência” (as duas com Jorge Aragão). Morreu em 16 de abril de 2018, após passar duas semanas internada com infecção renal. Tinha completado 97 anos três dias antes.

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“Não era uma resistência explícita, ninguém dizia que não. Mas custava para aceitarem. Foi preciso que a Nara Leão, que era uma menina da Zona Sul, descobrisse João do Vale e Zé Keti para eles terem espaço. E que Bethânia e Gal gravassem ‘Sonho meu’ para que a Dona Ivone tivesse reconhecimento”

Leci Brandão
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(Leci Brandão, Gisa Nogueira, Dona Ivone Lara e Luís Sergio B. Nogueira. Projeto Pixinguinha, 1980.-Coleção-Nelson-Motta. Acervo MIS/Reprodução)

Teresa Cristina reforça que o país deve muito a Dona Ivone e que ela merecia ter sido muito mais recompensada. “Ela não deveria ter precisado trabalhar até o fim da vida, deveria ter uma bela aposentadoria, uma vida tranquila… Enfim, Brasil”, lamenta a sambista. Luciana Xavier de Oliveira observa que, frequentemente, artistas negras não recebem a devida deferência. E, mesmo quando existe um reconhecimento simbólico do valor, o financeiro não vem. “E isso é muito triste quando a gente vê que mulheres negras no Brasil são quem ganha menos e que são as que mais comandam famílias no Brasil. Elas estão sozinhas para cuidar dos filhos negros, então é uma herança de pobreza e dificuldade que é passada adiante. O cenário para as mulheres negras cantoras é ruim como é o cenário para as mulheres negras em geral no país”, avalia.

Se Dona Ivone Lara ajudou a inaugurar espaços para as mulheres, é preciso que essa memória seja sempre celebrada e preservada. “O fato do samba ter sido trazido para o Rio de Janeiro por uma mulher, e a história dela ter sido apagada, como aconteceu com a Tia Ciata, diz muito para nós, mulheres. Ela foi compositora e instrumentista e isso foi sendo esquecido com o tempo. A gente precisa contar a nossa história, passar adiante, contar a história de outras mulheres”, diz Teresa Cristina. Luciana Xavier de Oliveira faz coro: “Precisamos apoiar mulheres negras, em todas as áreas, hoje. São caminhos que a sociedade brasileira pode assumir, como se fosse uma grande ação afirmativa”, sugere. “E passar essas histórias adiante, dar espaço para elas circularem. Esse foi um grande legado que a Dona Ivone Lara nos deu: ela colocou para jogo a sua história de vida, as histórias que ela queria contar através da sua música, sua arte, seu talento. Ela teve essa coragem e essa disponibilidade”, resume. Para fazer referência a um de seus maiores sucessos, pisando devagarinho, ela foi longe.

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