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Leia Lázaro Ramos

O ator enxerga as dores do crescer em seu novo livro, "Você não é invisível"

por Humberto Maruchel, da BRAVO! Atualizado em 28 nov 2022, 11h43 - Publicado em 21 nov 2022 12h42

Há tempos, Lázaro Ramos não precisa provar nada para ninguém. São trinta anos de carreira desde quando fez sua estreia, ainda menino, nos palcos do Bando de Teatro Olodum, em Salvador. De lá para cá, foram peças, novelas, filmes nacionais e internacionais, séries e também livros. Se, depois de tudo isso, você ainda não sabe quem é Lázaro Ramos, acreditamos que algo está errado.

Mas há um elemento na sua história que ele faz questão de se aprofundar, quase como dever. Fato é que não faz muito tempo que Lázaro identificou uma dívida consigo mesmo, uma cobrança associada a um campo não tão explorado, mas que germinaria uma nova paixão: a literatura.

O gosto pela leitura se deu de forma mais lenta e não tão gradual. Na adolescência, o ator, diretor e escritor enxergava os livros apenas como uma obrigação sem gosto, desprovida de prazer – um relato comum na história de muitas crianças.

Do compromisso em revisitar os clássicos da literatura brasileira nasceu muito mais do que um leitor voraz, mas também um autor, que mergulha no fundo de suas intimidades, e que é capaz de dialogar até mesmo com o jovem Lázaro, aquele leitor oculto que não se reconhecia nos livros. Sua primeira obra, Paparutas, foi publicada em 2000. Ao longo de duas décadas, escreveu outros livros infantojuvenis, até lançar sua biografia,Na Minha Pele, em 2017. Neste mês, Lázaro publica sua nova obra,Você Não é Invisível, pelo selo Objetiva, da editora Companhia das Letras, que aborda as dores do crescer e ocupar um lugar no mundo, tudo ilustrado por Oga Mendonça.

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(Oga Mendonça / editora Objetiva/Divulgação)
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Os irmãos Carlos e Vitória são dois jovens confinados durante a pandemia, que, diante das ausências, distâncias e saudades, são desafiados a encontrar novas formas de comunicar seus sentimentos. Se para Vitória o extravasamento se dá pela escrita, Carlos passa a se afirmar através dos perfis que cria nas redes sociais depois de se sentir cansado e aflito pela rejeição que sofre de seus colegas. O garoto cria, então, um personagem anônimo que veste um saco de papel como máscara na hora de gravar os seus vídeos.

Para Elástica, Lázaro falou sobre sua relação com a literatura, seu retorno para a edição deste ano da Festa Literária Internacional de Paraty – FLIP, a censura que sofreu antes do lançamento do filme Medida Provisória, sua estreia na direção, além de masculinidade e paternidade.

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(Oga Mendonça / editora Objetiva/Divulgação)

Você já afirmou algumas vezes estar cansado de dar diagnósticos, e que hoje busca trazer soluções. Fiquei pensando que, de certa forma, você produz muitos diagnósticos mesmo sem que essa seja a intenção, especialmente quando fala de afeto. Em que momento você identificou essa necessidade de falar sobre afeição e amorosidade?
Durante a escrita do Na Minha Pele, tive acesso a uma pesquisa do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] que falava das condições da população negra, sobre como jovens, mulheres e homens e negros viviam, então, quis contribuir de alguma maneira. Eu tinha o diagnóstico e as estatísticas. Mas eu, inclusive, enquanto pessoa negra, estava um pouco desestimulado ao assistir algumas obras que só me pareciam mais uma exposição das dores que vivia ou que testemunhava, e que me deixava solto no universo sem algo propositivo. E aí tomei uma decisão: tudo que eu fizesse deveria tentar usar o afeto como estratégia de transformação. O afeto, não só a assertividade, para provocar sensações nos consumidores daquilo que produzisse para, assim, promover transformações. E essas sensações são as mais variadas, pode ser a indignação, pode ser a emoção, pode ser um sorriso, pode ser o choro. Eu não queria que as pessoas passassem batidas pelas minhas obras.

Com o filme Medida Provisória, por exemplo, utilizo o humor e a emoção como estratégia de aproximação. Depois uso o drama como denúncia, e no final busco um futuro possível para convocar as pessoas. Esse hábito está presente em quase tudo que faço. Trago no começo do livro muitos temas de fácil identificação, uma linguagem muito conhecida pelos jovens. E após dar esse conforto para eles, vou entrando em assuntos um pouco mais desconfortáveis, como a solidão, os conflitos éticos e no final eu ofereço uma alternativa, uma solução.

“Uso o afeto como estratégia de transformação em tudo que faço. O afeto, não só a assertividade, para provocar sensações nos consumidores daquilo que produzisse para, assim, promover transformações”

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(Pedro Napolinário/Divulgação)

Esse é um processo recente, então?
Isso é muito meu jeito. É o jeito que fui criado, que a minha família me constituiu. Hoje em dia, é uma narrativa consciente, mas que vinha de um processo natural e de uma sensação enquanto pessoa negra, quando percebi alguns conteúdos que contavam sobre a minha existência.

Quero aproveitar esse gancho e perguntar que tipo de literatura era importante na sua infância, na sua adolescência, e que tipo de literatura é importante para você hoje.
Escrevi esse livro para falar coisas que gostaria de ter ouvido na minha adolescência. Mas eu não era leitor, não gostava de ler. Até a minha adolescência, via a leitura como uma obrigação. Demorei para entender que ali encontraria conforto, companhia, prazer e informação.

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A sensação de nunca estar sozinho ao ter um livro do meu lado só aprendi com 16, 17 anos. Perdi muito tempo na minha vida por entender o lugar da leitura como um lugar de quase punição. Acho que ninguém me disse isso explicitamente, mas entendi que era quase uma punição ter que ler um livro de Machado de Assis, ao invés de ser um lugar de abertura de mundos. Então, comecei meu processo de leitor muito tardiamente. Hoje, me sinto em dívida, tanto é que eu tenho livros espalhados por todos os lugares em casa.

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(Oga Mendonça / editora Objetiva/Divulgação)

O livro tem um formato que dialoga bastante com o universo da internet, das redes sociais. O que te estimulou a escrevê-lo dessa maneira?
Eu queria fazer um livro multilinguagem, mas não sabia se seria de fácil compreensão. Dei o livro para algumas pessoas da minha geração lerem, algumas delas tiveram dificuldade. A primeira coisa que eu entendi foi: precisamos ter um projeto gráfico que organize essa leitura, aí o Oga foi brilhante nessa execução.

Junto a esse processo, dei o livro, antes de publicar, para vários adolescentes lerem. Eles absorveram com uma facilidade impressionante. Isso me deu a certeza de que dava para seguir nesse formato. Aliás, isso é uma coisa que já tenho feito há anos. Nos livros infantis, os meus textos vão para uma escola pública e para uma escola particular, sem saber que fui eu que escrevi e sem ilustrações. As crianças leem o material e devolvem com críticas, desenhos, sugestões e eu reescrevo o livro.

Você Não é Invisível passou pelo mesmo processo. Não enviei às escolas porque escrevi durante a pandemia, mas teve um grupo de teatro que leu para mim e me apresentou cenas do livro como sugestões.

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“Nos livros infantis, os meus textos vão para uma escola pública e para uma escola particular, sem saber que fui eu que escrevi e sem ilustrações. As crianças leem o material e devolvem com críticas, desenhos, sugestões e eu reescrevo o livro”

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(Pedro Napolinário/Divulgação)

É uma decisão corajosa enviar para crianças. Elas podem ser as críticas mais duras.
É que não tenho obrigação nenhuma de lançar livro. Não experimento por obrigação, escrevo por prazer e por achar o tema relevante, então não tenho nenhuma insegurança. Sou muito tranquilo em relação às críticas sobre aquilo que escrevo. E não tenho prazo para lançar. A editora já sabe que não vou assinar o contrato, que não vou entregar na época que prometi. O livro vai ficar pronto quando estiver pronto. Essa é a vantagem de não ter a escrita como minha profissão principal. Estou escrevendo um próximo Na Minha Pele já há algum tempo, mas sem pressa.

Como nasceu a ideia para Você Não é Invisível?
Esse livro passou por muitas reescritas. Era um livro sobre princesas, um texto que escrevi há uns seis anos – minha filha está com sete. Um dia, fui numa loja de brinquedos e vi que eles ainda eram setorizados. Para meninas, casinha, coisinhas domésticas, bonecas. Para meninos, aquela coisa do desbravador. Cheguei em casa e escrevi esse texto, chamado A Culpa é das Princesas. Ficou apenas um trecho, um parágrafo somente dessa primeira escrita, que está no começo do livro, na história da Vitória.

Quando comecei a enviar para os adolescentes ou adultos, eles falavam: ‘Lázaro tem um negócio meio afastado, gosto quando você escreve textos mais próximos da gente. Esse parece um olhar afastado da situação.’

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Em cima dessa crítica, fui investigar coisas que gostaria de ter ouvido na minha adolescência. Queria ter ouvido na minha adolescência coisas como ‘você não é invisível’, ‘você não está sozinho’, ‘você tem direito a ter dúvida’, ‘vá buscar suas origens e pesquisar sobre a sua família, que isso vai te dar uma sensação de se encontrar no mundo’. A partir dessa análise, fui escrevendo o livro. Aí vem a minha percepção desse hábito da gente se isolar nos aparelhos tecnológicos, da gente não olhar mais no olho, da gente não se encontrar mais.

Durante a nossa adolescência, vivemos conflitos e coisas que a gente acha que só acontece conosco. E se a gente tivesse a coragem de conversar com um amigo, com uma amiga, entenderíamos que eles têm processos parecidos com os nossos.

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(Oga Mendonça / editora Objetiva/Divulgação)

Que momentos são esses em que a gente se sente invisível?
Tem uma questão da sociedade em que vivemos, muito ligada à aparência, que cobra muito por um formato de resistência do mundo. É muito possível você viver uma vida dispersa e sem conexão hoje em dia. Os hábitos mais simples não estão na nossa rotina, como a conversa pela conversa, o momento do pote de sorvete [refere-se a uma cena do livro em que a família se reúne para isso]. Nós, adultos, temos dado péssimos exemplos para os nossos jovens e crianças. A gente está dando exemplo do ódio como narrativa de comunicação.

E aqui não estou falando sobre se afastar da tecnologia. Estou falando sobre equilíbrio e sobre práticas que trazem saúde para a comunicação e para a existência. Ao mesmo tempo, estou tentando falar sobre coisas que são importantes sobre o nosso tempo, como a construção da nossa masculinidade e como pensar sobre liberdade.

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O que é liberdade e o que é ter liberdade? O que é pensar e falar sobre ética? O que é falar sobre a coragem de demonstrar afeto? Às vezes uma pessoa que está do seu lado vive isso. Falar sobre essa família onde a mãe vai em busca dos seus sonhos e o pai permanece em casa. Não é um homem que consiga se comunicar, mas ele fica em casa. Discutir isso dentro de uma estrutura em que o homem ainda se acha dono dos desejos, dos sonhos e dos corpos das mulheres. São questões que estão muito no nosso tempo e que eu falo, dentro dos meus limites e do meu conhecimento.

“Queria ter ouvido na minha adolescência coisas como ‘você não é invisível’, ‘você não está sozinho’, ‘você tem direito a ter dúvida’, ‘vá buscar suas origens e pesquisar sobre a sua família, que isso vai te dar uma sensação de se encontrar no mundo'”

Você tocou na questão da masculinidade… E gostaria de perguntar como você tem trabalhado esses efeitos da masculinidade nas suas relações, enquanto marido e pai.
Sou fruto do meu tempo. E, no meu tempo, acho que vivo uma coisa que é um ótimo desafio: questionar todos os dias como exerço minha masculinidade, pela minha esposa, pelas coisas que leio, pelo jeito que meu filho e minha filha se comportam. Eu sou afetado por tudo isso, não tem jeito.

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E também tenho o privilégio de viver num tempo em que já sei que posso chorar. Na minha adolescência, não tinha noção disso. Não sabia que podia mostrar minhas fragilidades, falar sobre as minhas angústias e sensibilidades. Hoje em dia, vivo esse processo de libertação. Sou um cara que lê bell hooks falando sobre e isso me afeta.

Sei que sou um homem em construção. Tenho todas as minhas amarras: a de ter morado numa casa onde fui criado por minha tia-avó, que morreu nesse ano, aos 96. Na hora do almoço, ela servia a comida do meu tio-avô, ficava de pé ao lado dele, enquanto ele comia. Depois de passar a maior parte em silêncio, servia as crianças da casa. A gente comia, cada um tirava o seu prato, só depois disso ela ia se alimentar. Fui criado nessa casa. É, portanto, impossível isso não afetar a minha percepção de mundo. Tenho consciência disso e fico trabalhando diariamente para me construir um cara melhor.

“Sei que sou um homem em construção. Tenho todas as minhas amarras. É, portanto, impossível isso não afetar a minha percepção de mundo. Tenho consciência disso e fico trabalhando diariamente para me construir um cara melhor”

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(Pedro Napolinário/Divulgação)

Você tem uma longa carreira enquanto ator. O quanto o seu ofício na atuação influenciou a construção da sua literatura?
Eu vejo o mundo como cenas. Tenho altos papos com a Daniela, editora desse livro e que também editou Na Minha Pele, porque todas as vezes que ela vai editar algo meu, diz que o trecho se parece com uma cena. O trabalho como ator molda muito a minha visão de mundo. Se você for ver o jeito que escrevo, estou descrevendo o ambiente, as sensações, tentando colocar uma visão global nas pessoas em cada parte da escrita. Sou o tipo de pessoa que, quando estou no restaurante, às vezes me vejo me colocando na melhor luz.

Não tem como escapar muito disso. Acho que isso vem do teatro, o exercício de me perceber no mundo. Os primeiros exercícios que meu grupo de teatro fazia antes da gente ensaiar qualquer coisa era deitar no chão, respirar, entender como estava o nosso corpo naquele dia e começar a andar observando tudo ao nosso redor. Essa prática de começo de exercício de teatro ainda é o meu jeito de ver a realidade.

Essa é uma obra que você se vê adaptando para outros formatos?
Fiz isso em todos os meus livros. Ou viraram peças de teatro, ou viraram músicas pelo projeto Viagens da Caixa Mágica, criado com Jarbas Bittencourt. Esse é um livro que vejo sendo transformado em outra coisa. Não sei quando, não sei se eu mesmo, mas vejo acontecendo, porque é uma obra híbrida. Sou muito ciumento com as minhas obras, mas estou trabalhando isso também, entendendo que preciso crescer, virar adulto, liberar e deixar esse filho crescer.

Em breve, você irá retornar para Flip, que já foi acusada de ser elitista e racista na curadoria do evento. O quanto você acha que a feira mudou nesses últimos anos? E o que acha que pode melhorar?
Eu não volto para Flip desde 2017, mas consigo ver muito claramente o que gerou aquele movimento naquele ano. Ela já começou com uma coisa de muito impacto, que foi quando a Lilia Schwarcz e eu estávamos na igreja, apresentando os textos de Lima Barreto, lendo para aquelas pessoas. Quando saímos daquele público reduzido e fomos para praça, reproduziu-se o mesmo espetáculo que parecia que seria para poucos.

Essa interação no espaço aberto livre foi muito positiva. Essa teatralização desse texto tão importante foi muito positiva, lembro de ter circulado naquele ano e ver várias peças de teatro sendo apresentadas em casas. A apropriação do texto literário pelo teatro foi muito positiva.

Naquele ano, Dona Diva Guimarães foi um brinde à vida. Essa mulher se sentiu tão acolhida nesse lugar, estimulada por livros. Ela soltou uma voz que, segundo ela mesma, nunca tinha colocado para fora, validando assim um tipo de narrativa necessária para o nosso tempo. Dona Diva fez isso. Aquele momento dela foi histórico. Lembro muito do último debate, que era para ser realizado numa casa pequenininha, para 100 pessoas, e foi impossível, porque apareceram mais do que isso. Então colocaram duas caixas de som ao lado de fora. E mais 400 ficaram sentadas no chão, no sol, escutando porque queriam ouvir.

Havia muita valorização da palavra enquanto o motor da sociedade, muita valorização da palavra dita, inspirada nos conteúdos literários para falar sobre o nosso tempo e para reverenciar um outro tempo.

Naquele ano, Conceição Evaristo também foi homenageada, um lugar de justo merecimento. Não sei o que aconteceu nos outros anos, mas acho que aquela Flip foi histórica justamente por isso, por democratizar o saber, por resgatar e por valorizar escritas, narrativas, pessoas que nem sempre estavam colocadas ali, no lugar de protagonistas. Ao mesmo tempo de resgatar Lima Barreto e por estar cheio de jovens autores ali espalhados por tudo e por todo canto, como um vírus saudável, se é que isso existe. Foi lindo.

Estou numa expectativa gigantesca em voltar para Flip para entender o que é que aconteceu lá. Estou indo de coração aberto. Fico até preocupado porque, depois de 2017, não sei se essa sensação vai se repetir, mas estou indo lá para demarcar esse território, de tornar pop a leitura. Aliás, acho que vai cumprir um papel que eu, por exemplo, não tive na minha adolescência.

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(Oga Mendonça / editora Objetiva/Divulgação)

Quais livros têm acompanhado você nessa fase?
Tem duas coisas que estão acontecendo comigo agora: voltar a leituras da minha adolescência que não tive maturidade para absorver. Estou lendo Machado de novo. Quando eu li, acho que não entendi. Estou lendo Clarice Lispector, ganhei um livro lindo com o rabiscos dela. E agora tem um outro sentido para mim, do que tinha na minha época. Ao mesmo tempo, estou muito aberto ao novo. Ler os livros da Jarid Arrais está sendo importantíssimo para mim. Então, sigo muito eclético e caótico, mas num lugar de muito prazer. É um lugar libertador você poder ler essas várias vozes que tem na nossa literatura, que são de muito valor, e agora me sinto pronto para lê-las.

“Tenho os maiores sonhos utópicos, mas também vivo com o pé na realidade. Nós, que produzimos arte, temos um grande desafio e uma grande possibilidade: fazer arte para transformar esse nosso tempo”

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(Oga Mendonça / editora Objetiva/Divulgação)

Acho que não tem muito como fugir desse assunto, mas gostaria de perguntar o que você espera do próximo ano, no campo da política e da cultura?
Sei que vai ser um ano muito difícil para tudo, não só para cultura, mas para todos os setores, porque ainda estaremos restabelecendo a capacidade de comunicação entre o nosso povo. Estamos vivendo um processo de extremo ódio e isso vai nos afetar durante muito tempo.

Tenho os maiores sonhos utópicos, mas também vivo com o pé na realidade. Nós, que produzimos arte, temos um grande desafio e uma grande possibilidade: fazer arte para transformar esse nosso tempo, fazer arte para nos aproximar, para termos um espelho, fazer arte compreendendo que o nosso espectador mudou e que a gente tem que falar para ele.

Estou com esse objetivo. Quero entender quem é esse novo espectador brasileiro e acho que a gente pode ter uma contribuição muito importante que é de nos reconectar entre si e com o nosso país. Inclusive, reconectar com um dos maiores patrimônios que a gente tem, que é aquilo que a gente produz na nossa arte. Tenho certeza que daqui a 30 anos, quando a gente for explicar o que é o Brasil e qual é Brasil que a gente se orgulha, com certeza haverá uma música do Cartola. Não tenho a menor dúvida disso, de que isso é o melhor Brasil que a gente produziu. Mas perdemos isso de vista nesses últimos anos. Então acho que essa reconexão com esse orgulho daquilo que a gente produz culturalmente, ela precisará ser refeita, só que ainda está no plano utópico. Vamos precisar de muita sabedoria.

Tem uma frase que escrevi em Na Minha Pele que diz: “o seu lugar é onde você sonhar estar”. E, já dando um spoiler de uma frase que está no próximo: “Eu acho que o seu lugar é a utopia que você construir hoje”. O remédio para tempos distópicos, com certeza, é a utopia. Acho que essa vai ter que ser a nossa meta.

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(Pedro Napolinário/Divulgação)

Recentemente você sofre um tipo de censura burocrática no lançamento de Medida Provisória. Poderia comentar o que aconteceu?Ela foi através da burocracia, mas foi também através da fake news, tentando descredibilizar o processo de produção. Inventaram uma mentira e disseram que o filme estava travado porque estávamos querendo dois milhões e 700 mil a mais. Isso é uma das maiores mentiras. Isso foi gravado, documentado, inclusive a imprensa oficial teve acesso. O filme, na verdade, precisava de uma assinatura para trocar uma distribuidora por outra.

Essa assinatura demorou mais de um ano, apesar de mais de cento e tantos e-mails mandados, de documentações enviadas. E só foi liberado quando a imprensa noticiou o quarto adiamento da estreia do filme. A imprensa começou a noticiar como censura através da burocracia porque o filme Marighella passou por isso, mas essa tentativa de censura acabou aumentando o público do filme. Então eles, na verdade, estavam buscando frear o processo de divulgação do filme porque entenderam, em algum momento, que censurar acabava ativando o público. Aí depois, através da censura pela burocracia e por fake news, o filme foi atacado. E continua sendo atacado ainda hoje com essas mentiras.

Mas o que eu entendi é que o Brasil não é uma só voz. O público foi para o cinema para demarcar um território. Depois o filme se reestabeleceu e ganhou mais público pelos seus méritos artísticos, mas num primeiro momento era o público brasileiro dizendo que não iriam calar a voz das pessoas. A censura não é mais admitida nesse país.

Foi muito importante entender que o Brasil é muita gente, e muitas vezes a gente valoriza mais aquilo que é negativo. Mas há um processo positivo e que precisa ser dito também. Num determinado momento, eu estava muito desestimulado, querendo desistir da batalha, querendo divulgar o filme com menos afinco, mas quando percebi que tinha muita gente comigo, aí fui para a luta. E foi esse público que tornou Medida Provisória o filme brasileiro mais visto desse ano.

A última pergunta: gostaria que você falasse sobre o encontro recente com Viola Davis? Dá para pensar em uma colaboração futura entre vocês?
Isso está na minha utopia também, e na minha ousadia. Estou me desafiando a pensar muito nisso. Eu tinha receio de encontrar com ela e me decepcionar, porque quando tem alguém que a gente admira muito, às vezes é melhor deixar a pessoa longe, assim você não vê tão bem como ela é de verdade. Mas foi uma pessoa que não decepcionou. Ela é, realmente, muito inspiradora. Os encontros foram muito especiais.

Ela chegou para Dona Léa Garcia e falou que assistiu Orfeu do Carnaval. Ela reverenciou Dona Léa Garcia. Ela conversava com cada pessoa olhando dos olhos, dando total atenção. Não sei se ela é assim naturalmente, mas não falava banalidades. Tudo que ela falava tinha muita sapiência. Foi muito lindo experimentar isso.

Elá é uma artista admirável e quem sabe aí, na minha utopia, fazer essa junção de Brasil e Viola. Pode acontecer.

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(editora Objetiva/Divulgação)
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